No ano de 2017, no Centro de Detenção Provisória IV de Pinheiros, na Cidade de São Paulo, deu-se início a um projeto de remição de pena por leitura, por iniciativa da Pastoral Carcerária de São Paulo e da então gestão da unidade. A princípio eram atendidas, diretamente no Raio III, 20 pessoas privadas de liberdade. Os encontros ocorriam todas as segundas pela manhã, às vezes na cela da igreja, outras na quadra, no centro do raio. O processo de concepção e aprovação do projeto havia levado meses, bem como a arrecadação de recursos para o mesmo, mas infelizmente, por uma série de motivos adversos, após um mês de trabalho o projeto teve de ser suspenso.
Apenas ao final do ano seguinte, 2018, e após uma série de mudanças, como a da gestão da unidade, agora ao cargo de Ricardo Vieira da Silva, o projeto foi retomado. Foi o próprio Diretor quem retomou o contato com a Pastoral e, então, a voluntária Léia Santos foi uma das designadas para as novas reuniões que se sucederam, devido a sua experiência com a primeira tentativa, em 2017. Após ajustes, foi definido o formato do projeto de remição, agora com 15 participantes, atendidos no espaço no qual seria a biblioteca da unidade, em que era possível ter uma estrutura mínima de sala de aula. Ao longo das conversas, o nome do projeto foi definido: “Viajar sem sair do lugar”. O projeto foi, à época, apresentado ao Juiz Corregedor da Capital e, com a aprovação, retomamos os trabalhos, nos reunindo com 15 leitores às segundas, pela manhã.
Nas reuniões entre os voluntários e o novo gestor, definiu-se um modelo para o projeto que consistiria em: inscrição voluntária dos leitores; sorteio das inscrições, caso a quantidade de interessados excedesse o número de vagas, o que sempre ocorreu; 1 encontro semanal com o grupo, portanto, 4 encontros ao longo dos 30 dias, tempo determinado para a leitura da obra, em que seriam realizadas atividades de mediação de leitura com os voluntários da Pastoral Carcerária. O quarto encontro, ao final do ciclo de leitura, foi destinado à realização da resenha oficial a qual, após validação pela equipe de pareceristas, era peticionada junto ao judiciário para fins de remição de pena. De acordo com a diretriz do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os leitores têm direito a 4 dias de remição, por cada obra lida, resenhada e aprovada.
Logotipo do Projeto Viajar sem Sair do Lugar
Após alguns meses e com resultados positivos, foi criada uma segunda turma, ampliando o projeto, agora para homens presos do setor de trabalho do CDP. Assim, seguimos até o final de 2019. Mas, infelizmente, assim que retornamos do recesso de férias, já em 2020, nos deparamos com a Pandemia de COVID-19 e com o decreto de isolamento social.
Apenas em 2022, com maior flexibilidade, foi possível a retomada do projeto, agora com algumas diferenças, pois Ricardo Vieira passara a ser Diretor Geral do CDP de Santo André, cidade da região metropolitana de São Paulo. Os primeiros encontros de mediação ocorreram ainda com o uso de máscaras, quando todos já estavam vacinados. A lista de interessados foi de mais de 60 pessoas, porém nós tínhamos apenas 20 vagas e uma turma. A retomada do “Viajar sem sair do lugar”, agora em outra cidade, só foi possível pela parceria iniciada em 2019 entre o Diretor e a voluntária Léia Santos, que agora se dirigia em caráter pessoal ao CDP, não estando mais o Viajar vinculado à Pastoral, mas disposta a realizar o projeto nos mesmo moldes da experiência anterior, implementando melhorias: 4 encontros mensais, em que ocorrem rodas de conversa, orientação para produção da resenha, atividades lúdicas relacionadas ao livro lido, discussão do suplemento de leitura, desenvolvido para cada livro do projeto, correção/produção do rascunho da resenha e, após a entrega final do texto, exibição de um filme relacionado à obra lida, com direito a refrigerante e pipoca.
