
Artigos retratados, o uso indiscriminado da Inteligência Artificial na pesquisa/escrita científica e outros “fantasmas”, por Karen Santos d’Amorim

Artigos retratados, o uso indiscriminado da Inteligência Artificial na pesquisa/escrita científica e outros “fantasmas”
Karen Santos d’Amorim
karen.isantos@ufpe.br
Nos últimos dois anos, temos observado a efervescência de temas relacionados ao aumento de artigos retratados, o uso indiscriminado da inteligência artificial na pesquisa/escrita científica – e outros “fantasmas” que surgiram dentro e fora da arena científica. Quando iniciei em 2019 meus estudos sobre retratações não tinha ideia da complexidade do tema, em que um assunto puxava o outro, e esse outro puxava mais outro, tecendo-se uma teia de conexões e elementos que, à primeira vista, passariam despercebidos. Naquele momento, embora já houvesse interesse em diferentes áreas, o tema era pouco explorado na Ciência da Informação no Brasil. Felizmente, esse cenário tem evoluído.
“Senta que lá vem história”
Sentindo-me como uma forasteira — afinal, minha primeira graduação não foi em Biblioteconomia — ingressei em 2019 no mestrado em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCI-UFPE) com a proposta de investigar os problemas que surgem da transformação do artigo científico em mercadoria. Minha ideia foi acolhida pela Profa. Anna Elizabeth Galvão Coutinho Correia e pelo Prof. Murilo Artur Araújo da Silveira, orientadora e coorientador do mestrado.
Como muitos iniciantes no mundo da pesquisa científica, cometi o erro clássico de tentar “abraçar o mundo com as mãos”. No entanto, o saldo não foi tão ruim assim. Saí da qualificação de mestrado com duas propostas que moldaram meu percurso: a primeira, concentrar os resultados da minha dissertação na investigação de artigos retratados, que era um dos resultados já consolidados; e a segunda, migrar direto para o doutorado, em um processo de mudança de nível. E lá fui eu, abraçando os dois desafios de uma vez: fiz a passagem direta para o doutorado, mas defendi a dissertação intitulada “Do publicar ou perecer às retratações e despublicações: consequências e impactos na ciência”.
Durante o doutorado (2020-2024), defendi a tese intitulada “Dinâmica das retratações de artigos científicos na América Latina e implicações na cultura de integridade em pesquisa e governança na Ciência”, sob a orientação do Prof. Raimundo Nonato Macedo dos Santos. Também tive a oportunidade de seguir para Espanha, mesmo sem bolsa equivalente, para um doutorado sanduíche na Universidad Carlos III de Madrid, Laboratorio de Estudios Métricos de Información (LEMI), sob a orientação do Prof. Elías Sanz-Casado. Minha tese propriamente dita mostrou uma desconexão entre a retratação formal de artigos e a forma como as informações retratadas continuam a ser disseminadas e consumidas. Isso significava dizer que: apesar de invalidados, esses artigos permaneciam sendo citados e frequentemente mencionados em plataformas de mídias sociais, muitas vezes alimentando a propagação de discursos anticiência. Um dos estudos-piloto que fizemos foi mencionado por Le Coadic (2021), que correlacionou a produção de informações científicas imprecisas às crises informacionais que temos vivenciado em distintas esferas da vida humana. O autor destacou esse contexto como um novo campo de ação para a Ciência da Informação.
Ao longo desses mais de seis anos no Grupo de Pesquisa SCIENTIA, colaborei e colaboro em publicações como coautora com colegas de países como Irã, Índia, China, Estados Unidos, Japão, Áustria e Espanha. Essas interações trouxeram muitos aprendizados, inclusive pessoais, mas os mais valiosos foram de trabalhar em grupo e a oportunidade de expandir minha visão sobre o tema.
De volta ao foco
Ainda que o título desse texto já antecipe parte do que considero como perspectivas no domínio da Integridade em Pesquisa, é necessário reconhecer que os dilemas éticos e questionamentos sobre integridade na pesquisa científica são tão antigos quanto a própria Ciência. Não por acaso, a primeira retratação de um artigo em língua inglesa que se tem conhecimento ocorreu justamente no primeiro periódico considerado de fato científico: o Philosophical Transactions, da inglesa Royal Society, em 1756.
