Editorial: O desafio de seguir os caminhos das águas na grande seca na Amazônia – Navegando pelo Madeira até ao Uruapeara, por Márcia Mura (Tanãmak)
O desafio de seguir os caminhos das águas na grande seca na Amazônia – Navegando pelo Madeira até ao Uruapeara
Márcia Mura (Tanãmak)
marcianeho@gmail.com
O Rio Iuri – Rio que Treme, atual Madeira, secou demais nesse verão último, secou tanto que até as hidrelétrica de Santo Antônio e Jirau1 paralisaram as atividades. Isso nos leva a perguntar se o ato de barrar o rio causa aos poucos sua morte. Para nós, que vivemos às suas margens, sim. Pois, após a construção das hidrelétricas, a cada ano que passa o rio seca mais no verão. Esse ano, em pleno final de novembro, o Rio estava com o nível de água lá em baixo; o igarapé “Boca do Furo”, no distrito de Nazaré no Baixo Madeira/RO, continuava com pouca água e a cabeceira do Lago Uruapeara no Amazonas continuava seca.
Na primeira semana de novembro de 2023, uma família Mura saiu de carro de Porto Velho até Humaitá/AM e, de lá, pegou um barco e navegou pelo Rio Madeira do final da tarde até as seis da manhã, quando chegou no distrito de Auxiliadora/AM e passou para uma embarcação menor, adentrando o rio Uruapeara até uma parte da viagem. Depois, atracou numa praia e a viagem seguiu de voadeira (ou rabêta), seguindo um canal estreito navegável que vai até certo ponto do lago, depois só por terra, pois até a cabeceira do lago tudo ficou seco.
Esse deslocamento pelas águas do rio Iuri é feito desde o tempo dos mais antigos do meu povo, quando fizeram o caminho fluvial vindo dos Andes e se estabeleceram na região que abrange a atual cidade de Porto Velho/RO, o baixo Madeira, e, depois das pressões coloniais, se dispersaram até as proximidades de Rio Negro. No século XVII, barraram por 100 anos a entrada de colonizadores no restante da Amazônia com suas próprias estratégias de defesa territorial. Atualmente, nós estamos em diferentes contextos territoriais, há territórios demarcados2 e em reivindicação no Amazonas e em Rondônia; apesar da divisão física em estados, todo o rio é nosso território Mura e também de outros povos que sempre percorreram nessas águas. No caso do nosso povo, desde que se estabeleceu nesse rio sempre fez esse caminho das águas, independente dessa divisão política em diferentes estados, feita após a invasão de nosso território. A minha família, já em contexto de espaço de seringais – espaços estabelecidos em cima de nosso território, para a exploração do leite da seringa para a produção de borracha, que, após a decadência da borracha, se tornaram espaços ribeirinhos e extrativistas –, desde a vinda dos meus avós para Rondônia faz esse percurso de deslocamento, saindo da atual Porto Velho, passando o rio para lado de Rondônia e indo até a boca do Lago Uruapeara/ AM, onde vivem famílias Mura em contexto de seringal e os povos Mura Pirahã e Parintim em territórios demarcados.
Nessa viagem agora, os desafios da seca foram bem maior. Navegando à noite e pela madrugada no barco maior pelo rio Madeira, na parte do Amazonas, houve vários momentos de tensão, por que o casco do barco se esfregava nos pedais ou nos canais rasos do rio, foi um desafio navegar até o distrito de Auxiliadora, mas conseguimos chegar às seis da manhã, quando mudamos para a embarcação menor, pois o barco grande não está entrando no rio Uruapeara, que está muito raso, segundo alguns moradores locais; em algumas partes do rio é possível encostar o remo no fundo.
