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v. 1, n. 6, ago. 2023
As águas da Museologia de Memórias Traumáticas, por Ana Paula Brito

As águas da Museologia de Memórias Traumáticas, por Ana Paula Brito

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As águas da Museologia de Memórias Traumáticas

Ana Paula Ferreira de Brito

britoanapaulaa@gmail.com

No curso de História, aprendemos, desde o primeiro semestre da graduação, que é preciso duvidar das fontes. Eu, filha de feirante, já havia aprendido isso desde menina, nas ruas da feira de Santa Rita, Paraíba. O cruzamento de dados e a persistência na curiosidade me foram aliadas durante o caminho de aprendizagem que tenho seguido. Caminho, esse, que é a jornada do ser humano, pois nunca paramos de aprender.

Foi nos bancos do curso de História que me aproximei academicamente pelo universo da memória e do patrimônio, pois como pessoa, já tinha essa aproximação desde a saída do ventre de Dona Vanda, minha mãe. Especialistas da memória, enquanto função cognitiva, explicam que algumas memórias, sobretudo de traumas, podem ser retidas com maior profundidade ao adquirirmos a linguagem, mas, não limitada a ela.

Fixei essa informação, particularmente, não pelo que registrou o especialista Henri Bergson (1999), entre   outros   teóricos  do  campo,  mas pelo testemunho [1] de Ângela Urondo, filha de militantes assassinados pela ditadura argentina. Ângela não falava quando presenciou o assassinato de seus pais, mas conseguiu reter a lembrança do ocorrido.

No Brasil, diferentemente dos países vizinhos, tardamos a enfrentar esse passado ditatorial. Será que o nosso “jeitinho brasileiro” de sempre agradar, desencadeou esse silêncio tão longo e doloroso? Quem dera fosse isso.

No rio de memórias da ditadura (1964), foram manipulados muitos desvios de águas, sujas de sangue, durante e depois da transição da ditadura. O objetivo era impedir um desague que resultasse no esclarecimento da verdade e na responsabilização dos crimes de lesa humanidade cometidos pelo Estado.

Um desses desvios importantes foi informar sobre um “regime militar” e não sobre uma “ditadura”. O termo “regime”, sempre me incomodou, parecia que faltava algo. Faltava e segue faltando ainda hoje, independentemente de quando você leia esse texto.

As memórias da ditadura civil-militar no Brasil têm uma trajetória de institucionalização do silêncio, que se dirigia a mim como um convite ao descumprimento da norma. 

Seria uma transgressão enquanto cidadã? Enquanto estudante/ pesquisadora? Quais temas hoje seriam transgressões no seu universo de estudos? Quais outras memórias de traumas, você considera marginalizadas social e academicamente no presente?

Essa marginalização das memórias das pessoas, foi evidenciada para mim, quando imersa na documentação do acervo da Delegacia de Ordem Política e Social-DOPS da Paraíba, encarei de frente essa afronta investigativa, mesmo tendo ouvido conselhos do tipo: “melhor deixar esse assunto pra lá”.

Na documentação do DOPS/PB, que estava salvaguardada pela Universidade Federal da Paraíba, me deparei com fichas e processos de pessoas, que não me aproximavam realmente das histórias, ali, fatalmente manipuladas pelos agentes da repressão ditatorial.

Foi nesse contexto de ausências, vazios e manipulação da nossa memória nacional, que criei o projeto “Compartilhando memórias”. No projeto, desenvolvido no Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB, passamos a fazer entrevistas de história oral com os sobreviventes da ditadura e investigar sobre as histórias registradas nos documentos.

Nesse movimento, saí da margem do rio, entrei nele e, tendo cruzado fontes e depois, disciplinas, me deparei com meandros (caminhos tortuosos do rio), afluentes e muitas outras partes desse grande rio das memórias traumáticas da ditadura. Avancei nessa caminhada em outros estágios de formação, graduação, mestrado, doutorado; sempre aliando pesquisa acadêmica, com o trabalho institucional em instituições de memórias, sobretudo, museus.

Na encruzilhada desses dois universos de atuação, espiei por uma brecha e olhei a janela da Museologia e, freirianamente, decidi que eu poderia abrir essa janela e parar de espiar. Mesmo despida de colares de pérolas e camisas de linho branco, ou seda pura, eu poderia vestir meu vestido de chita e me tornar uma namoradeira da janela da Museologia. Debruçada nessa janela, encarei meu segundo mestrado, carregada por inquietações de outrora, ressignificadas e marcadas, pela caminhada entre a teoria e a prática.

Se pudesse descrever com uma analogia minha motivação em realizar esta pesquisa neste campo do conhecimento, diria tratar-se do desejo de conhecer a Museologia enquanto confluência fluvial. Permita-se imaginar que a nascente do rio aventado seja o campo interdisciplinar da memória e do patrimônio cultural, que dispõe de uma fonte de água inesgotável. E identificando a memorialização da ditadura como uma afluente desse rio, o desejo é o de desfrutar do encontro dela, com outros fluxos de água, identificando e encontrando uma potente confluência fluvial da produção de conhecimento museológico. Esse encontro de água é dinâmico e precisa necessariamente estar em movimento. O fenômeno pressupõe um encontro com alguns elementos variantes e o resultado está em fluxo constante. E essa necessidade do movimento contínuo, peculiar da Museologia, interessa e motiva a observação (Brito, 2023, p.19). 

Nesse fluxo constante do movimento das águas, desaguei na proposta da Museologia de memórias traumáticas com meu vestido de chita. Na dissertação que leva o mesmo título, analisei a produção acadêmica da Museologia brasileira, publicada no período de 2014 a 2020, buscando identificar como tem sido a ocupação da Museologia com as discussões sobre as memórias da ditadura.

Me debrucei e analisei 22 trabalhos acadêmicos, sendo 4 teses de doutorado, 3 dissertações de mestrado, 11 artigos e 04 ensaios/relatos de experiências. O material foi encontrado a partir da busca em cinco repositórios científicos, a saber: dissertações e teses de programas stricto sensu em Museologia, artigos de revistas acadêmicas da Museologia, anais de eventos da Museologia, anais de eventos nacionais de áreas congêneres da Museologia (História, Antropologia e Ciências Sociais), e no repositório da Capes, com critérios estabelecidos considerando a pergunta estruturante da investigação.

Foram muitas as pausas feitas durante esse estudo, que ocorreu em meio ao período pandêmico, atravessado por mortes e tragédias. Mas não somente o contexto externo mobilizava essas pausas; os relatos, os temas dos trabalhos, também pediam pausas, respiros, autocuidados. O pesquisador, que lida com a Museologia de memórias traumáticas, enfrenta cotidianamente memórias de violências que ultrapassam a barreira do sensível, são temas carregadores de gatilhos para experiências individuais de dor. Não há neutralidade possível. Uma vez entendido isso, é importante que estejamos atentos a não ignorar que o tema afeta, não apenas aquele que lê/ouve/vê. Mas também aquele que comunica.

A Museologia de Memórias Traumáticas-MMT é uma área de estudos dentro da Museologia, que se concentra na investigação, preservação, ressignificação, comunicação e gestão de memórias relacionadas a eventos traumáticos da história. É carregada por uma abordagem que nega a existência de neutralidade, quando o assunto é a defesa da dignidade da pessoa humana e que prioriza o papel da Museologia como ativadora de debates conflituosos no presente, para potencializar a defesa dos direitos humanos.

A proposta da MMT surge na literatura acadêmica lusófona, a partir do trabalho acima mencionado, mas seu desenvolvimento é fruto de uma caminhada da Museologia e seu olhar para o social, sobretudo com os avanços trazidos pela Nova Museologia, Museologia Social e Sociomuseologia.

A Museologia de memórias traumáticas busca lidar com memórias sociais de traumas históricos, como genocídios, ditaduras, guerras, conflitos armados internos, catástrofes naturais e outros eventos de grande impacto para uma coletividade. Portanto, não se limita às memórias traumáticas de ditaduras.

Entre seus princípios, reside a importância de não negar os conflitos e disputas pela memória pública oficial; não atuar exclusivamente em prol de homenagens personalistas, mas, antes, promover uma democratização de memórias historicamente marginalizadas para promoção de uma consciência cidadã. Portanto, operar com memórias, para ações em defesa da vida.

A promoção do diálogo é algo inerente dessa vertente de estudos museológicos, que através da investigação museal sobre eventos traumáticos, espera ativar reflexões intergeracionais para uma cultura democrática, cotidianamente. Que essas águas ultrapassem as margens do rio, da Academia e dos museus e, encontrem pés que irão caminhar na defesa da democracia e dos direitos humanos.  

Referências

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BRITO, Ana Paula Ferreira de. Museologia de memórias traumáticas: produção acadêmica da Museologia brasileira sobre a ditadura (2014-2020). 2023. Dissertação (Mestrado em Museologia) – Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2023.

BRITO, Ana Paula. Escrachos aos torturadores da ditadura. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2017.

CHAUMONT, Jean-Michel. Du culte des héros à la concurrence des victimes. Criminologie. Les presses de l’Université de Montréal, vol. 33, nº 1, p. 167-183, 2000.

PRIMO, Judite. O social como objecto da museologia. Cadernos de Sociomuseologia, Lisboa, v. 47, n. 5, 2014.

Sobre a autora

Ana Paula Ferreira de Brito

Coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisadores de Sítios de Memória e Consciência. Atuou na Casa do Patrimônio de João Pessoa, na diretoria do Núcleo de Preservação da Memória, na coordenação da pesquisa histórica e museológica para a implantação do futuro Memorial da Luta pela Justiça, no Memorial da Resistência de São Paulo, no Memorial da Democracia da Paraíba, no Memorial das Ligas e Lutas Camponesas entre outras instituições museológicas e de pesquisa histórica.

Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Museologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestra em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas, com período sanduíche na Universidad de Buenos Aires. Doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com período sanduíche na Universidad de Barcelona. 


Redação e Foto: Ana Paula Ferreira de Brito

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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