Quando falo sobre artigos retratados, entendo que estes funcionam como “input” para rastrear problemas que envolvem comportamentos desviantes na Ciência. Por outro lado, eles são um marcador do avanço nos esforços de promoção de um ambiente mais confiável. Isto é, também demonstram a capacidade editorial e pessoal (como no caso das autorretratações) de sinalizar resultados falhos, enganosos ou intencionalmente fraudulentos. Algumas pesquisas que fizemos mapeiam cenários de interesse (Santos-d’Amorim; Melo; Santos, 2021; Santos-d’Amorim et al., 2021a,b, 2023, 2024; Khademizadeh et al., 2023; Santos-d’Amorim; Bornemann-Cimenti, 2025).
O que tem mudado – e continua mudando – é a sofisticação da tecnologia, que, ao mesmo tempo em que amplia possibilidades de ação, também traz à tona novos dilemas e desafios. O uso indiscriminado de ferramentas de Inteligência Artificial (IA) na pesquisa e escrita científica é um exemplo claro disso — a IA Generativa (IAG) representa um marco disruptivo na maneira como conduzimos a pesquisa científica. Ela permite pré-testar raciocínios, lógicas de pensamento, analisar dados, aprimorar a legibilidade de textos, entre outras atividades facilitadas pela interação ágil e conversacional que essas ferramentas oferecem. No entanto, pelo próprio conceito de ser “generativa”, se não utilizada corretamente, com validação ou auditoria humana, ferramentas de IAG podem dissimular o plágio, além de introduzir riscos adicionais de viés, alucinações, e consequentemente, desinformação. Além disso, como destacado pelo Prof. Yves-François Le Coadic no editorial do número 1 de janeiro 2025 da Divulga-CI, é fundamental refletir sobre os desafios éticos inerentes ao uso de ferramentas de IA relacionados à própria criação de conhecimento.
Outros “fantasmas” incluem, mas não se limitam, a fábricas de papers, manipulação de dados, apropriação indevida de ideias sem a devida citação, frases distorcidas (torturadas) — ambos resultantes do uso acrítico de IA —, além do uso inadequado de ferramentas para mineração e análise de dados.
O futuro do presente
O hoje e as próximas décadas nos convidam a repensar como a ciência é produzida, avaliada e consumida. Precisamos avançar em direções que garantam maior transparência e o fortalecimento de práticas responsáveis, com o melhoramento de diretrizes e políticas instrucionais claras que sustentem esses objetivos.
A lógica ancestral do ditado “é melhor prevenir do que remediar” também se aplica aqui. A partir de muitas leituras e vivências, entendo ser evidente a urgência de uma educação proativa sobre integridade acadêmica nos programas curriculares de ensino, e isso inclui o uso responsável da IA no ambiente acadêmico e de pesquisa. Não é novidade que muitos calouros chegam ao ensino superior sem compreender claramente os limites entre uma citação adequada e um plágio. Por isso, entendo que o foco educacional sobre os mais diversos dilemas que envolvam a integridade em pesquisa desde a base, é uma necessidade inadiável.
Referências
KHADEMIZADEH, S.; DANESH, F.; ESMAEILI, S.; LUND, B.; SANTOS-D’AMORIM, K. Evolution of retracted publications in the medical sciences: Citations analysis, bibliometrics, and altmetrics trends. Accountability In Research-Policies And Quality Assurance, New York, v. 31, n. 8, p. 1182-1197, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1080/08989621.2023.2223996. Acesso em: 01 jan. 2025.
LE COADIC, Y-F. Pandémie du Covid19 et crise d’information: la réponse de la science de l’information. Informação em Pauta, Fortaleza, v. 6, n. especial, p. 9–23, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/65874. Acesso em: 14 out. 2022.
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TEIXEIRA DA SILVA, J. A.; SANTOS-D’AMORIM, K.; BORNEMANN-CIMENTI, H. The Citation of Retracted Papers and Impact on the Integrity of the Scientific Biomedical Literature. Learned Publishing, v. 38, n. 2, 2025. Disponível em: https://doi.org/10.1002/leap.1667 . Acesso em: 10 fev. 2025.
Sobre a autora:
Professora do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco. Integra o grupo de pesquisa SCIENTIA, da UFPE.
Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco, com período sanduíche na Universidad Carlos III de Madrid. Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Salgado de Oliveira. Bacharela em Secretariado pela Universidade Federal de Pernambuco.
Redação e Foto: Karen Santos d’Amorim
Diagramação: Alex Sandro Lourenço da Silva