No percurso da navegação no barco menor, fomos conduzidas em grande parte por uma mulher, com relação de parentesco com minha mãe por parte de pai, para quem eu perguntei como sabia o canal para navegar; ela respondeu que seu pai lhe havia ensinado a seguir os marrecos e os botos, pois eles só vão pelo canal mais fundo do rio. Achei esse conhecimento passado de geração a geração de uma beleza imensa e fiquei pensando que, apesar da destruição do nosso rio, as populações e os povos indígenas que vivem navegando conseguem manter suas vidas trazendo presentes a sabedoria dos mais velhos e a experiência vivenciada, lidando com os desafios postos pelas mudanças climáticas.
Num determinado ponto do rio, o barco pequeno atracou numa praia e começou a levar os passageiros de voadeira, eu minha família fomos numa rabêta com um parente que foi nos buscar. Fomos devagar e com cautela, pois o parente disse que estava muito raso. Nós nos assustamos quando tivemos que seguir por terra, carregando as bagagens, com cuidado para não nos atolarmos, pois andávamos pela parte que se encontrava seca, e, depois de atravessarmos um riacho, seguimos um caminho terrestre. Em outros anos, nesse período de outubro e novembro, as águas baixavam, mas conseguíamos chegar de canoa até a cabeceira do lago. Dessa vez, não, estava tudo seco, deu tristeza de ver.
Para os antigos que vivem às margens do lago Uruapeara, vive um grande Uruá, que é o peara dos Uruás e não deixa o lago secar. Por isso, ninguém pode matá-lo, para que o lago não seque, provocando a escassez de alimento e a dificuldade de navegação. Fiquei me perguntando o que havia acontecido com nosso peara dos Uruás? Será que o mataram? Talvez não, vai ver que tanta intervenção humana que vem prejudicando os rios, como as hidrelétricas e as minerações, fez com que ele tivesse mudado de lugar até a água voltar para a cabeceira do lago.
Os moradores locais, antigos seringueiros de origens indígenas – há famílias que voltaram a se afirmar como Mura e os Mura Piranhã –, estão sentindo as dificuldades de se deslocar e adquirir seus alimentos retirados do lago e dos rios Uruapeara e Ipixuna. Na parte onde ficamos, vivem os ex-seringueiros, e, dentre eles, há famílias Mura que vivem da pesca, do extrativismo, da caça e dos roçados tradicionais e que, mesmo com as escassez de alimentos, continuam se movimentando, fazendo compartilhamentos entre parentes e seus puxiruns – trabalho coletivo nos roçados. E, mesmo com as distâncias aumentadas pelos caminhos terrestres, visitam uns aos outros.
Os problemas ambientais são muitos, dentre eles o garimpo de exploração do ouro. Durante o percurso fluvial pelo rio Uruapeara, avistamos algumas dragas de garimpo queimadas3, uma parenta me explicou que a explosão das dragas pela polícia ambiental fez com que o peixe fosse embora, porque o barulho da dinamite os espanta. Eu ainda não tinha me dado conta desse efeito causado pelas explosões das balsas, mas tanto eu como outros parentes já nos perguntamos “por que não pensar uma forma de reaproveitar o material das dragas para benefício das comunidades?”. Ao invés de explodi-las, poderiam desmontá-las, pois ao serem explodidas vai tudo para o fundo do rio. Perguntamo-nos se isso também não prejudica o rio? Entre nós, sabemos que, de toda maneira, somos prejudicados, com a mineração passamos a nos alimentar com peixes contaminados por mercúrio e com as explosões das dragas os peixes vão embora. No fim de tudo, são as populações tradicionais e os Povos Indígenas que saem no prejuízo, assim como os rios que também são portadores de direitos que não são respeitados.
Durante os dias que ficamos na cabeceira do lago, na localidade Traíra, todos os dias um parente nosso passava para tirar leite da seringueira e pescar, passava às seis da manhã e voltava só nas proximidades do meio para o fim da tarde. Ele que nos contava da dificuldade de conseguir pescar algum peixe. Ele conseguia pescar num pequeno poço, com mais de uma hora de distância da nossa casa; mesmo assim, quando ele passava com um galho com peixes contados nele enfiados, ainda dividia conosco e nós retribuíamos com algum outro alimento. Assim vi outras famílias fazendo.