Iniciamos com uma turma, de 20 vagas, um aumento de 5 pessoas, já que em Pinheiros eram 15. Começamos em uma sala destinada ao projeto e que foi sendo reformada ao longo do ano, passando a ter quadro branco, cadeira com carteiras, ventilador, televisão e computador, para os dias de exibição de filme. Em Pinheiros tínhamos 3 títulos, com 20 exemplares, para ler: Capitães da areia, O cortiço e Vidas secas, exemplares que a Pastoral conseguiu via compra ou doação. Já em Santo André, começamos com 10 títulos enviados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) a todas as unidades prisionais do País, justamente para remição, alguns como: Crime e castigo, A hora da estrela, Prisioneiras, Vidas secas, Capitães da areia, O homem que calculava, A volta ao mundo em 80 dias, Dom casmurro e A cor púrpura.
Atualmente, temos 41 títulos no acervo da remição, que são fruto de doações que conseguimos ao longo dos últimos anos e que foram específicas para o Viajar. Assim como esse acervo, a quantidade de vagas também foi expandida e, hoje, contamos com uma turma de remição em cada Ala da unidade com população. A Ala A tem como mediadora de leitura a Psicóloga do CDP, Alacir Cruces, e os encontros são todas as segundas. As turmas da Ala C e D, tem encontros de mediação toda sexta pela manhã e à tarde, com os mediadores Léia Santos e Leonardo Borges. Portanto, temos 60 vagas para todo o CDP, que mantém sob custódia uma população prisional de aproximadamente 700 pessoas.
Projeto Viajar sem Sair do Lugar do Centro de Detenção Provisória de Santo André recebeu a visita do escritor Jonas Ribeiro
Nesse período também foram realizadas atividades relacionadas à leitura, mas que buscaram ampliar o público atingido, como foi o caso do nosso 1º Chá literário (2023), em que além de bolos, biscoitos e bebidas matinais, ofertou aos 60 inscritos do projeto, livros infantis para que presenteassem seus filhos e demais crianças da família, no dia das crianças. Próximo ao Chá, recebemos a visita de dois autores: Felipe Choco e Jonas Ribeiro, que declamou poesias e autografou livros infantis para as crianças de nossos leitores.
Com o sucesso do Chá e da distribuição de livros infantis, próximo ao natal começamos uma campanha de arrecadação de livros com a meta de conseguir doar um livro para cada homem preso presentear uma criança da família, no natal. A princípio almejávamos arrecadar 700 livros, mas felizmente, graças ao apoio de muitos bibliotecários e parceiros, conseguimos 2.500 livros: adultos, infantis e HQs. 300 foram para o acervo da biblioteca, pois não eram infantis e os demais foram distribuídos em cada raio, na última semana antes do natal. Cada pessoa presa recebeu 3 livros.
Além do aumento de vagas e dos títulos disponíveis para leitura, o acervo da biblioteca foi expandido, um dos impactos diretos da existência do projeto de remição por leitura no CDP, uma vez que o Viajar desde o início buscou por parceiros e por doações, para ambos os acervos. Em 2022 havia pouco mais de 2.000 itens na biblioteca, agora são mais de 5.300. A cada 15 dias as Alas A, C e D recebem 150 títulos para empréstimo, antes eram 50. Todas as pessoas presas podem emprestar, participantes ou não do projeto de remição e, também, funcionários da unidade, público que cada vez só aumenta.
Divulgação da campanha de arrecadação de livros para o Projeto Viajar sem Sair do Lugar
Uma crítica válida à remição de pena por leitura é que ela pode ser redutora da experiência das pessoas presas com a Leitura, fator que o projeto tenta minorar, incentivando também empréstimo de livros pelos leitores do Viajar, que via de regra, passam a ter uma relação diferente com a leitura, a partir do ingresso no projeto, e atuando para a expansão da biblioteca, pois, conforme o mencionado, os pedidos de doação visam o aumento de títulos dos dois acervos. Ainda, nas três Alas da unidade, trabalham 3 pessoas presas1 que são responsáveis por registrar os empréstimos quinzenais de cada homem preso e repassar a informação ao funcionário que trabalha na biblioteca, para que seja lançado ao sistema. Esses três homens são participantes “fixos” do Viajar , cada um em uma Ala e, no projeto, tem também a função de atrair novos participantes, pois a rotatividade de participantes é característica inerente de uma unidade de detenção provisória. Assim, a biblioteca e o projeto trabalham interligados, tendo como maior objetivo o acesso à leitura.
