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v. 1, n. 9, nov. 2023
Entrevista com Eva Santos sobre sua pesquisa que identificou as infor(vivências) na Casa de Farinha do Povoado Terreirão, na Bahia

Entrevista com Eva Santos sobre sua pesquisa que identificou as infor(vivências) na Casa de Farinha do Povoado Terreirão, na Bahia

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Entrevista com Eva Santos sobre sua pesquisa que identificou as infor(vivências) na Casa de Farinha do Povoado Terreirão, na Bahia

Eva Dayane Jesus dos Santos
evabibliotecaria@gmail.com

Sobre a entrevistada

A recém-mestre e bibliotecária Eva Dayane Jesus dos Santos defendeu, em 2022, sua dissertação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia, sob orientação da Profª. Drª. Zeny Duarte de Miranda.

Natural da Bahia, Eva tem como hobbies apreciar a companhia da família, ir à roça, conversar e ouvir causos. No âmbito profissional, atua como bibliotecária na Biblioteca Universitária da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Sua dissertação, intitulada “Maniho’k: informação e memória da Casa de Farinha do Povoado Terreirão, Muniz Ferreira, Bahia” buscou materializar na escrevivência as infor(vivências), ou seja, informações e a memória cultural imaterial do Povoado Terreirão na Casa de Farinha do Povoado Terreirão, localizado no município de Muniz Ferreira, estado da Bahia. Concluindo que a base dos elementos informacionais na Casa de Farinha do Povoado Terreirão, foi sendo materializada por artefatos, técnicas, tecnologias e demais oralidades (música, histórias oralizadas, dança), elementos estes imprescindíveis para a preservação e disseminação da informação ancestral.

Convidamos Eva para nos relatar, nesta entrevista, como foi a sua experiência no programa de mestrado e os desdobramentos de sua pesquisa.

Divulga-CI: O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação?

Eva Santos (EV):  Muitas coisas me levaram à escolha pelo mestrado, a possibilidade de aumentar minha renda no serviço público (sou uma mulher que advenho de situação de vulnerabilidade social) e também a necessidade de atualização profissional.

A escolha de meu tema emergiu com o nascimento do meu filho em 2016. Me perguntei qual legado eu deixaria para meu filho, para além de bens materiais. Foi quando me dei conta que a minha família ia apenas até minha mãe. Eu nunca tinha me questionado sobre antes da minha mãe, sobre meus avós (eles já encantaram) e demais familiares. Além disso, meu tio-avó construiu em 2016 a casa de farinha que pesquisei, e ele mesmo começou a me contar coisas jamais escutadas antes. Então entendi que eu estava de frente com a memória, com a cultura imaterial. Mas bem antes disso, no ano de 1994, quando eu tinha 10 anos de idade, experimentar 65 dias de férias (dezembro a fevereiro) no Povoado Terreirão, me fez despertar e inquietar com muitas coisas. 

Dessa forma nasceu o tema de minha dissertação, pelo movimento Sankofa, pelo retorno ao passado para compreender e pegar o que me pertence, minha história, minha origem e de meu povo.

Entendo que minha história não é sobre mim, mas sobre um coletivo indígena e negro que foi silenciado no Recôncavo baiana, mas continua existindo. Assim, eu entendi que eu precisava compreender a memória, os silenciamentos, e os elementos informacionais em comunidades, que não deixam de ser formas de resistência.

DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?

ES: Creio que serão as pessoas profissionais da Ciência da informação e todas as pessoas que estão na busca por suas identidades ou quem se identificar pelo tema. Além de abrir caminhos para novas perspectivas de investigação baseada nas infor (vivências) de cada um. 

DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade? 

ES: Primeiro é a quebra do discurso colonizador de que informação é o que é escrito, registrado na escrita, pois repetir isso é excluir outras formas de produção da informação que cria memórias e dão continuidade a outras formas de existência, sobretudo quando é a informação produzida pelos grupos étnicos raciais no Brasil. Devemos lembrar que o Brasil é essencialmente um território das culturas das oralidades. Portanto, estamos falando de cultura imaterial, e essas também produzem inscrições que informam. 

