
Das margens à centralidade: narrativas de (re)existência e saberes de uma mulher-negra na Ciência, por Rafaela dos Santos Lima

Das margens à centralidade: narrativas de (re)existência e saberes de uma mulher-negra na Ciência
Rafaela dos Santos Lima
rafaelalima@ufrb.edu.br
Falar de si, escrever sobre a nossa trajetória, é sempre estranho. Mas por quê? Qual a estranheza em escrever sobre as nossas vivências? Talvez seja mais fácil de modo oralizado, e isso tem um significado. Um significado que é ancestral. Por muito tempo, os saberes de pessoas negras foram perpetuados de modo oral, pelo saber da boca. Sobre isso, Moreira (2023, p. 13) registrou que:
a tradição cultural histórica da africanidade está reconhecida no ato de propor conhecimento dirigido pela boca. A fala constrói o caminho ancestral, resgata, protege e pulveriza a cognição. Na prática de costurar a aprendizagem por meio oral, é possível entender esse método como uma tática de sobrevivência dos conhecimentos. Guardar a herança.
Faz-se necessário apresentar que, atravessados pela escravidão, não dominávamos a escrita, pois ela era uma tecnologia não acessada pelos nossos, mulheres e homens negros. Para nós, o saber oralizado possuía significado, importância e credibilidade, diferente de outras culturas, em que o saber escrito era o que possuía legitimação, fruto da colonialidade que superiorizou a escrita.
Dominamos e acreditamos na oralidade, no conhecimento proferido pela boca, mas registramos de modo escrito para que, apesar das tentativas de apagamento e silenciamento, continuemos vivas, contando e escrevendo as nossas histórias, saberes e trajetórias. Perpetuando-nos no mundo, nos apresentamos como intelectuais. Esta, talvez, seja a primeira coisa que tentaram nos tirar: a intelectualidade.
Dito isso, deixo registrado aqui, assim como tenho proferido de modo oral em tantos lugares, um pouco daquilo que tenho de mais especial: a minha HISTÓRIA. A história de uma mulher negra, filha da zona rural, de pai analfabeto e de mãe com o ensino fundamental incompleto. Pais que enxergaram na educação um caminho possível de transformação de vida. Que, apesar do analfabetismo provocado pela impossibilidade de estudar, e não pela ausência do desejo, proferiam um saber pela boca que ecoa e significa até os dias atuais: “Estuda, minha filha, pois o peso da caneta é mais leve que o da enxada”. Foi a partir dessa escuta que minha vida foi se modificando por meio da educação.
Ser professora foi um desejo entrelaçado com a minha existência. Não consigo me lembrar de ter desejado outra profissão. Minha infância foi marcada por ser uma menina muito determinada e mandona. Apesar de ser a mais nova entre minhas primas e primos, nas nossas brincadeiras, eu sempre era a professora, a que ensinava. Antes disso, fui professora dos pés de cacau, passando horas no meio da roça, ensinando-lhes aquilo que aprendia na escola. Sempre fui apaixonada por Ciências, minha matéria preferida, registrada nos diários e caderninhos que toda garotinha da década de 1990 e dos anos 2000 possuía.
Mas foi no ensino médio, na EMARC/IFBaiano, que me descobri apaixonada pela Química. Sentia desejo de entender as transformações da natureza. Instigada por um professor, o MSc. Jonildo Gilson Leite de Moraes, e pela oportunidade ofertada pela instituição de me inserir na iniciação científica, adentrei o universo da Química e segui a vida acadêmica.
Licenciei-me em Química pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (2013-2017). Precisando me (re)inventar e (re)significar, constituo-me mestra em Ensino de Ciências e Matemática pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Formação de Professores da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (2018-2020). Velejei por mares (des)conhecidos para me doutorar em Ensino, História e Filosofia das Ciências pela Universidade Federal da Bahia (2020-2023).
Esta trajetória acadêmica, escrita desse jeito, parece linear, mas na verdade não foi. Muitas coisas aconteceram em cada fase vivenciada, muitos atravessamentos externos – no silêncio das reflexões e nas ações pedagógicas. Muita coisa pulsou, especialmente na finalização do mestrado, quando eu também atuava como professora da Educação Básica no Estado da Bahia e como professora substituta na UFRB. Dentre tantos atravessamentos, talvez o mais importante tenha sido a minha percepção de que, como professora e pesquisadora negra, as relações de raça e gênero eram apagadas na formação de professores e nos currículos escolares. Isso me fez mudar de rota e velejar nas pesquisas sobre a (in)visibilidade de mulheres negras nas Ciências.