Em fevereiro de 2025 completaremos 3 anos no CDP de Santo André. Nossa meta agora é diversificar ainda mais nossas opções de leitura, pois a princípio optamos por obras escritas por pessoas negras e periféricas, daí recebemos as doações de Sobrevivendo no Inferno, Quarto de despejo, Via Ápia, Capão pecado e o Avesso da pele. Mas também temos o interesse de ler livros que nos permitam convidar os autores para conhecer e conversar com os grupos, esse tem sido um de nossos critérios. Recentemente, criamos um perfil no Instagram, @projetoviajarsemsairdolugar, com a finalidade de levar a produção escrita, e um pouco da experiência de leitura dos participantes, para além dos muros da prisão. É uma forma de ampliar nosso alcance e demostrar que pessoas privadas de liberdade também têm anseios literários e potência de produção escrita.
Instagram do projeto Viajar Sem Sair do Lugar
Nossa equipe também aumentou, hoje, como voluntários do projeto temos também: Leonardo Borges (mediador e parecerista); Pedro Rivellino (pedagógico); Gustavo Martins (comunicação); Técia Carvalho (dados estatísticos); Patrícia Osse (parecerista); Fernanda Passamai (parecerista); e Juliana Santiago (parecerista), as três são também pesquisadoras pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.
Assim como trabalhamos para garantir o direito ao acesso à leitura das pessoas presas, buscamos fazer desses pais, irmãos, tios e até avôs, que frequentam nossos encontros, promotores do livro e da leitura, tanto dentro das Alas prisionais, quanto entre seus familiares, que recebem os livros que distribuímos.
Nossos votos são para que as sementes que lançamos, toda vez que entregamos um livro, dêem muitos frutos e que possamos proporcionar muitas e boas viagens literárias aos nossos leitores. Até aqui atendemos 276 pessoas, que produziram 463 resenhas. 7 foram reprovadas. Se formos considerar as aprovações (456) e as multiplicarmos por 4 (dias concedidos por cada resenha aprovada), conquistamos, até onde pudemos atuar, pois depois nossa aprovação existe o aceite do Juiz de Execução, mil oitocentos e vinte e quatros dias, dias de liberdade.
Conheça o Projeto Viajar Sem Sair do Lugar:
PROJETO Viajar sem sair do lugar – projeto de Remição de pena por leitura do Centro de Detenção Provisória de Santo André – SP. São Paulo, 09 jul. 2024. Instagram: @projetoviajarsemsairdolugar . Disponível em: https://www.instagram.com/projetoviajarsemsairdolugar/. Acesso em: 08 de julho de 2024.
Notas dos autores:
[1] São contratados do Ponto de cultura, iniciativa da Fundação “Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel” (FUNAP).
Coordenadora do projeto de remição de pena por leitura “Viajar sem sair do lugar”, do CDP de Santo André, desde 2022. Mediadora de leitura em projeto de remição de pena por leitura em Centros de Detenção Provisória de São Paulo, desde 2017. Membra do Grupo de Pesquisa em Biblioeducação (ECA/USP) e voluntária em iniciativas ligadas às prisões e a familiares de pessoas presas e de sobreviventes do sistema prisional.
Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. Mestra em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade de São Paulo.
Ricardo Vieira da Silva
Diretor geral do Centro de Detenção Provisória de Santo André. Agente de Segurança Penitenciária do Governo do Estado de São Paulo.
Bacharel em administração pelo Centro Universitário UNIESP/ADVENTISTA. Licenciatura em Pedagogia pela Universidade Cidade de São Paulo – UNICID. Técnico em Gestão de Políticas Públicas pela ETEC Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal / Universidade de São Paulo.
Redação: Ricardo Vieira da Silva e Léia Santos
Fotografia: Secretaria da Administração Penitenciária do Governo do Estado de São Paulo.
Revisão e Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta e Ana Júlia Souza.
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