Para avançar nas discussões sobre informação imaterial, é necessário reconhecer e modificar o discurso colonizador da área. Depois é uma provocação, pois dentro da área já existem trabalhos que trazem as questões sobre a problemática do discurso colonizador, que influencia nossa prática profissional e a vida das pessoas. 

Sabemos que estamos num momento de disputa de narrativas, em que o discurso étnico racial agora ganha força e maior visibilidade. Mas essa disputa sempre aconteceu em diversos momentos da história da formação do Estado brasileiro. Basta lembrar as inúmeras rebeliões escravas e indígenas que ocorreram desde que Cabral pisou em solo de Pindorama até a atualidade. Mas estudamos desde sempre que os indígenas foram mortos e ficaram aprisionados no passado e os negros foram escravizados porque traíram a eles mesmo ou outras coisas que são ditas por ai. 

O que na verdade existe é o apagamento sistemático da história dos indígenas e negros no país, sejam eles nos livros didáticos, nos conteúdos abordados em salas de aula desde a primeira infância até a universidade; pela seleção, organização, indexação e disseminação em sistemas de informação, unidades de informação, e instituições de ensino, ou ainda pelos interesses da própria cadeia produtiva do livro, que durante muito tempo reproduziu e ainda reproduz a invisibilidade de autores negras/os, indígenas e de outros grupos sociais.

DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós Graduação? Por quê?

ES: Informação e memória. Porque trata-se de um estudo entre a informação construída em comunidade cultural, que são informações baseadas em oralidades (utilizo esse termo no sentido dado por Sandra Petit, Leda Martins e Hambaté Bâ). E memória, pois se trata de informações que são materializadas em inúmeros suportes (a escrita não é a forma escolhida, dentro do que pude perceber na revisão de literatura, pois além de fazer parte da tradição o esforço de lembrar, a memória é a principal meio de guarda, preservação e disseminação desses saberes pelos que convivem ali dentro da cultura, geralmente transmitidos de geração a geração).

É interessante notar, que mesmo em comunidades letradas, como revela Hambaté Bâ nos estudos apresentados em “A tradição viva”, materializar informações sobre alguns grupos étnicos-raciais, é uma escolha. Para eles, ou nós, porque me sinto pertencente a isso também, fazer, contar, rememorar pelas oralidades (dançar, cantar, produzir artefatos, oratória etc) é um jeito de disseminar, aprender e preservar o que de geração a geração foi guardado.

Certa vez conversando com um ancião da comunidade do Terreirão, perguntei porque as casas não eram feitas para durar. E ele sabiamente me respondeu que era para que eles não esquecessem como se fazia, para poder continuar vivenciado e ensinando para os mais jovens. E ele me questionou porque a gente gostava de casas tão grandes, se a casa serve apenas para armazenar alimentos e descansar a noite, após um dia de labuta. Ou seja, isso é um modo de ver e ler o mundo, herança dos ensinamentos ancestrais. Afinal, nós seres humanos precisamos mesmo de tantas coisas? Será que conseguiríamos viver com menos do que vivemos hoje? E mais, o estilo de vida que adotamos dar conta e consegue de fato proteger nossa grande casa, que é o planeta Terra?

DC: Citaria algum trabalho (artigo, dissertação, tese) ou ação decisiva para sua dissertação? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?

ES: Sim. As escritoras negras Conceição Evaristo, Leda Martins, Sandra Petit, Vanda Machado, os livros da biblioteconomia negra publicadas pelo selo Nyota e o autor africano Hambaté Bâ. Na Ciência da Informação (CI), minhas grandes inspirações reflexivas são Francielle Garcês e Elizângela Gomes. Essas autoras e autor foram decisivos para o desenrolar das práticas reflexivas. Outra grande referência, mas agora falando em referência viva, biblioteca viva, é o meu tio-avô Toim. A ação dele dentro do Povoado Terreirão, também foi decisiva para a elaboração da dissertação e inúmeros desdobramentos dela. 