Mesmo com toda a seca, a comunidade estava movimentada, as famílias estavam fazendo puxirum entre si, que consiste em um trabalho coletivo entre parentes afins e sanguíneos, teve o puxirum do roçado do Pedro, do Orildo, ia ter o do Maga e da dona Amélia. Estava acontecendo o campeonato de futebol entre as mulheres das comunidades vizinhas, e nós, da cabeceira do lago, fizemos um encontro cultural envolvendo as crianças, com a literatura indígena e trabalhos de trançado de palha, reforma do telhado de palha da cozinha da minha mãe, partilha de alimentos num almoço com a parentada. Assim, apesar de sentirmos a quentura até dentro da mata, de termos a escassez de alimentos, de nos entristecermos em ver nosso lago seco e nosso rio com pouca água; continuamos navegando, seguindo os marrecos e botos, dividindo os poucos alimentos que conseguimos e fazendo nossos puxiruns.
Os efeitos das mudanças climáticas nos afetam tanto quanto ao povo da cidade, mas ainda estamos fazendo uso dos nossos saberes repassados de geração a geração, vivendo em comunidade, fazendo roçado, plantando árvores, defendendo os rios, as florestas e os seres que habitam nesses espaços, estamos garantindo o pouco que resta do nosso bem viver e garantindo a vida do planeta, mas até quando? Pois além de nos movimentarmos para garantir a nossa vida e a do mundo, ainda temos que combater um plano econômico capitalista que visa um desenvolvimentismo às custas das nossas vidas, mesmo que o sol chegue cada vez mais perto de nós, como dizem os mais velhos, ao sentir o aquecimento global. Nós gritamos: Como ainda persistem em construir hidrelétricas? Incentivar minerações, como no caso da exploração de potássio em território Mura em Autazes/AM, como achar que é viável a exploração do petróleo na Amazônia? Já não basta tanta guerra no mundo? Ou mudam as lógicas de exploração que não consideram nossa existência em nossos territórios e a iminência do esgotamento da vida no planeta, ou seremos todos extintos nessa terra. Nós, Povos indígenas e populações tradicionais, vamos lutar até quando houver um de nós existindo, e vocês da sociedade não indígena? E vocês chefes de ESTADOS, vão continuar passando por cima dos nossos corpos territórios?
Agora estamos vivendo o inverno Amazônico, o rio demorou a subir, as dragas de garimpo de ouro, que antes eram vistas somente no verão sugando nosso rio, agora também são vistas, mesmo com a subida das águas. Na comunidade de Nazaré no Baixo Madeira, o Igarapé Correnteza demorou a chegar, pois ele só aparece no inverno, faz pouco tempo que ele apareceu tardiamente, alargou um pouco, mas não se espalhou tanto como antes. O peixe escasseia cada vez mais, os desmatamentos e fazendas de gado avançam cada vez mais, a soja já chegou na região do baixo Madeira, estão devorando a floresta e expulsando os moradores tradicionais, às políticas de desterritorialização seguem em curso e as escolas no Baixo Madeira reforçam a política de embranquecimento e invisibilidade indígena, por meio de práticas educacionais etnocidas e epistemicidas, que não consideram os modos de ser indígena e ribeirinho que mantêm, apesar do ecocídio, uma vida ligada ao rio e a floresta.
É importante ressaltar que essa população ribeirinha vem de um processo de desterritorialização, até mesmo se mantendo no seu território, porque, na região amazônica, os projetos econômicos de desenvolvimento econômico não consideram as vidas dos povos e poluções locais, atravessam os territórios e as vidas, por esse motivo, dentro de uma perspectiva indígena entendemos que desenvolvimento nos tira da relação de envolvimento com o ambiente inteiro, nos tirando também da relação de pertencimento identitário/cultural.
