• contato@labci.online
  • revista.divulgaci@gmail.com
  • Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
v. 1, n. 3, maio. 2023
Encruzilhadas da memória: corpo-território e re(existência) decolonial negra no campo da Ciência da Informação, por Maria Aparecida Moura

Encruzilhadas da memória: corpo-território e re(existência) decolonial negra no campo da Ciência da Informação, por Maria Aparecida Moura

Abrir versão para impressão

Encruzilhadas da memória: corpo-território e re(existência) decolonial negra no campo da Ciência da Informação

Maria Aparecida Moura
mamoura@ufmg.br

“A encruzilhada oferece-nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos, enfim. (…) A encruzilhada é o lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. Operadora de linguagens e de discursos, a encruzilhada, como terceiro lugar, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais. Nessa concepção de encruzilhada discursiva destaca-se , a natureza cinética e deslizante dessa instância enunciativa e dos saberes ali instituídos” (MARTINS, 2003, p. 69-70).

As encruzilhadas são, para mim, desde sempre, muito mais que um espaço geográfico de trânsito ou a constituição de pontos críticos  no instante decisório, elas funcionam, conforme destaca Martins, como um território sagrado de confluência imaginativa. 

Nelas habitam divindades sagradas e profanas que me permitem  produzir e/ou reinventar “rascunhos de rotas provisórias, o sussurro de possibilidades impossíveis, a manifestação misteriosa da existência do que não existe…”  em um projeto permanente de luta contra a morte social “lá onde estamos prestes a dissolver as ficções de poder que nos matam e aprisionam, conforme assinalou Mombaça (2021, p. 18-19).

Quando eu nasci, em 1965, conta a minha avó que, ao invés de receber a tradicional palmada que provoca o choro da vida, fui colocada embaixo de uma bacia feita de folhas de Flandres sobre a qual tocaram até que eu chorasse. Desse modo, em meio à escuridão do desconhecido e diante desse primeiro gesto coletivo da linguagem do eco das mãos no Flandres, chorei e me apresentei à vida.  Desde então, sempre que me lembro da história do meu nascimento vejo poesia, cultura e a linguagem das possibilidades e da sabedoria das pessoas comuns.

Ao destacar o lugar de minha avó Eva em minhas memórias, julgo importante ressaltar que ela, desde o princípio, embora sendo uma pessoa analfabeta, sempre valorizou e estimulou a luta pelos nossos sonhos que incluía, necessariamente, o caminho da Escola.  “A educação e a dignidade são a riqueza do pobre, algo que ninguém jamais pode tirar de você” dizia ela em sua sabedoria matuta.

Cresci na Vila São José, região industrial de Belo Horizonte (MG), no período do dito  milagre brasileiro em “um país que ia para frente amordaçado pelas marcas da ditadura militar”, acantonada pela vizinhança e imisção das circunstâncias, paredes e destinos.  Certamente, trata-se de uma imisção que não se escolhe, mas que se fixa no olhar como paisagem e constitui os elementos de nossa visão de mundo.  Fomos uma das primeiras famílias ocupantes desta vila onde morei durante quinze anos. Minha mãe trabalhava como lavadeira e doméstica e sua primeira patroa teve também um papel muito importante no meu percurso de formação porque, ao acreditar que a educação era uma questão central na vida das pessoas, apoiou bastante a minha possibilidade de ir à escola.

A Escola que frequentei pertencia à Rede Municipal de Contagem e recebia, em geral, filhos de comerciários e operários da região.  Apesar da diferença social entre os moradores da vila e do bairro, a convivência não era um grande problema entre os alunos da escola. O momento de ir à Escola era mágico, pois, durante quatro horas, nós nos esquecíamos da condição social que nos distinguia.  Lá éramos apenas crianças com brilho nos olhos e abertos ao novo.  Afinal,

… as pessoas não nasceram faveladas, elas se fizeram, foram feitas faveladas… Só que conseguiram criar uma civilização a partir disso. Onde nasce a música? Onde nascem as formas de sobrevivência dentro de uma situação de escassez? O desejo de alguma coisa que faz a produção do saber? (MICHEL MARIE LE VEN).