Cito também os trabalhos de Aline Franca e Célia Xacriabá (Célia é Deputada Federal eleita por Minas Gerais (2023-2026).

i. FRANCA, Aline da Silva. Do cocar ao catálogo: a representação bibliográfica da autoria indígena no Brasil. 2016. Dissertação (Mestrado) – Pós-Graduação em Biblioteconomia (PPGB), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro, 2016. 

ii. FRANCA, Aline da Silva. Narrativas do povo: o conhecimento tradicional registrado sob a autoria indígena coletiva. In: CONGRESSO INTERNACIONAL POVOS INDÍGENAS DA AMÉRICA LATINA – CIPIAL., 3, Brasília, jul. 2019. Anais […]. Brasília: Universidade de Brasília, 2019;

iii. CORREIA, Célia Nunes. O barro, o jenipapo e o giz no fazer epistemológico de autoria Xacriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. 2018. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação Profissional em Desenvolvimento Sustentável, Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

Ambas as autoras foram de grandes contribuições para pensar na informação que é produzida dentro de comunidades e como isso é apagado em produções literárias ou sistemas de informação, quando não há entendimento do que seja a cultura considerada do “outro”.

A Aline e a Célia são pessoas indígenas, a primeira da área da Biblioteconomia e Ciência da Informação, com importantes contribuições na área a respeito do conhecimento étnico-racial. Aline também é curadora da livraria indígena Maracá junto com o Daniel Munduruku e atualmente ela é Coordenadora Geral de Leitura e Bibliotecas no Ministério da Cultura – Minc). Já a dissertação de Célia revela aspectos importantes sobre as infor(vivências) indígenas e suas maneiras de em alguns momentos silenciar para que possam existir, dentre outras questões relacionadas a educação indígena.

Para a CI são conhecimentos importantes e diria ainda mais, que carecem de escutas sensíveis dentro da área e atitudes que de fato contribuam para que as pessoas de origem étnico-raciais possam de fato exercer seus direitos de acesso pleno a outras informações que poderão não só contribuir para a reafirmação de identidades, mas também para fazer valer outros direitos, como acesso à terra, por exemplo.

DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?

ES: A metodologia não foi uma decisão simples, muito menos fácil. Passei e li muitas metodologias e confesso que tive dificuldade para escolher uma, pois todas sugerem o “enquadramento” de coisas. Eu sabia que a minha proposta não caberia dentro de “enquadramentos”, pois trata-se de experiências étnicas, de subjetividades, de outras formas de fazer ciência. Então precisei ser criativa para falar e trabalhar cada questão com leveza na tentativa de fugir dos “enquadramentos”.

Acabei escolhendo o estudo de caso, acordo e negociação com minha orientadora (nós não escrevemos sozinhos, as coisas precisam ser dialogadas e negociadas com a/o orientador/a, pois eles são as pessoas que vão dar o aval para seguir ou não). Embora caberia muito bem a história oral, mas confesso que a história do “enquadramento” me incomodava muito! Afinal, já é sabido que existem outras formas de fazer a metodologia, sem tentar “enquadrar” coisas em caixas, mas na época eu também não conhecia uma que fosse fácil apresentar para minha orientadora e negociar com ela. Vale a pena ficar atento a isso, lutar e criar possibilidades outras. Os povos tradicionais fazem esse movimento o tempo inteiro e guardam conhecimentos milenares na vivência, em práticas do cotidiano. Isso não é metodologia também? As metodologias tradicionais, as mais valorizadas dentro da CI, tendem a tratar as experiências das pessoas como se fosse apenas do “outro”, mas quando adentro a qualquer experiência também não sou afetado? É possível separar, nos tornar 100% neutros? E as pesquisas aleatórias que são realizadas não são produzidas por motivações pessoais de alguém?

Essa história de neutralidade nasce na ciência Moderna, ganha muita força no discurso do século XX, mas rui antes mesmo do século acabar. As ciências sempre existiram e há muitas formas de fazê-la. Já parou para refletir sobre isso?

DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?

ES: Minha primeira dificuldade foi buscar o tempo inteiro o equilíbrio de meu estado emocional e o controle da ansiedade. Depois a sensação de estar perdendo momentos com o meu filho (no início ele tinha 2 anos e estava caminhando para fazer 3, finalizei ele já tinha 6 anos). Me ausentar dele, mesmo quando eu tentava dar atenção, brincar com ele foi a parte mais difícil e dolorida.

A pandemia de covid-19 também foi um grande desafio, pois foi um momento de medo, principalmente da morte, de excessos de telas, de privação de liberdade, de perdas de pessoas queridas.