Escrevendo este texto, recordo-me exatamente do dia em que meu projeto de doutorado se materializou como uma possibilidade concreta: um auditório lotado no “Julho das Pretas”, organizado pela União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), em Salvador. O tema abordado foi “Insurgências das mulheres na academia”. Durante o evento, aprendi com aquelas mulheres que a questão da (in)visibilidade ultrapassa o que nos é apresentado e/ou percebido, envolvendo diversas disputas de classe, relações de poder, dominação e outros elementos estruturais.
Em meio ao doutorado, fui aprovada no concurso da UNIVASF e me mudei para o interior do Piauí, São Raimundo Nonato, uma cidade rodeada de ciência, cultura e história. Uma história que muda a perspectiva da arqueologia por meio de uma mulher cientista: Niède Guidon. Na UNIVASF, orientei o projeto de pesquisa “Mulheres nas Ciências”.
Minha defesa aconteceu, como dizem por aí, de modo prematuro, no terceiro ano de doutorado, devido à aprovação no concurso efetivo da UFRB e à possibilidade de voltar para casa. A tese, intitulada “Mulheres Negras nas Ciências: discussões sobre gênero, currículo e (in)visibilidade”, é um trabalho que tenho muito orgulho de ter escrito. Atravessou-me profundamente nas questões pessoais e me fez derramar muitas lágrimas em um processo de escrita que, apesar das muitas mãos, ainda assim foi solitário. Escrever é solitário. Oralizar é comunitário.
O trabalho foi se constituindo na perspectiva de responder as inquietações: i) a BNCC serve de orientação e direcionamento para quem? Quais currículos serão pensados a partir de uma base que negligencia gênero? ii) Como as relações raciais estão presentes nas raízes curriculares? Estamos preparando professores para que dialoguem sobre o combate ao racismo ou para a manutenção de práticas racistas e excludentes nas aulas de Química? iii) Como os processos de escravização deixaram marcas que (in)visibilizam mulheres negras nas Ciências? Como os currículos da formação de professores operam para (in)visibilizar mulheres negras como epistemológas das Ciências? e cheguei à conclusão que os currículos da Educação Básica, a formação de professores e a escola operam numa lógica, atravessada e sustentada pelo racismo de continuidade da invisibilidade de mulheres negras como intelectuais.
E o que fazer depois disso? Trabalhar na formação de professores para alargar caminhos. É isso que estou me propondo a fazer na universidade. Por meio do ENSINO, atravesso os estudos dos conceitos de Química, do Currículo e da Formação de Professores, na interface com gênero, diversidade e relações étnico-raciais. Coordeno o projeto de PESQUISA “Que se quebrem as correntes: mulheres-cientistas-sistematicamente-invisibilizadas e a (de)formação de docentes” e o projeto de EXTENSÃO “Encruzilhadas formativas: Educação Antirracista e Povos Originários na Educação”.
Sei que há muito a se fazer, mas acredito que tenho pavimentado o caminho para que outras que venham depois de mim possam enxergar além. Que o trabalho e as contribuições para o desenvolvimento científico de mulheres racializadas sejam visibilizados.
Referências:
OLIVEIRA, Laís Moreira de. Saberes, cuidado e ancestralidade: uma análise das pedagogias de cuidado no Terreiro de Umbanda Caboclo Jaguaracy na cidade de Cruz das Almas – BA. 2023. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Artes, Humanidades e Letras, Cachoeira, 2023. Disponível em: https://sucupira-legado.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=14373836# . Acesso em: 07 fev. 2025.
LIMA, Rafaela dos Santos. Mulheres negras nas ciências: discussões sobre gênero, currículo e (in)visibilidade. 2023. Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Educação, Salvador, 2023. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/36738 . Acesso em: 07 fev. 2025.
Sobre a autora:
Professora do Curso de Licenciatura em Química do Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É membra dos grupos de pesquisa Ensino de Ciências e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e do RESSONAR – Coletivo Universitário de Pesquisa em Representação Social e Narrativas [auto(bio)gráficas] na Educação em Ciências da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Coordenadora do projeto de pesquisa e extensão “Encruzilhadas Formativas”.
Doutora em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia. Mestra em Educação em Ciências e Matemática pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Licenciada em Química pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
Redação e Foto: Rafaela dos Santos Lima
Diagramação: Naiara Raissa da Silva Passos