Para a criançada da Vila São José, a realização das pesquisas escolares era sempre um grande desafio. Como não possuíamos as tradicionais “Barsas e Mirador“, tínhamos que apelar para a criatividade. Assim, fazíamos pesquisas em jornais e livros didáticos usados e, para completar, realizávamos entrevistas com os moradores da Vila São José. Havia momentos em que as coisas ficavam complicadas, uma vez que os nossos entrevistados, pessoas simples, não tinham a menor ideia da agudeza de nossas questões escolares. Daquele tempo das pesquisas primárias em mosaico, guardo a inquietação e o desejo de restituir a fala do sujeito comum nos registros do conhecimento.

Foi desse modo que a biblioteca tornou-se gênero de primeira necessidade e eu não passava mais imune diante de lixeiras em que se viam livros. Os restos informacionais dos abastados de informação se tornaram pouco a pouco minha insólita biblioteca. 

Cresci escutando que não valia a pena pobre estudar, ainda mais se fosse mulher, pois seu futuro se restringiria a “esquentar a barriga no fogão e esfriar no tanque”, uma alusão ao inevitável destino: tornar-se empregada doméstica.  De fato, não fugi à regra e, aos treze anos, comecei a trabalhar como empregada doméstica, como condição necessária à continuidade dos meus estudos. Nessa época, já tínhamos nos mudado da vila para um bairro operário da região industrial – o que significou uma mudança no status, pois deixávamos de ser favelados – mas mantivemos nossa condição social: éramos “pobres, pobres de marré, marré de si”.

Minha formação política revela a paisagem da região industrial de Belo Horizonte. Impossível ficar alheio morando na periferia e respirando os ares daquele tempo histórico.  Posso dizer que essa participação foi patrocinada pelo meu tio que me convidava sempre para ir às reuniões da Associação dos Moradores, fazer ações comunitárias, lutar por ônibus, água, escola, integrar movimentos de juventude e coisas do gênero. Além disso, como eu estudava à noite no curso para jovens e adultos do Colégio Loyola, encontrei a ambiência propícia para compreender certas indignações que por vezes me afligiam.

O caminho rumo à Universidade não se deu de modo sereno, pois, como todos os jovens negros de minha geração, éramos os primeiros da família a atravessar a portada das Universidades brasileiras. Havia estranhamento, choques sociais e culturais, encantamento e esperança. Todas as sensações misturadas.Tratava-se de uma luta diária contra a cidadania contingente ao qual somos submetidos. Criar estratégias de sobrevivência e de afirmação da identidade tornou-se o desafio diário nesses anos em que fomos premidos por dificuldades, vitórias e novos enfrentamentos.

Minha graduação foi aguerrida porque eu já tinha uma prática profissional vinculada aos movimentos sociais. Formei-me nessa conjuntura. Na época, havia uma grande demanda por profissionais que pudessem documentar a informação na emergência dos acontecimentos.  Fotografar, gravar e gerar uma documentação audiovisual que permitisse a sensibilização do discurso acadêmico para as questões sociais, bem como a educação das classes populares.  Nesse período a crença nas possibilidades de formação em contexto, assinaladas por Paulo Freire, nos encorajava e impulsionava a ir em frente. 

Segundo Freire,

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerente (FREIRE, 2000, p. 33).

Acredito que, para uma geração recém-saída da ditadura militar, os apontamentos de Freire eram profundamente encorajadores e provocavam engajamentos na escolha profissional e na constituição de uma visão de mundo.

