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v. 3, n. 3, mar. 2025
Editorial: O Bibliotecário como Testemunha da História, por Tracie Hall

Editorial: O Bibliotecário como Testemunha da História, por Tracie Hall

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O Bibliotecário como Testemunha da História

Tracie Hall

tdhall@uw.edu

Nos últimos anos, tem havido um debate prolongado sobre a posição política apropriada para as bibliotecas. De um lado, argumenta-se a favor de um distanciamento institucional silencioso dos debates contemporâneos, considerando a biblioteca como “uma esfera neutra acima do conflito” (Kurtz, 2022). Do outro, defende-se um engajamento comunitário profundo que, em última instância, “trabalha para uma sociedade mais equitativa” (Cooke et al., 2022). Embora essa discussão seja importante, pois obriga a profissão a uma autoavaliação contínua e a um reajuste constante, ela também levanta a questão de se o trabalho de fornecer acesso ao conhecimento e às ideias pode existir isoladamente ou se exige o reconhecimento ativo tanto da diversidade social quanto da desigualdade social. O fato de que esse debate pode ser facilmente percebido como meramente conceitual é preocupante, senão perigoso. Quando as bibliotecas, intencionalmente ou não, mantêm o status quo, reforçando a estrutura de poder existente e as desigualdades que ela gera em termos de quem é favorecido e quem é penalizado, as consequências são bastante concretas.

No entanto, dada a complexidade do ambiente informacional atual — com a normalização da desinformação, a intensificação da censura motivada politicamente, o aumento da disparidade e da segregação digital, a persistência dos desertos digitais e do desinvestimento, a criação intencional de ilhas de informação possibilitada por uma curadoria algorítmica exaustiva (senão invasiva) e a perseguição e criminalização das bibliotecas e dos materiais que elas coletam e disponibilizam —, a questão deve ir além de saber se a manutenção do status quo é a postura profissional correta para questionar se é uma postura eticamente justificável. Como observou de forma perspicaz um leitor em um artigo online sobre o embate a respeito da defesa da liberdade intelectual pelas bibliotecas: “O bem comum é uma ameaça ao status quo” (Box, 2022).

Essa questão ética é evocada por dois motivos. Primeiro, porque a biblioteconomia, como a maioria das profissões, opera sob um código de ética criado para orientar a conduta profissional. Esses códigos geralmente são baseados em um amplo consenso sobre valores como honestidade, integridade, responsabilidade e acessibilidade. Por exemplo, o Código de Ética da American Library Association (ALA) começa com uma declaração de compromisso com a redução proativa das barreiras ao acesso à informação: “Oferecemos o mais alto nível de serviço a todos os usuários da biblioteca por meio de recursos organizados de forma adequada e útil; políticas de serviço equitativas; acesso equitativo; e respostas precisas, imparciais e corteses a todas as solicitações.” O código se encerra com uma diretriz clara de responsabilidade social: “Afirmamos a dignidade e os direitos inerentes de todas as pessoas. Trabalhamos para reconhecer e desmantelar preconceitos sistêmicos e individuais; enfrentar desigualdades e opressões; fortalecer a diversidade e a inclusão; e promover a justiça racial e social em nossas bibliotecas, comunidades, profissão e associações por meio da conscientização, defesa, educação, colaboração, serviços e alocação de recursos e espaços” (ALA, 2021). O Código de Ética da ALA reconhece que reparações sociais são necessárias para alcançar o nível de serviço idealizado pela profissão. A segunda razão para essa invocação ética decorre da atribuição moral que o público confere às bibliotecas e aos bibliotecários. Diversos estudos mostram que as bibliotecas continuam sendo uma das instituições comunitárias mais confiáveis (Geiger, 2017). Em uma pesquisa da Ipsos de 2022, os bibliotecários foram classificados como a segunda profissão mais confiável, atrás apenas dos enfermeiros, com 93% dos entrevistados afirmando que “confiariam nos bibliotecários para dizer a verdade” (Clemence, 2022).

A alta expectativa ética que o setor de Biblioteconomia e Ciência da Informação impõe a si mesmo é igualada, se não superada, pela confiança que as pessoas depositam nela. Em uma era na qual a veracidade da informação é cada vez mais questionável, espera-se que as bibliotecas cumpram sua obrigação social de serem fontes confiáveis e que os bibliotecários assumam o papel de guardiões e defensores da verdade.

Ao ser encarregado do papel de guardião e defensor da verdade pública, o bibliotecário se aproxima da função de testemunha, cuja atribuição vai além de apenas para preservar e fornecer acesso ao registro humano, mas também, conforme afirma o Oxford English Dictionary, “apresentar evidências em relação a questões de fato sob investigação” (2025). No contexto jurídico, as quatro principais expectativas em relação a uma testemunha são “conhecimento e experiência, imparcialidade e objetividade, comunicação eficaz e adesão a padrões éticos” (Lavine, 2023). O trabalho de dizer a verdade, o ato de testemunhar, não são posições apolíticas. A autora Erna Paris observa: “As testemunhas assumem responsabilidades” e acrescenta que “ser uma testemunha ou um espectador não é uma escolha isenta de valores, mas, inadvertidamente, uma posição moral” (2000).

Ser uma testemunha da história é engajar-se no ato de compartilhar informações como meio de chamar a atenção pública para um ato ou evento ocorrido no passado ou no presente, com o objetivo de gerar memória coletiva, garantir visibilidade e responsabilidade e ampliar a compreensão pública. Em seu livro The Witness as Object, no qual examina o uso de testemunhos em vídeo em museus do Holocausto, a professora de História Pública Steffi De Jong explora o termo alemão zeitzeuge, ou ‘testemunha da história’ (2018). Ao amalgamar ‘a ideia de ter testemunhado algo in situ com a de dar testemunho ex post facto’, De Jong descreve o zeitzeuge como ‘alguém que sabe algo, mas também alguém ciente das consequências morais de seu conhecimento’.

