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v. 3, n. 6, jun. 2025
Inteligência artificial e preservação digital: entre algoritmos e memórias, por Charlley Luz

Inteligência artificial e preservação digital: entre algoritmos e memórias, por Charlley Luz

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Inteligência artificial e preservação digital: entre algoritmos e memórias

Charlley Luz
charlley@usp.br

A inteligência artificial (IA) já não pertence ao domínio do futuro: ela habita o presente, de forma silenciosa e pervasiva. Presente em assistentes de texto, tradutores automáticos, filtros de imagem e sistemas de recomendação, a IA também tem atravessado os campos da informação e da preservação digital, às vezes com entusiasmo, às vezes com desconfiança. Este ensaio propõe uma reflexão sobre como essas tecnologias estão sendo incorporadas às práticas de preservação, discutindo seus usos, limitações, riscos e possibilidades.

A presença silenciosa da IA em sistemas de acervo

Dois caminhos principais vêm sendo observados na adoção da IA em contextos de preservação. O primeiro é a integração de funcionalidades de IA em sistemas já consolidados. É o caso de repositórios digitais que passam a empregar algoritmos para agilizar processos de descrição, indexação ou recuperação da informação. Trata-se de um uso incremental, voltado à eficiência e à escalabilidade.

O segundo caminho envolve projetos que têm a IA como base estrutural. São iniciativas específicas para análise documental automatizada, identificação de padrões em grandes volumes de dados ou criação de modelos preditivos voltados à preservação a longo prazo. Aqui, a IA não é apenas uma camada adicional, mas um componente central da arquitetura do sistema.

Esses dois modelos não são excludentes — ao contrário, podem se complementar. Mas exigem abordagens diferentes quanto à governança, à formação de equipes e à infraestrutura. Nos sistemas de gestão de acervos digitais, a IA vem sendo adotada, muitas vezes, como uma funcionalidade complementar. Em plataformas como o ResourceSpace, algoritmos são utilizados para sugerir palavras-chave ou gerar resumos automáticos de documentos. Essa aplicação, aparentemente simples, é emblemática: ela substitui um ato interpretativo por uma operação estatística — e, ao fazê-lo, transforma o papel dos profissionais da informação.

Se antes a descrição arquivística era uma atividade intelectiva, baseada em julgamento, contexto e ética documental, agora ela passa a dividir espaço com modelos preditivos treinados a partir de grandes volumes de dados. Isso não elimina o papel humano, mas exige uma nova vigilância: entender os limites dessas ferramentas, reconhecer seus vieses e assumir o controle sobre os processos que impactam a organização da memória.

Competências e governança em tempos de automação

Com a entrada da IA no cotidiano das práticas arquivísticas e da preservação digital, emerge a necessidade de novas competências. Como mostrou a pesquisa conduzida por Moisés Rockenbach junto ao InterPARES, a formação profissional e de competências nesse campo precisa ser ampliada para incluir fundamentos da ciência de dados, pensamento computacional e avaliação crítica de algoritmos.

Além das competências técnicas, a questão da governança ganha centralidade. Não basta adotar ferramentas inteligentes; é preciso criar estruturas para seu uso ético, transparente e sustentável. A norma ISO/IEC 42001, dedicada à governança de sistemas de inteligência artificial, aponta diretrizes nesse sentido, propondo princípios, procedimentos e formas de mitigar riscos. Sua adoção no campo da preservação digital pode fortalecer a confiança nos processos automatizados, ao mesmo tempo em que preserva a autonomia das instituições.

Mas a governança depende também de infraestrutura e curadoria. Sem bases de dados bem organizadas, com metadados consistentes e interoperáveis, não há IA que funcione de forma efetiva. A eficácia da automação está diretamente vinculada à qualidade dos dados que alimentam os sistemas — um princípio básico, mas frequentemente negligenciado.

Retrieval-Augmented Generation e os “pequenos cérebros especializados”

Dentre as abordagens emergentes no campo da IA aplicada à informação, o modelo conhecido como Retrieval-Augmented Generation (RAG) tem ganhado destaque. Diferente dos grandes modelos de linguagem treinados para “saber de tudo”, o RAG articula essas inteligências com bases de dados específicas e curadas. Assim, quando o sistema precisa responder a uma pergunta ou gerar um resumo, ele consulta fontes confiáveis — como repositórios institucionais ou arquivos especializados — antes de formular sua resposta.

Esse modelo permite a criação de inteligências “locais” ou “especializadas”: pequenos cérebros voltados a domínios específicos, baseados em dados qualificados. Em vez de uma IA genérica, que responde com base em um universo incerto de conteúdos, temos sistemas ajustados a contextos precisos, com vocabulário controlado e curadoria documental. Para a preservação digital, esse modelo é particularmente promissor. Ele permite ampliar o acesso à informação sem sacrificar a qualidade ou a contextualização das respostas.

Ética, autenticidade e a integridade das evidências

Se as possibilidades são muitas, os desafios éticos não ficam atrás. A delegação de tarefas arquivísticas à IA exige atenção redobrada à autenticidade e à integridade dos documentos digitais. Como garantir que um documento processado por algoritmos — ajustado, resumido, convertido — ainda mantenha seu valor como evidência? Como auditar decisões tomadas por sistemas opacos, muitas vezes baseados em redes neurais de difícil explicação?

A preservação digital sempre esteve ancorada em princípios como rastreabilidade, contextualização e confiabilidade. A IA, ao introduzir camadas de interpretação automática, pode tensionar esses princípios. Isso não significa rejeitá-la, mas integrá-la com cautela, estabelecendo mecanismos de controle, documentação dos processos e participação humana nas etapas decisivas.

Outro ponto sensível é a sustentabilidade. Modelos de IA de larga escala demandam energia, processamento e recursos que muitas vezes não estão disponíveis para instituições públicas, arquivos comunitários ou pequenas bibliotecas. A adoção da IA precisa considerar não apenas os benefícios técnicos, mas também as desigualdades estruturais que podem ser reproduzidas ou ampliadas por seu uso.

Entre a promessa e o cuidado

Estamos diante de um momento decisivo na relação entre tecnologias emergentes e preservação digital. A IA oferece ferramentas poderosas para ampliar o acesso, otimizar fluxos e enfrentar o desafio da escala. Mas sua adoção requer mais do que entusiasmo: exige pensamento crítico, políticas claras, formação continuada e compromisso com os princípios da justiça informacional.

Se queremos que a memória digital do presente continue legível no futuro, precisamos assumir o protagonismo na mediação dessas tecnologias. Isso significa cultivar inteligências humanas e artificiais que se complementem, sem que uma anule ou obscureça a outra. Significa, sobretudo, colocar a preservação da memória — e não a admiração pela automação — no centro do debate.

Sobre o autor:

Charlley Luz

Professor e líder do Grupo de Estudos em Preservação Digital e Inteligência Artificial (PreservIA) da rede Cariniana do IBICT. Sócio-fundador da  Feed Consultoria e Serviços de Marketing LTDA. Atua em projetos de  organização da informação, com ênfase  em vocabulários controlados, tesauros e arquitetura da informação

Doutorando e mestre em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. Especialista em Gestão de Serviços e Sistemas de Informação pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Redação: Charlley Luz

Foto: Magerson Bilibio

Diagramação: Marcos Leandro Freitas Hübner

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