Contudo, cabe lembrar que a solidão no contexto acadêmico é imensa e se amplia à medida que galgamos uma nova etapa. É como se a peneira da seleção “natural” do mundo acadêmico fosse mobilizada exclusivamente pela questão racial em face dos negros. Em tais etapas, há sempre um convite à desmemória, à incorporação seletiva da hipomnésia do vivido. 

O convite ao esquecimento funciona como uma estratégia para enfraquecer o curso de nossas lutas. Esse esquema, essencialmente esquizofrênico, incide duplamente no estímulo ao apagamento da identidade e na exclusão demarcada pela alteridade. Constata-se que a população negra que alcança tais instâncias simbólicas de poder precisa apresentar sempre as credenciais que lhe autorizaram a ocupar esse lugar.

Em decorrência disso, apesar da crescente pressão institucional, esforço-me para não capitular-me à tentação do produtivismo desprovido de reflexão e crítica. Desse modo, tenho imprimido à minha produção acadêmica (projetos, docência, pesquisas, falas públicas, produção bibliográfica e parcerias acadêmicas) coerência interna e rigor acadêmico que me permitem avançar com maturidade, que não se revelam necessariamente em números, mas em capacidade argumentativa e crítica, que qualificam e legitimam um percurso acadêmico.

Em 2012, passados os primeiros 15 anos de  atuação docente na UFMG, concluí que era necessário seguir adiante e avançar para estabelecer a presença  intelectual negra em setores e contextos acadêmicos em que a nossa presença ainda era rarefeita Novo enfrentamento: desafiar o privilégio branco lá onde ele tinha morada cativa e pacificada. Assim,  em 20 de novembro de 2012, tornei-me a primeira professora titular negra da história da Universidade Federal de Minas Gerais em seus 85 anos de fundação.  O percurso vivido em direção ao nível acadêmico alcançado foi muito tenso porque pôs em disputa algo mais que a simples titularidade. Colocou em evidência a invisibilidade consentida e o regime de sucessão nos espaços de poder que se pauta pela perenidade do  racismo.

Observo que essa construção, no contexto da Ciência da Informação, representa um desafio em virtude de esta ciência ter sido considerada, ao longo de sua institucionalização no Brasil, como um campo voltado à formação de recursos humanos para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Em virtude disso, não parecia haver uma relação natural entre intelectualidade, perspectiva assinalada acima, informação e tecnologia. Entretanto, nas últimas décadas, em virtude do intenso desenvolvimento das tecnologias informacionais em rede e da centralidade da assumida pela informação nas diversas esferas da vida, o campo passou a ser chamado a responder ao desafio de pensar as implicações culturais, sociais e políticas do capital–informação. Nesse contexto de reflexões, é bastante desafiadora a perspectiva apresentada por Demo (1997),

A vida acadêmica correta é aquela marcada pela produção própria coletiva e sistemática e inovadora. Dentro de um contexto pluralista interdisciplinar; o desafio de reconstruir conhecimento é o lado profissional próprio do professor, com qualidade formal e política; na prática, não se pode considerar professor a quem não está comprometido permanentemente com a reconstrução do conhecimento, ou a quem deixa de o fazer, ou que se esconde atrás de títulos improdutivos e de pretensões gerenciais burocráticas  (DEMO, 1997, p. 38).

 A Ciência da Informação tem vivenciado inúmeras transformações identitárias em decorrência de seus novos vínculos institucionais, agendas e objetos de estudo.  Em vista disso, nossa atuação no campo tem se consolidado em torno da verticalização de ações específicas e na ampliação da agenda de pesquisa fundada no diálogo transdisciplinar.  