Nós, do coletivo Mura de Porto Velho seguimos praticando e incentivando o plantio de roçados tradicionais para produzir alimentos de verdade e sem veneno, plantando árvores para fazer chuva, educando as crianças, adolescentes e jovens com uma pedagogia da afirmação indígena, colocando em diálogo nossos conhecimentos tradicionais indígenas com os componentes curriculares, na contramão de todo projeto de morte, nas rodas de conversas e vivências nas malocas de saberes, embaixo das árvores, às margens dos rios e dos lagos, percorrendo nosso território, mesmo que nas escolas institucionais nossa memória, tempo e história sejam negados.
Apesar da invisibilidade da presença das famílias Mura e de outros parentes no Baixo madeira, são essas famílias que ainda mantêm o pouco de floresta em pé, embora estejam sendo arrancadas e devoradas junto com a floresta, por causa do avanço do desenvolvimentismo, do agrotóxico, das especulações imobiliárias, dos projetos hidrelétricos, da exploração de minérios, dentre outros projetos que para nós representam a morte.
Nota da autora:
[1] A hidrelétrica de Santo Antônio, construída na capital de Porto Velho/RO, e a Jirau, no distrito de Jaci – Paranã, a 70 km de Porto Velho, causam grandes desestruturação ambiental, social e cultural. E, apesar de atravessar nosso território, a energia produzida não fica em Rondônia, as comunidades às margens do rio Madeira, envolvendo Rondônia e Amazonas, que têm energia são atendidas por empresas privatizadas, com o sistema de óleo diesel. Mesmo que algumas miniusinas tragam o rótulo do biodiesel, não o são totalmente, e, em alguns casos, como em Rondônia, a empresa ENERGISA privada instalou energia solar em algumas comunidades, mas em outros adentrou com seus tratores derrubando castanheiras centenárias, seringueiras e outras árvores que são sagradas para nós, para fazer as redes de fios de energia nos lugares mais longínquos, mas essa energia chega de forma precária, além de causar grande impacto ambiental abrindo varadouros na floresta.
[2] É importante destacar que mesmo os territórios demarcados estão sofrendo invasões e imposições de explorações, como no caso de Autazes/AM, onde a empresa estatal, com apoio do Estado, está adentrando o território Mura. Essa pressão de invasores é ainda maior nos territórios não demarcados oficialmente, como no caso do Itaparanã, no sul do Amazonas, que está sofrendo todas as formas de ataques com comunidade cercada pelos invasores. No caso de territórios em que estamos presentes e não somos reconhecidos é pior ainda, pois não temos como fazer uso das leis de defesa de território indígena para, pelo menos, denunciar as destruições do nosso território, ainda assim lutamos com nossos copos espíritos e combatemos os ataques etnocidas, racistas e epistemicidas com nosso trabalho, e de outros parentes no Baixo e alto Madeira pro lado de Rondônia, de recuperação de memória Mura.
[3] Existem as dragas pequenas de famílias locais, que garimpam para seus sustentos e tiveram seus grandes roçados destruídos pela inundação após a construção das hidrelétricas, e as grandes dragas, com maquinário mais potente de sugar o ouro do fundo rio. Essas dragas são casinhas ou grandes casas flutuantes; as menores são palhoças cobertas de palha, as grandes são casas de madeiras com quartos, ar condicionado e internet.
Sobre a autora
É parte do Povo Indígena Mura. Professora da Rede Pública de Ensino do Governo do Estado de Rondônia. Coordenadora do Coletivo Mura de Porto Velho e promotora da articulação de indígenas Mulheres Mura de Rondônia e Amazonas.
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Mestra em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Bacharela em História pela Universidade Federal de Rondônia. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) e membra do grupo de pesquisa Warakuna, primeiro grupo de pesquisa composto só por mulheres indígenas pesquisadoras.
Fotos: Antônio Maciel Mura, Tanã Mura, Márcia Mura e Jovana Galvão Mura
Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta