
As memórias como as expressamos: uma questão informacional, por Luis Fernando Massoni

As memórias como as expressamos: uma questão informacional
Luis Fernando Massoni
luismassoni@ufba.br
A sociedade historicamente construiu lugares, bens, objetos, símbolos, emblemas, rituais e outros fenômenos, sejam públicos ou privados, destinados à preservação das memórias socialmente compartilhadas. A essas manifestações, o historiador francês Pierre Nora nomeou como “lugares de memória”, dentre os quais temos como exemplos clássicos os museus, as bibliotecas e os arquivos – mas não apenas esses.
Para a pesquisadora Jô Gondar, um dos pressupostos da memória social é que ela é um conceito ético e político. Assim, por trás de toda memória preservada, há uma disputa de poder, que é também responsável pelas memórias não preservadas, por vezes fruto do descuido com nossos acervos ou da prática de silenciá-los, para produzir e reforçar esquecimentos.
A Ciência da Informação, a Biblioteconomia, a Arquivologia e a Museologia, fortemente preocupadas com a manutenção e a gestão das instituições acima citadas, ao longo do tempo não mediram esforços para planejar e implementar políticas de preservação, representação e salvaguarda dos documentos depositados nelas.
Sem dúvidas, essas áreas possuem a expertise necessária para gerir esses estoques informacionais, tendo a documentação, a preservação e a disseminação da informação como motes de estudo. Entretanto, por vezes, tenho a impressão de que nosso campo permanece restrito a uma visão apenas “documental” sobre a memória da sociedade na qual estamos inseridos. Discursos como o de que um determinado acervo representa “a memória” de um lugar ou de uma instituição, por exemplo, não raro são encontrados nos trabalhos de conclusão, nas dissertações e nas teses que escrevemos.
O documento é fonte de informação, registro de conhecimentos e memórias, nisso concordo! O que me causa incômodo é considerar que o que é registrado é “a” memória – no singular. Essa perspectiva é equivocada, pois desconsidera que, como postulado por Maurice Halbwachs, há tantas memórias coletivas quanto os grupos dos quais fazemos parte, as quais são formadas pelo entrecruzamento das memórias individuais dos sujeitos que as compõem. Nesse sentido, é fundamental lembrar que memória coletiva é sempre plural – não podemos falar que há uma única memória (no singular), pois muitas são as memórias, compartilhadas por meio de informações e moldadas por intenções.
Entendo que as informações que produzimos, compartilhamos, publicamos, difundimos, acessamos e usamos são narrativas e, como tal, são fruto de nossas experiências no mundo. Assim, certamente são ricas e fascinantes, mas também enquadradas e incompletas por natureza. Isso porque a memória é fruto da representação, que é sempre parcial: um detalhe, um resquício, um fragmento, uma fração, uma parte, um pedaço, uma possibilidade.
Assim, sendo a informação sempre uma representação, seu caráter parcial a coloca em uma situação delicada: ela não esgota as possibilidades de apreensão dos fenômenos que representa. Em outras palavras: uma informação, um documento ou um acervo são apenas uma narrativa que representa apenas uma memória dentre as muitas possíveis.
Os documentos organizados, guardados e expostos em arquivos, bibliotecas e museus, bem como quaisquer outros documentos e monumentos, são fontes de informação, mas não são fontes de memória: são registros de memória, suportes por meio dos quais nós expressamos nossas visões sobre o mundo. O que quero dizer é que o documento não é fonte de memória, ele apenas a estabiliza e representa: a memória em si está nas pessoas, sendo elas as fontes de memória. O documento apenas ajuda a lembrar (ou, por meio do silenciamento, a esquecer) as memórias que carregamos em nós mesmos.
Nesse sentido, a Ciência da Informação se vê diante do desafio de pensar memória e informação para além dos acervos e das instituições tradicionais de memória, sendo necessário se desprender de seu foco único nos registros e nos documentos. O intuito seria, juntamente com os documentos, registros e acervos, estudar as práticas socioculturais nas quais eles estão inseridos – e que os explicam e significam.
Outro aspecto fundamental que precisamos sempre lembrar é que o documento é fruto de relações de poder. Assim, a narrativa apresentada por um acervo deve sempre ser questionada: quem, ao longo do tempo, teve acesso aos meios de produção e registro da informação? E quem não teve, preservou sua informação de que forma? Como estudaremos as memórias que não estão registradas?
Os estudos sobre memória social são complexos, e é preciso um olhar crítico e criativo, especialmente quando pensamos no cruzamento desse campo com as teorias da Ciência da Informação. Em levantamento recente, na condição de atual coordenador do GT 10 – Informação e Memória da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação (ANCIB), identifiquei que há estudos sobre memória em diversos programas de pós-graduação da área no Brasil. Memória é um tema presente em grupos de pesquisa, teses, dissertações, linhas de pesquisa e até áreas de concentração, além de contar com revistas e eventos especializados na discussão da articulação entre memória e informação. O diálogo está consolidado, mas precisamos sempre refletir sobre como compreendemos esses estudos.
Para dar conta de compreender esses fenômenos, recentemente publiquei o e-book “Expressões da Memória”, em coautoria com Jussara Borges, que se encontra disponível gratuitamente no site da editora Pimenta Cultural. A obra é uma coletânea com textos escritos por diferentes autores e busca compreender a forma como cada fonte de informação se constitui como uma expressão de nossas memórias individuais e coletivas. O primeiro capítulo se intitula “As Memórias se Expressam” e nele apresentamos o conceito de “expressões da memória”. Recomendo a leitura a quem desejar conhecer mais essa perspectiva acerca dos estudos sobre informação e memória.
Longe de propor dogmas ou teorias, desejo que este breve texto sirva para ventilar ideias e mentes, de modo que o/a leitor/a passe a considerar que há muito mais memórias do que aquelas registradas em documentos e monumentos… e que nós as expressamos em nosso cotidiano!
Sobre o autor:
Professor do Instituto de Ciência da Informação da Universidade Federal da Bahia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador do GT 10 – Informação e Memória da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação. Lidera, com Valdir Morigi, o Grupo de Pesquisa Representações, Memória Social e Cidadania. É membro do Grupo de Pesquisa em Competências Infocomunicacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua junto ao Grupo de Estudos de Políticas de Informação, Comunicações e Conhecimento da Universidade Federal da Bahia.
Doutor e mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharel em Biblioteconomia e em Museologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Realizou estágio pós-doutoral em Ciência da Informação junto à Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Redação: Luis Fernando Massoni
Foto: Luis Fernando Massoni
Diagramação: Naiara Raíssa da Silva Passos