Nestes termos, me parece complexo rememorar um percurso profissional devido ao caráter  caleidoscópico que a ordenação pessoal do memorável pode deixar transparecer. Contudo,  devo remarcar que o meu percurso em Ciência da Informação tem sido construído por um olhar crítico em direção a trajetórias acadêmicas exemplares construídas no diálogo entre a Universidade e a sociedade, pautado pelo respeito à coisa pública e por uma solidariedade de alcance internacional, urdidos pelo vanguardismo responsável, pelo fôlego e verticalidade no trato das questões teóricas e metodológicas, pela atenção dada ao aparentemente insignificante e suas prováveis repercussões, pela liderança encorajadora, pela produção acadêmica orientada, não pelos hits, mas pelo cientificamente incontornável e pela generosidade, temperança e acuidade na formação humana que emancipa e engaja. Nesses termos, embora não se saiba a priori a trilha a ser percorrida, as minhas escolhas no campo da Ciência da Informação aconteceram imersas nesses valores desde sempre admiráveis.

A minha formação acadêmica tem por perspectiva a possibilidade de alcançar uma interlocução entre o campo da Ciência da Informação e as demais áreas de conhecimento. Afinal, acho pertinente verticalizar no específico, mas orientado por uma visão ampla das possibilidades de diálogo nas fronteiras do disciplinar e para além dele.  É por isso que à Biblioteconomia aliei o mestrado em Educação, o doutorado em Comunicação e Semiótica e o pós-doutoramento em Semiótica Cognitiva e Novas Mídias e, mais recentemente, um novo doutorado em Sociologia da Cultura.

Os diversos estudos, realizados e/ou orientados por mim, buscaram fortalecer nossa identidade como campo científico, sem, contudo, deixar de lado o enfrentamento de questões e objetos contemporâneos. Nesse sentido, continuamente busquei mapear as orientações teóricas e metodológicas e discutir a pertinência em assimilá-las nos estudos desenvolvidos no campo.

Do ponto de vista teórico, a Filosofia da Linguagem e as Teorias da Significação em geral e a Semiótica em particular, têm nos fornecido bons aportes teóricos na condução dos estudos tanto na organização da informação e seus desdobramentos específicos, quanto na constituição e ampliação dialogada dos fundamentos teóricos para os estudos dos fenômenos informacionais contemporâneos e históricos.

Nesses anos, tenho dedicado atenção especial aos fóruns internacionais voltados aos fenômenos informacionais como possibilidade de ampliação da interlocução e de fortalecimento de nossas parcerias acadêmicas.

Assim, em 2005, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), junto com os seus congêneres de Cabo Verde, Moçambique e Angola, assinaram um tratado de cooperação, cujo objetivo é de facilitar – por intermédio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – a mobilidade de cientistas, pesquisadores e técnicos, de modo a fortalecer as relações de cooperação científica e tecnológica entre os países envolvidos, contribuindo para a criação e o fortalecimento das capacidades nacionais, através de atividades de assessoramento, formação e o intercâmbio de experiências, no processo de organização e gestão da Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação.

Com intuito de atuar nesse campo a ECI/ UFMG – Brasil (instituição executora nacional) e o FBLP (Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa) e o CIDOC (instituição co-executora estrangeira) desenvolveram no período de 2005-2008 o projeto Estudo de Viabilidade para Implantação do Curso de Graduação em Ciência da Informação em Moçambique, aprovado pelo CNPq com a participação de pesquisadores brasileiros e moçambicanos, de diferentes áreas do conhecimento, entre elas a Ciência da Informação, Educação, Sociologia, Filosofia e Ciência da Computação. Neste projeto atuei como coordenadora em colaboração com a professora Wanda do Amaral, do FBLP, que coordenou a equipe moçambicana.

O projeto nasceu da necessidade de compreendermos a questão da cooperação internacional sob um ponto de vista distinto do que regularmente se estabelece para os países em desenvolvimento. Assim, percebeu-se que os processos tecnológicos globais de ampliação dos mercados econômicos proporcionaram a um só tempo o acirramento das desigualdades e a aproximação dos povos do mundo inteiro. Em outras palavras, os mesmos instrumentos que geram a diferenciação econômica e política entre os povos são os que nos abrem as possibilidades de desenvolver, do ponto de vista da cooperação internacional, uma perspectiva endógena e negociada entre os iguais, ou seja, entre os países periféricos.