É importante notar que o ato de testemunhar a história – ver e descrever o que aconteceu e o que está acontecendo, em vez de permanecer em silêncio – seja entendido, em última instância, como uma obrigação moral ou ética, e não como um ato político ou partidário dos bibliotecários, cuja credibilidade pública reside no cumprimento dessa responsabilidade. A neutralidade silenciosa, ao que parece, pode ser uma postura ainda mais política e inerentemente tendenciosa, pois, ao não responder ao que está acontecendo na sociedade, há implicitamente uma tomada de partido. Como observou o sobrevivente do Holocausto e vencedor do Prêmio Nobel, Elie Wiesel: “A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima.”

Em tempos de disseminação desenfreada de desinformação, censura e epistemicídio, o papel de testemunha exige coragem e comprometimento. À medida que bibliotecas e bibliotecários enfrentam ataques alarmantes e incessantes, torna-se essencial adotar estratégias de sobrevivência. A afirmação de que a profissão bibliotecária já enfrentou desafios semelhantes no passado não serve como consolo, mas sim como um lembrete de que, apesar de sua heterogeneidade interna e diversidade de opiniões, os bibliotecários têm atuado como testemunhas da história. Eles protegem e coletam informações em períodos de guerra, tirania, agitação política, desastres naturais e provocados pelo homem, lutas por direitos civis, crises econômicas, pandemias e emergências de saúde pública, além de resistirem a tentativas de suprimir o pensamento e a expressão livres.

É fundamental que a profissão continue a rejeitar tentativas de coagir nosso silêncio e impor a autocensura, garantindo a adesão ao nosso código de ética e honrando a confiança e a responsabilidade que o público depositou em nós como guardiões e defensores da verdade e testemunhas da história.

Referências

AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. ALA code of ethics. American Library Association, 11 mar. 2025. Disponível em: https://www.ala.org/tools/ethics . Acesso em: 12 mar. 2025.

BOX. “The common good stands as a menace to the status quo.” MetaFilter, 15 dez. 2022. Disponível em: https://www.metafilter.com/197575/The-common-good-stands-as-a-menace-to-the-status-quo%20The%20Horrifying%20War%20on%20Libraries . Acesso em: 12 mar. 2025.

CLEMENCE, M. Ipsos Veracity Index: Trust in the police drops for the second year in a row. Ipsos, 2022. Disponível em: https://www.ipsos.com/en-uk/ipsos-veracity-index-trust-police-drops-second-year-row . Acesso em: 12 mar. 2025.

COOKE, N. A. et al. Once more for those in the back: Libraries are not neutral. Publisher’s Weekly, 10 jun. 2022. Disponível em: https://www.publishersweekly.com/pw/by-topic/industry-news/libraries/article/89576-once-more-for-those-in-the-back-libraries-are-not-neutral.html . Acesso em: 12 mar. 2025.

DE JONG, S. The witness as object: Video testimonies in Holocaust museums. Berghahn Books, 2018. Disponível em: https://www.berghahnbooks.com/title/dejongwitness . Acesso em: 12 mar. 2025.

GEIGER, A. W. Most Americans – especially Millennials – say libraries can help them find reliable, trustworthy information. Pew Research Center, 30 ago. 2017. Disponível em: https://www.pewresearch.org/short-reads/2017/08/30/most-americans-especially-millennials-say-libraries-can-help-them-find-reliable-trustworthy-information/ . Acesso em: 12 mar. 2025.

KURTZ, S. The battle for the soul of the library. The New York Times, 24 fev. 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/02/24/opinion/battle-library-neutrality.html . Acesso em: 12 mar. 2025.

LAVINE, J. Unveiling the four pillars of an expert witness. Joel Lavine, 2023. Disponível em: https://joellavine.com/unveiling-the-four-pillars-of-an-expert-witness/ . Acesso em: 12 mar. 2025.

OXFORD ENGLISH DICTIONARY. Witness, N. Meanings, etymology and more. 2025. Disponível em: https://www.oed.com/dictionary/witness_n?tl=true#14198402 . Acesso em: 12 mar. 2025.

PARIS, E. Long shadows: Truth, lies, and history. Knopf Canada, 2000.

WIESEL, E. Elie Wiesel acceptance speech. The Nobel Prize Organization, 1986. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1986/wiesel/acceptance-speech/ . Acesso em: 12 mar. 2025.

Sobre a autora:

Tracie Hall

Professora de Prática e Distinta Profissional em Residência na Information School da University of Washington. Foi diretora executiva da American Library Association (2020-2023), tornando-se a primeira mulher afro-americana a liderar a instituição desde sua fundação em 1876.

Possui mestrado em Biblioteconomia e Ciência da Informação pela University of Washington, mestrado em Estudos Internacionais pela Yale University e dupla graduação em Direito e Sociedade e Estudos Negros pela University of California.

Com ampla experiência em liderança bibliotecária, advocacy cultural e acadêmica, atuou como vice-presidenta da Queens Public Library, diretora do Joyce Foundation Culture Program, vice-comissária do Departamento de Assuntos Culturais de Chicago e diretora do Office for Diversity da American Library Association. Também foi diretora assistente da Graduate School of Library and Information Science da Dominican University.


Redação: Tracie Hall

Foto: Doug Parry / University of Washington Magazine

Tradução: Pedro Ivo Silveira Andretta, Marcos Leandro Freitas Hübner e Lucas George Wendt

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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