Além disso, a dificuldade de delimitar os textos para leitura, levei muito tempo para encontrar as/os autores que aproximavam das ideias que me levasse a compreender sobre o racismo e apagamentos.

DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a dissertação?

ES: A inspiração emergia a todo tempo. Busquei no processo entender cada momento de criação e também de paralisia. 

Sim! Respeitei cada momento que precisei parar, mas nem sempre foi possível controlar tudo. Ouvir inúmeros depoimentos de colegas que ficaram deprimidos ou desenvolviam inúmeras doenças. Busquei no processo dissertativo a cura também. Busquei apoio psicológico quando não consegui mais levar toda a tensão “sozinha” (por que nunca estamos inteiramente sozinhas, embora pareça, há sempre pessoas para ouvir, opinar e segurar na mão da gente).

Com o tempo fui aprendendo o quanto era importante os momentos de paralisia, o quanto foi fundamental para dar lugar a imaginação, a criação, a criatividade. Mas também percebi e soube desde o início que não era um trabalho qualquer, estava também presente ali a ancestralidade que carrego e fala, se comunica de muitas formas. Me senti guiada pela ancestralidade, para entender e visualizar o que meus olhos não seriam capazes de alcançar. Eu senti a ancestralidade em muitos momentos. Ela vinha em formato de sonho, na roça, no contato com o fogo, com a terra, com a água, com os animais e plantas (numa simples observação), no observar como as pessoas falavam, e se comunicam com o corpo, como elas contavam suas histórias e o que era importante para elas.

A leitura de literatura indígena e afro também me inspiraram muito! A beleza e leveza que a filosofia indígena e africana trata diversos assuntos, sempre interligados, envolvendo inúmeras ciências e também um espírito de coletividade. Todas essas coisas foram importantes para minha inspiração. Muitas vezes dormi com o caderno e a caneta junto da cama. Em alguns momentos acordava de madrugada e anotava o que vinha em sonho, para depois decifrar. Outros momentos aproveitava para explorar a ideia que emergia de repente até a exaustão, mesmo que depois reescrevesse tudo de novo. 

Percebi que o processo da escrita se funde o tempo inteiro com o das possibilidades. O tempo inteiro fazemos escolhas das palavras, dos termos e conceitos que faremos uso. Então quando entendi que dentro da área da CI as pessoas que tinham trabalhado com estudos culturais, estavam sempre no dilema entre as oralidades e a escrita, percebi que havia ali uma confluência de saberes. De saberes diferentes que se complementam, mas sentia que havia algo ainda a ser dito. Foi então que percebi com a escritora Conceição Evaristo, nas escrevivências, que não poderia existir escrita sem vivências. Daí emergiu o termo infor(vivências). Infor(vivências) nasce quando entendo que as pessoas dentro dos contextos comunitários coletivos compartilham entre si as memórias ancestrais que permeiam de geração a geração, de muitas maneiras (na produção de instrumentos, processos, elas vão dando continuidade a saberes que transitam a milhares de anos). A história da mandioca tem mais de doze mil anos e ela só existe porque os povos originários preservaram e transmitiram para suas gerações todo esse conhecimento que chega até hoje em nossas mesas (aipim, tapioca, farinha, mingau, beijús…)

DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da dissertação?

ES: Sim. É um processo muito solitário e de muitas idas e vindas. Eu senti muita dificuldade em entender como eu iria transmitir para as pessoas o que me incomodava. Eu sentia e percebia que sempre houve uma lacuna entre o que é dito, escrito sobre os “brancos” e as demais culturas. Ao meu vê, a invisibilidade cultural ou o apagamento cultural (sim, há sistematicamente um apagamento, quando documentos sobre as populações negras e indígenas que estão ainda sobre a tutela de famílias e instituições e não são tratadas adequadamente por seus mantenedores, bem como toda uma lógica que tenta enquadrar tudo o que é da cultura negra, indígena ou de outras representações sociais com “menos valor”, na verdade o que existe é uma apropriação cultural para se ganhar em cima do que o “branco” considera exótico ou primitivo).

