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v. 3, n. 5, maio 2025
Agência feminina, terra e multissensorialidade: a mitopráxis Tikmũ’ũn no cinema – Entrevista com Joana Brandão Tavares

Agência feminina, terra e multissensorialidade: a mitopráxis Tikmũ’ũn no cinema – Entrevista com Joana Brandão Tavares

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Agência feminina, terra e multissensorialidade: a mitopráxis Tikmũ’ũn no cinema – Entrevista com Joana Brandão Tavares

Joana Brandão Tavares
joana.brandao@ufsb.edu.br

Sobre a entrevistada

Em 2022, Joana Brandão Tavares defendeu sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, sob a orientação da Profa. Dra. Maíra Kubík Taveira Mano.

Baiana, Joana é solteira e mãe. É professora na Universidade Federal do Sul da Bahia e Jornalista na TV Porto/TV Cultura. Em seu tempo livre, é praticante de capoeira e adora escutar música.

Sua tese, intitulada “Agência feminina, terra e multissensorialidade: a mitopráxis Tikmũ’ũn no cinema”, analisa o cinema do povo Maxakali, ou Tikmũ’ũn, como se autodenominam, sob uma perspectiva de gênero. Buscou entender como a agência, os fazeres e conhecimento agenciados pelas mulheres, se fazem presentes em filmes feitos coletivamente pelos Tikmũ’ũn, nas dimensões narrativas e poéticas dos filmes. Buscou também entender como a presença de uma mulher na equipe de filmagem, pode incidir sobre a poética do filme, de forma a captar imagens que são articuladas por um corpo feminino, construído com marcadores de gênero dentro de uma cultura indígena. Seu trabalho recebeu menção honrosa no Prêmio Capes 2023.

Nesta entrevista, Joana compartilha sua trajetória acadêmica e os aprendizados construídos em diálogo com o cinema do povo Tikmũ’ũn (Maxakali).

Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?

Joana Brandão (JB): Eu já vinha de uma trajetória de mais de dez anos de trabalho junto às comunidades indígenas, no fortalecimento da comunicação popular, área pela qual me interessei desde a graduação. Havia coordenado um projeto de educação popular em direitos e comunicação junto a oito etnias indígenas do Nordeste, denominado Pelas Mulheres Indígenas, na ONG Thydêwá, através do qual conheci diversas mulheres lideranças políticas e espirituais em suas comunidades. Foi uma experiência muito marcante e alegre ao mesmo tempo, conhecer mulheres com tanta sabedoria e agência política dentro e fora de suas comunidades. Então, quando decidi continuar minha formação acadêmica através do doutorado, sabia que queria continuar dialogando com estas mulheres. Como eu também já tinha uma trajetória dentro do audiovisual, pensei que um caminho seria estabelecer este diálogo dentro das artes, mais especificamente, no cinema. Em 2017, teve uma edição do Cine Kurumin em Salvador (BA), um festival de cinema indígena, no qual fiquei imersa vários dias, assistindo filmes indígenas de diversas localidades e povos do Brasil. Ali eu tive certeza que queria estudar o cinema aliando-o a uma perspectiva de gênero que previa-se dentro do programa de pós-graduação onde estava inserida.

DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e  conclusões alcançados?

JB: O momento mais definitivo foi mesmo no momento da escrita, quando comecei a estabelecer conexões entre as anotações que tinha feito no percurso das leituras e discussões teóricas das quais havia participado, e também quando comecei a mergulhar na análise dos filmes. Ali eu entendi que eu estava fazendo uma ponte, uma conexão entre diferentes disciplinas, algo que ainda não tinha sido feito, para fazer a leitura do cinema e da questão de gênero dentro dele. 

DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?

JB: O primeiro livro que me abriu a percepção sobre o tema da minha tese de forma mais incisiva foi o “Escuta e poder na estética Tikmũ’ũn maxakali” da professora Rosângela de Tugny, que me apresentou de forma mais detalhada a alteridade da sensorialidade que se dá  partir da cosmopolítica maxakali. Depois, a tese de Claudia Magnani sobre as mulheres maxakali que faz uma descrição etnográfica densa me apresentou como a agência das mulheres indígenas é construída ritualisticamente no cotidiano e nas práticas materiais, me ajudando entender quais elementos eu deveria buscar nos filmes para encontrar estes rastros sensoriais, estéticos, poéticos deixados pela agência feminina na tessitura fílmica.  “A floresta de cristal: nota sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”, de Viveiros de Castro, é um texto que me trouxe um elemento parecido ao livro da Tugny, mas referente ao xamanismo amazônico. São textos que nos fazem perceber que cosmologias distintas convocam corporalidades, epistemologias e sensorialidades outras. Os textos de Alfred Gell e Els Lagrou sobre arte e agência também foram embasadores para pensar a arte para além do lugar dual entre objeto e sujeito dos cânones artísticos da sociedade euroamericana.

DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?