O projeto teve por objetivo realizar um estudo de viabilidade social, política e técnica para a criação de um curso de Ciência da Informação em Moçambique, considerando-se as demandas informacionais postas pela Sociedade da Informação no âmbito dos países em desenvolvimento. Além da formalização da cooperação entre Moçambique e o Brasil em matéria de ciência e tecnologia, o projeto visou dar início a um fluxo de cooperação científica com vistas a contribuir na produção de conhecimento no âmbito da temática referente à Sociedade da Informação de modo mais sistemático. Na ocasião, o grupo formado acreditou que, do ponto de vista dos países em desenvolvimento, era possível encontrar soluções comuns em que se leve em consideração as particularidades das nações implicadas.

 O curso de graduação em Ciência da Informação de Moçambique foi pensado visando compreender a Sociedade da Informação do ponto de vista dos países em desenvolvimento. Na proposta buscou-se imprimir uma dinâmica que permita avançar tomando o local como referência e o global como contexto. O projeto buscou propor uma formação na qual a informação é compreendida como trabalho humano que contribui efetivamente no processo de construção do conhecimento, e não como um produto de valor agregado orientado pela voracidade do mercado em busca de novas fronteiras consumidoras.

Os aprendizados  desenvolvidos nesses processos de cooperação internacional  Sul-Sul nos permitiram participar da gestão da Universidade em cargos estratégicos e prestigiosos para a interlocução acadêmica. Dentre essas funções, destaco a coordenação do Programa de Pós- Graduação em Ciência da Informação entre 2007-2009, A coordenadoria de Políticas de Inclusão Informacional (2010-2014), a diretoria de Governança Informacional  e a Ouvidoria Geral da UFMG (2014-2018) e, mais recentemente, a Criação da Universidade de Direitos Humanos da UFMG em 2020, tendo sido a sua primeira diretora no período de (2020-2022).

Em 2007, passei a atuar como bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq e como parecerista ad doc naquela agência e em outros fóruns de fomento à pesquisa em nível nacional e internacional. Tais participações têm nos oferecido a oportunidade de contribuir para consolidação de um desenho mais inclusivo  e crítico das pesquisas desenvolvidas no contexto nacional.

Atualmente integro, como docente, o quadro permanente da  a linha de pesquisa “Memória social, patrimônio e produção do conhecimento”, do Programa de de Pós-graduação em Ciência da Informação  e da  linha de Pesquisa  “Pragmáticas da Imagem” do Programa de de Pós-graduação em Comunicação Social, ambos na UFMG.

Tais engajamento nos levam à consolidação de um percurso autoral constituído pelos diferentes desafios, aprendizados e diálogos realizados para além das bordas do disciplinarmente admitido. Nesse contexto, a pluriepistemologia  apresenta-se como um percurso incontornável para aqueles que, como nós, desejam produzir  um conhecimento comprometido com a transformação social e com a necessária ruptura com o regime de apagamentos e mortes sociais, promovidas desde a sutileza silenciosa e conivente dos textos acadêmicos.  Conforme indica Almeida (2020):

O racismo tem, portanto, duas funções  ligadas ao Estado: a primeira é a de fragmentação, de divisão no contínuo biológico da espécie humana, introduzindo hierarquias, distinções, classificações de raças. O racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores e inferiores, entre bons e maus, entre grupos que merecem viver e os que merecem morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que serão deixados para a morte, entre os que devem permanecer vivos e os que serão mortos. E que se entenda que a morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também é entendida  como a exposição  ao risco da morte, a morte política, a expulsão e a rejeição. A outra função do racismo é permitir que se estabeleça uma relação positiva com a morte do outro (ALMEIDA, 2020, p. 115).