Outro ponto importante é a dificuldade de acesso a tais documentos, uma vez que eles continuam nas mãos dos “brancos” e de instituições que não estão interessadas no fortalecimento de discursos insurgentes. Não saber ou pior ser impossibilitado de saber sua origem é uma dor que a descendência de pessoas negras e indígenas carregam, ainda que não tenham consciência disso, de fato muitas pessoas não têm ciência sobre si. Embora exista possibilidades outras de reconexão com a ancestralidade e também se saber e conhecer coisas que jamais entrarão nos livros, o “segredo”, ter ciência que existem possibilidades de conhecer um pouco mais sobre nossa linhagem, é minada a depender de quem esteja fazendo a pesquisa. Eles, os “brancos” podem ter acesso com facilidade, falar por nossa linhagem, mas a nós, pessoas negra/os, indígenas nos são criadas barreiras para ter acesso a esse corpo documental. Em alguns momentos me vi nessa situação, de saber onde eu poderia solicitar acesso a documentos e fotos, mas ao mesmo tempo, eu pensava muito se faria ou não por causa das especulações no município. Município pequeno todo mundo sabe de tudo.

Em outro momento percebi a falta de boa vontade para instituições públicas fornecerem informação, mesmo eu me apresentando como pesquisadora e explicando a pesquisa. Queria saber se o lugar que eu pesquisava era quilombo, pela pergunta, nem precisa dizer sobre o medo e pavor que as instituições e pessoas detentoras do poder econômico tem das pessoas se auto afirmarem indígenas ou quilombolas.

DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?

ES: Foi bastante delicado. Atravessamos uma pandemia. Foram dois anos de confinamento ou restrições para muitas coisas. O marido também fez mestrado na época e aí, nesse processo, percebi o quanto de machismo existia em nosso relacionamento. Os boicotes em alguns momentos, ainda que ele negasse e que eu por vezes quisesse acreditar que não era machismo. Vimos como uma oportunidade para dialogar sobre esses assuntos. Conviver nesse processo frenético com criança pequena confinada dentro de casa também foi muito desafiador. No período optamos por não expor nosso filho a telas (celular e computadores). Entendemos que ele precisava aprimorar os sentidos, o sensorial, então me dediquei a estudar também sobre educação infantil e pensar em estratégias pedagógicas para amenizar os estresse de meu filho tanto no meu processo dissertativo, quanto no processo pandêmico.

Em alguns momentos eu também fui base de apoio e acolhimento a outras crianças da família. Não somos de família rica. Muitos dos nossos estão à beira de situações de vulnerabilidade social e mesmo com toda a loucura do trabalho remoto, dissertação, pandemia, ainda assim consegui acolher mais duas crianças (sobrinhos, filho de minha irmã e sobrinha).

DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?

ES: Considerando que não existe escolha neutra, oriento que as pessoas comecem por onde sentem prazer e alegria, para que seja prazeroso, para que não seja só mais um texto escrito. Para que faça sentido para sua própria vida. Para que faça sentido para outras pessoas. 

Uma vez, durante uma disciplina, um colega colombiano me fez uma pergunta. A pergunta foi a seguinte: Que importância tem seu trabalho para daqui a 50 anos? Na época fui pega de surpresa, estava bem no início da pesquisa, sem saber direito como fazer. Respondi rapidamente que tem um valor cultural. Hoje acrescentaria que a minha dissertação e todos os desdobramentos que já teve são aberturas de portas, possibilidades de caminhos para outras pessoas. Além disso, ela apresenta uma possibilidade de encontro com outras narrativas. É possível por exemplo encontrar em muitos escritos sobre a “extinção” de povos. De fato muitos deixaram de existir, no entanto muitos outros continuaram e continuam. É o meu caso, a produção dissertativa me levou de volta para a minha história, no processo descobri minhas linhagens indígenas de Pindorama e de África. Isso me trouxe paz interior, conforto, cura! Busquem a cura interior no processo criativo de vocês! Busquem conexões para além do acadêmico. Leiam mundo! Leiam literaturas! Intensifiquem oralituras…

DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado (projetos, artigos, trabalhos em eventos, participação em laboratórios e grupos de pesquisa)? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?

ES: Na medida do possível, mesmo cheia de insegurança não hesitei em escrever para eventos, artigos e projetos. Participar de grupos de pesquisa também foi importante, em especial a Rede combinamos escreviver.