JB: A tese articula de forma interdisciplinar a questão de gênero buscando usar aportes desenvolvidos em diversas disciplinas para fazer uma abordagem analítica. Ela consegue encontrar no cinema elementos da corporalidade e sensorialidade percebidas nos estudos da antropologia, vislumbrando nos filmes uma extensão da transformação cosmopolítica agenciada nos rituais e práticas cosmológicas.

DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?

JB: A minha tese propõe pensar as questões de gênero desde um paradigma-outro de alteridade, e refletir como a arte pode nos abrir portas – conceituais e sensoriais – para compreender a complexidade como pode se dar tanto as relações de gênero e as relações de alteridade na sociedade. Estas relações são fundantes das práticas sociais, e no contexto da sociedade cis-hetero-patriarcal capitalista, oriundas das construções coloniais, se dão fundadas em uma dualidade fundada no apagamento e violência. Então perceber formas outras de tecer estas relações de alteridade, de viver nossos corpos e experiências políticas e estéticas é vislumbrar também novas formas de nos relacionarmos, em que a alteridade seja partilhada, articulada e compreendida no caminho de um tecer coletivo, em que modos que valorizam a fecundidade, modos  gerativos (para usar conceitos cunhados pela antropóloga Joanna Overing) sejam fundantes das nossas sociabilidades, por meio de cotidianos que valorizem redes de cuidado e bem-viver. 

DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?

JB: Primeiramente li muitas etnografias sobre os povos Maxakali, me atualizando sobre o estado-da-arte da pesquisa sobre sua história e cultura. Depois busquei trabalhos que dialogassem com o método etnográfico, mas construindo análises que fossem além deste método. Encontrei na etnografia fílmica um método de ponto de partida, e que foi realizado conjuntamente com a análise fílmica.

DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese? 

JB: Não creio que seja possível quantificar o processo epistemológico e criativo em percentuais tão precisos. Certamente tem os dois, e a própria prática da vida, o observar a nossa própria sociedade e as violências tecidas no cotidiano, conviver cotidianamente com seus efeitos no meu corpo, saúde e na minha possibilidade de agência enquanto pessoa, dos equívocos dos modos de trabalho e instituições capitalistas, são todos caminhos para produção do conhecimento. Ou deixar-se arrebatar por um filme, de forma a sentir, ou vislumbrar a possibilidade de  desconstruir em uma sala de cinema estes modos coloniais, são formas também de dar lugar ao conhecimento. Então, a minha produção acadêmica não se dá a parte deste viver, mas ao mesmo tempo ela demanda um esforço de sistematização, de articulação e embasamento, que só pode ser adquirido com o estudo solitário e muitas vezes silencioso. Durante anos eu conseguia ler poucas páginas durante o dia, e tinha muito receio que não conseguisse produzir a tese naquele ritmo. Mas entendi que o conhecimento se dava também na minha observação do cotidiano e da complexa sociedade na qual estou imersa, que é a sociedade brasileira, o território onde nasci e cresci, o interior da Bahia, e a materialidade das agências que atravessaram este territórios, as culturas afro-indígenas que conformam minha percepção estética e política do mundo, foram caminhos também orgânicos para produção de conhecimento, que não podem ser distinguidos entre suor e inspiração, pois integram a própria práxis orgânica da vida.

DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?

JB: Teço melhor sobre este ponto na pergunta abaixo. A vivência familiar mais marcante dos últimos anos certamente foi a maternidade. Minha filha sentiu e expressou inúmeras vezes o quanto minha ausência física ou mental causada pelo doutorado lhe afetava. Isso certamente doía. Porque a escrita demanda um estado, às vezes, ensimesmado, em que ficamos ali voltadas para nosso próprio pensamento, articulando inúmeros conceitos e referências, antes de colocá-los no papel. Este estado é precisamente o oposto do que demanda uma criança no seu primeiro setênio, que é disponibilidade, presença atenta e vigorosa. Foi dificílimo e exaustivo me dividir entre e articular estes dois estados de presença cotidianamente, a cada dia.

DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?

JB: A maior dificuldade foi certamente administrar a jornada múltipla entre mãe solo, pesquisadora e trabalhadora. Trabalhei integralmente durante o período da tese, tive uma licença de 10 meses para fazer o sanduíche, período durante o qual consegui tecer a estrutura do que seria o eixo conceitual da tese. Mas a escrita mesmo se deu conjuntamente com o trabalho, os cuidados da maternidade durante a pandemia em que as redes de apoio e cuidado coletivas estavam significativamente fragilizadas e reduzidas. Pensando no âmbito acadêmico, articular-se dentro do espaço da interdisciplinaridade é às vezes assustador, pois é necessário entender os diversos paradigmas dentro de cada disciplina para poder articulá-los de forma consistente e que, de alguma forma, possa contribuir separadamente para o estado-da-arte de cada disciplina, aprimorando conceitos e práticas metodológicas dentro de um campo de conhecimento.

DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis  sobre sua tese?

JB: Desejo aprofundar certamente a reflexão sobre como as percepções e construções em torno dos conceitos de natureza e cultura são fundantes na construção das sociabilidades, relações de alteridade e de gênero dentro de cada sociedade. Além disso, entender melhor a arte como um lugar de fazer cosmopolítico, um labor de transformação da pessoa por meio da expansão das sensorialidades e possibilidades epistemológicas.

DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?

JB: Faz três anos que concluí a tese e, durante este período, me afastei dela e da pesquisa acadêmica. Voltei-me para as demandas práticas da vida, para as demandas de gestão do meu trabalho, e para o fazer cotidiano de jornalismo e cinema. Claro que tudo com uma nova lente, um novo brilho, adquirido no processo da pesquisa e construção de conhecimento que o doutorado convocou. Mas pretendo voltar logo mais a mergulhar na articulação dos conceitos com esta práxis comunicacional e artística, assim como formas de expressar este conhecimento em fazeres coletivos, de forma a tornar o conhecimento uma práxis inovadora.

DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora? 

JB: Faria tudo novamente da mesma forma. Não há forma de conhecer o caminho e aprender a caminhar sem fazê-lo. Especificamente na minha jornada também não acho que houve erros, houve tentativas que me mostraram perspectivas, e me permitiram entender diferentes lados e abordagens, para poder sim fazer escolhas críticas e fundamentadas em teorias e metodologias que fizessem mais sentido para minha percepção e exercício de pensamento crítico sobre a sociedade e sobre as realidades que me propus analisar. Tracei um percurso que partiu das teorias da comunicação, atravessou as teorias de gênero e encontro na antropologia uma forma de pensar mais condizente com o que me propunha estudar. Apenas teria tentado me alimentar melhor neste percurso e ter dançado mais para fazer tudo de forma mais leve e feliz com o meu próprio corpo.

DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?

JB: Não foco minha prática científica na produtividade. Então não publiquei muito, mas publiquei coisas que fizeram sentido para mim. No começo do doutorado, apresentei um artigo sobre movimento político das mulheres indígenas no Congresso Fazendo Gênero, que considero extremamente relevante pois foi resultado da vivência e observação direta que tive o privilégio de fazer durante o projeto “Pelas Mulheres Indígenas”. De forma semelhante, o filme “As Indígenas da Terra” apresenta este conhecimento e agência articulados por mulheres indígenas do interior da Bahia. Apresentei um artigo no congresso InDigital – Conference, nos Estados Unidos, voltado para mídias indígenas, que acho que abriu portas para entender a dimensão ritual e sensorial do cinema indígena a mobilizar o dispositivo fílmico. Também colaborei para a escrita do memorial para titulação de notório saber da cineasta indígena Sueli Maxakali, que foi um trabalho de grande aprendizado para mim. Por fim, o texto “Quem pariu Mateus que Balance: a maternidade e o deserto patriarcal” foi o melhor desabafo que poderia ter feito sobre as  dificuldades, sufocamentos e silenciamentos que vivi sendo mulher e mãe acadêmica. E já agora, após a conclusão do doutorado, lancei meu primeiro livro de poesia que reúne poesias escritas também durante aquele período. Este livro e as palavras que ele contém é um labor de transformação das experiências vividas, motivando no presente encontros e trocas em torno de corpos poéticos, políticos e vigorosos no mundo. Certamente a pesquisa acadêmica sobre arte, interculturalidade e interdisciplinaridade me fez entender possibilidades de diálogos entre as diversas expressões artísticas e epistemológicas que atravessam a minha pessoa.

DC: Você exerceu alguma monitoria/estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?

Sim. Fiz estágio de docência obrigatório na disciplina Antropologia I, no curso Bacharelado em Antropologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Sob orientação da professora Cecilia McCallum, por meio desta disciplina, tive um maior aprofundamento nas teorias antropológicas e método etnográfico que foi muito importante para minha formação como pesquisadora e professora, e para tecer a metodologia de pesquisa da tese.

DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?

JB: Acho que a pesquisa não pode ser apartada da vida. Devemos pesquisar temas que nos convoquem a amar a vida, a estar nela com força e vontade de transformação. A pesquisa pode servir para responder nossa próprias perguntas mais íntimas sobre o que pretendemos fazer em nossa práxis cotidiana como pessoas vivendo em um momento histórico e buscando exercer nossa agência para transformá-lo em algo certamente melhor para nos, para as nossas próximas gerações, e em honra e respeito aos nossos ancestrais que aqui estiveram e cuidaram de nós. Espero que minha pesquisa sirva de referência para que possamos pensar as cosmopolíticas indígenas nas diversas linguagens e modalidades artísticas.

DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?

JB: Uma relação de troca de aprendizado e partilha e, definitivamente,de paciência. O aprendizado é um caminho árduo, e não somos ensinados pelas instituições de ensino  -desde a escola infantil, até os outros níveis, a lida com nossas próprias dificuldades.  Entendemos dificuldades como veredictos de fim, quando não na verdade índices de movimentos feitos.


Entrevistada: Joana Brandão Tavares

Entrevista concedida em:  14 abril de 2025

Formato de entrevista: Escrita 

Redação da Apresentação: Ana Júlia Pereira de Souza

Fotografia: Joana Brandão Tavares

Diagramação: Ana Júlia Pereira de Souza

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