Diante destas constatações, buscamos, através de reflexões teóricas densas e da  admissibilidade de temáticas e abordagens emergentes, reorientar os estudos realizados. Nesse âmbito, saliento que a pauta que norteou as nossas escolhas na produção acadêmica pública, até o momento, dizem muito desse esforço gregário de colocar em articulação a tradição, as temáticas sociais candentes  e os fenômenos emergentes com vistas ao ao fortalecimento do campo científico em diálogo com a sociedade e os desafios de nosso tempo.

Nos últimos anos, tem sido fundamental  me associar, desde a CI,  às  vozes  que confrontam o epistemicídio, o altericídio  e a racialização do conhecimento como um projeto político de perpetuação do privilégio e conforto ontológico branco subsumidos na “violência calma”promovida especialmente  pelos dispositivos de informação. Diante da magnitude de tal desafio, tem sido imprescindível orientar os programas e projetos de pesquisa, ensino, extensão e gestão  acadêmica ao entendimento de que o caráter estrutural, assimétrico e colonial das opressões em suas múltiplas faces, requerem percursos analíticos  precisos e densos e respostas corajosas, menos óbvias  e engajadas com a transformação social.

As marcas do percurso mescladas à maturidade do vivido e assinaladas nesse texto, constituem a mulher negra que me tornei. Esse relato de vivências não se pretendeu autônomo, nem tampouco definitivo. Ao contrário, pretendeu ressaltar nas tramas do, por vezes, fortuito, contingente e aparentemente intransponível, a beleza da história, do acaso e dos engajamentos na constituição dos sujeitos sociais.  Afinal, como bem assinalou  Audre Lorde,

Na medida em que aprendemos a suportar a intimidade da investigação e a florescer dentro dela, na medida em que aprendemos a usar o resultado dessa investigação para dar poder à vida, os medos que dominam nossa existência e moldam nossos silêncios começam a perder controle sobre nós. (…) Quando entramos em contato com nossa ancestralidade, com nossa consciência não europeia de vida como situação a ser experimentada e com a qual se interage, aprendemos cada vez mais a apreciar nossos sentimentos e a respeitar essas fontes ocultas do nosso poder – é deles que surge o verdadeiro conhecimento e, com ele, as atitudes duradouras (LORDE, 2019, p. 46).

Agradecimentos

Agradecimentos são devidos ao CNPq e à FAPEMIG pelo apoio oferecido nas diferentes etapas do desenvolvimento deste percurso de pesquisa.

Referências

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020.

CARNEIRO, Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. São Paulo: FE-USP, 2005.

DEMO, Pedro. Conhecimento moderno: sobre ética e intervenção do conhecimento.Petrópolis: Vozes, 1997.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa:Orfeu Negro, 2019.

LORDE, Audre. Irmã outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras, Belo Horizonte, n. 26. 2003, p. 63-81.

MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2013.

MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora.  São Paulo: Cobogó, 2021.

SHIKIDA, Aparecida Maciel da Silva. Informação, História e Memória: a constituição social da informação em relatos orais. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de Ciência da Informação, UFMG, Belo Horizonte, 2005. 

Sobre a autora

Maria Aparecida Moura

Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenadora do Museu virtual – Saberes Plurais e o Laboratório de Culturas e Humanidades digitais (LabCult/PPGCI/UFMG). Coordenadora adjunta do GT 12 ANCIB – Informação, Estudos Étnico-Raciais, Gênero e Diversidades. Atua nos programas de pós-graduação em Comunicação Social (PPGCOM/UFMG) e Ciência da Informação (PPGCI/UFMG) como membro permanente. Integra a Rede de Direitos Humanos da UFMG e a Comissão Coordenadora da Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.

Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestra em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais.


Redação e Foto: Maria Aparecida Moura

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

1

1 thought on “Encruzilhadas da memória: corpo-território e re(existência) decolonial negra no campo da Ciência da Informação, por Maria Aparecida Moura

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »
Pular para o conteúdo