A primeira publicação e apresentação em evento me fortaleceu, me apontou caminhos. O artigo foi o divisor de águas:

SANTOS, E. D. J.; MIRANDA, Z. D. Casa de Farinha do Povoado Terreirão, Muniz Ferreira, Bahia. Revista Informação na Sociedade Contemporânea, v. 6, p. e27736-24, 2022.

Esse artigo me fez perceber que estávamos sendo entendidas e que a área também percebia como importante. Mas até o ponto final da dissertação, muita coisa foi mudando, pois vai chegando de pouco em pouco segurança e maturidade. 

Considero este artigo específico, como o mais importante, pois a partir das reflexões senti que estava ali dando um salto, tanto pelo reconhecimento de pessoas de outras áreas do conhecimento, como o campo da educação, como para mim mesma. Ali percebi o quanto grandiosa era minha pesquisa e o quanto inovadora também era e poderá contribuir com as áreas da Biblioteconomia e a CI. 

Além dele, outras produções foram importantes para esse grande salto: 

SANTOS, E. D. J.; SANTANA, R. D. ; MADUREIRA, J. C. M. ; SANTOS, Y. P. . A Biblioteca Universitária Afrocentrada experiências da biblioteca da Faculdade de Arquitetura da UFBA. Revista Fontes Documentais, v. 4, p. 65-81-81, 2021. 

Nesse artigo eu me aproprio do conceito de afrocentricidade e passo a compreender porque é importante ler autores afrodiásporicos ou africanos e indígenas. São pessoas que nos ajudam a pensar a nossa experiência, as nossas ciências e epistemologias. 

Ainda escrevi: 

SANTOS, E. D. J. Sankofear para continuar: memória ancestral negra e indígena presente no Povoado Terreirão, Muniz Ferreira – BA. Revista Macambira, v. 6, p. 1-13, 2022; e um capítulo do livro Rede combinamos de escreviver: experiências de educação antirracista com duas educadoras baianas incríveis. 

SANTOS, E. D. J.; ; SANTOS, A. Q. C. ; SANTOS, C. S. Das trajetórias que nos definem como pessoas e as práticas antirracistas na educação. In: Iris Verena Oliveira; Jeane Mabos Araújo Lima; Fabiana Pedreira Gelard. (Org.). Rede combinamos de escreviver: experiências de educação antirracista. 1. ed. Curitiba: CRV, 2022, v. , p. 83-107. 

Além disso, participei de algumas rodas de conversa, podcast, Festival Literário Internacional de Feira de Santana, Bahia, oficinas no Fórum da Igualdade Racial na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia em 2022 e no Conselho Regional de Biblioteconomia – CRB5 em Salvador, BA, este ano. 

DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?

ES: Tenho me dedicado ao trabalho no serviço público, na biblioteca universitária. Nele penso e já atuo na disseminação das culturas étnico-raciais em escolas públicas e privadas nas cidades do Recôncavo da Bahia, Santo Antônio de Jesus e Muniz Ferreira, e também na cidade de Feira de Santana, sertão da Bahia. Penso em como desenvolver projetos de incentivo a leituras e também de fortalecimento de identidades negras e indígenas. 

A região do Recôncavo da Bahia ainda é e sempre foi indígena. As pessoas mais velhas sabem disso e dizem quando há possibilidade de dizer. Mas para além das pessoas reafirmarem ou não suas identidades é possível notá-las diariamente na região mencionada nesses traços e costumes. Nas feiras, povoados rurais, cidades há inúmeras infor(vivências) que são transmitidas de geração a geração e coletivamente. Também nas conversas familiares, nas histórias que são contadas em formato de lendas ou mitos, nos versos, nas músicas de caboclo ou em cultos de matriz africana. Na região do recôncavo da Bahia se fala cotidianamente trechos das mitologias dos orixás, e nem se quer as pessoas percebem isso. Um exemplo disso: “Vou partir a mil”, é a história de EXu ou então “Vou comer pelas beiradas”, que é um dos mitãs de Oxum. Ou ainda a música de caboclo “Quem de tudo se admira, corre o mundo, quer de vê/(repete 2 vezes)/ fogo no mar/terror (repete 2 vezes)”, que são fragmentos da memória Tupinambá no território do recôncavo da Bahia. Um tributo a Tupã, o trovão, um dos deuses dos povos Tupinambá.

DC: Pretende fazer doutorado? Será na mesma área do mestrado?

ES: Sim, estou me preparando para isso. Estou pensando na área da educação (Programa de Pós-graduação em Educação na UFC, ou Programa de Pós Graduação em Educação e contemporaneidade, na UNEB) ou Programa de Pós Graduação em Difusão do conhecimento na UFBA, pois me vejo uma educadora. 

Quero aprofundar o conhecimento na ancestralidade e trabalhar com esses saberes e práticas na formação de pessoas bibliotecárias. 

DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?

ES: Escreveria com mais tranquilidade a metodologia e assumiria com mais contundência outro método, tirando do foco o “enquadramento”.

DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de mestrado?

ES: Aceitar meu projeto foi um grande feito, sem isso eu não teria desenvolvido a pesquisa. Em contrapartida, o Programa ganhou uma grande pesquisadora, com uma produção considerável, geralmente somos obrigados a apresentar um trabalho em evento e publicar um artigo em um periódico científico. Fiz e tenho feito mais do que isso.

Sinto prazer em fazer, em contribuir com a área. 

DC: Você por você:

ES: O mestrado me amadureceu para muitas coisas, sobretudo para o campo profissional. Durante a trajetória acadêmica, entre leituras, disciplinas e ampliação de rede profissional, fui me deparando com questões até então não percebidas por mim em minha atuação profissional, tais como certificar que nossas bibliotecas ainda são muito conservadoras, de uma cultura europeizada. Percebi o quanto não me ver no acervo é uma perda cultural para a construção ou reafirmação de identidades.

Ao ter acesso a literaturas decoloniais, percebi que faz sim diferença ter acesso a outras construções sobre outras culturas, sobretudo quando elas são de natureza étnico-raciais. Na cultura do “branco” eu sou o outro, o estranho, o primitivo, o exótico, o que não tem história (sugiro a leitura do livro Por um feminismo afrolatino americano da escritora brasileira Lelia Gonzalez, escritora e pesquisadora brasileira e também de Grada Kilomba – Memória da plantação). 

Na produção cultural/ intelectual/ acadêmica étnica-racial eu simplesmente existo, minhas subjetividades importam, então eu posso investigar a partir de um conceito muito importante, que é o Sankofa. Sankofa fala sobre o autoconhecimento, em valorizar o que já conhecemos e aprofundar as coisas que estão ainda nas camadas. Sankofa é aprender em comunidade. E o conceito das escrevivências vem nos ensinar isso, que é preciso valorizar, aprofundar o que já sabemos, o que já conhecemos, a partir de nossas experiências, que partem de uma experiência coletiva. 

Minha experiência não é a autobiografia de Eva Dayane, e sim a experiência coletiva de quem me forjou coletivamente, de comunidades étnicas, de aldeias e quilombos. Então minha dissertação nasce assim, daquilo que vivi em coletividade. E é sobre isso que tenho pensado: como nossas bibliotecas poderão se tornar atrativas para comunidades étnicas-raciais se as pessoas que advêm dessas comunidades não se verem nas bibliotecas? Como, enquanto pessoas bibliotecárias podemos colaborar com esse público? Quais são suas necessidades, demandas? Acredito que a forma de aprender é ouvindo. 

O Brasil é uma nação que contém muitas outras nações, com povos diversos. Dentre a diversidade há muito conhecimento que advém das oralidades. Nossas inscrições são iniciadas em muitos lugares, até serem desenhadas na “pele de árvore”, como diz nosso parente Yanomami David Kopenawa, derivam bastante sobre o espaço. E são essas coisas, subjetividades que precisam ser consideradas para um salto na área. Para os diversos povos indígenas no Brasil e o Hambaté Bâ por exemplo, uma pessoa é uma biblioteca ou arquivo. O livro, a biblioteca, o arquivo começa no corpo vivo, só depois disso que migram e materializam ideias em “peles de árvores”.


Entrevistado: Eva Dayane Jesus dos Santos

Entrevista concedida em: 13 ago. 2023 aos Editores.

Formato de entrevista: Escrita 

Redação da Apresentação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

Fotografia: Eva Dayane Jesus dos Santos

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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