
Entrevista com Jéssica de Sá sobre sua pesquisa que analisou aspectos simbólicos da prática da leitura literária em contextos de adversidade

Entrevista com Jéssica de Sá sobre sua pesquisa que analisou aspectos simbólicos da prática da leitura literária em contextos de adversidade
Jéssica Patrícia Silva de Sá
j.jessicadesa@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2022, Jéssica Patrícia Silva de Sá concluiu seu doutorado em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob orientação do Prof. Dr. Cláudio Paixão Anastácio de Paula.
Jéssica é natural de Minas Gerais e possui como hobbies a leitura e assistir a seriados. Atualmente, é Bibliotecária/Documentalista no Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais.
Sua tese, intitulada “Aspectos simbólicos da prática da leitura literária em contextos de adversidade”, investigou a apropriação simbólica da leitura literária por leitores em situações de adversidade, no que se refere às fragilidades físicas, psicológicas ou sociais. Em seu trabalho, foram realizadas entrevistas com leitores, e a análise dessas entrevistas demonstrou que a leitura não é uma simples distração, mas, sim, uma experiência afetiva, social e existencial, capaz de proporcionar autonomia, elucidar vivências singulares, promover atividades psíquicas e elaborar emoções e pensamentos.
Jéssica nos conta, nesta entrevista, como desenvolveu sua pesquisa e como foi sua experiência no doutorado.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Jéssica de Sá (JS): Meu ingresso na Pós-Graduação veio de uma vontade de prosseguir com meus estudos. Eu gostei muito da graduação em Biblioteconomia, mas queria expandir ainda mais meus conhecimentos. Venho também de uma cultura familiar que enaltece bastante o estudo.
O interesse pela realização de uma pesquisa com a temática da leitura literária tem como fundamento uma inegável afeição pessoal pela literatura, que resultou em inquietações e questionamentos acerca dos leitores de obras literárias e suas relações com os livros. Esse interesse resultou em uma dissertação de mestrado sobre leitura e seu compartilhamento em plataformas digitais, que possibilitou o ingresso no mundo de vida dos leitores de literatura. Embora não fossem o objetivo principal da investigação à época, alguns relatos revelaram a potência da leitura para lidar com sentimentos e vivências desafiadoras, tais como: solidão, depressão, medo, angústia, tédio, timidez. À vista disso, a tese de doutorado pretendeu explorar mais a temática, norteada pela leitura que se aprofunda na mente, se enraizando no consciente e no inconsciente do leitor.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
JS: Acredito que foi no momento da coleta de dados. Eu tinha algumas questões norteadoras que conduziram minha pesquisa: “Como sujeitos em situações de adversidade tornam-se leitores? O que esses sujeitos encontram na leitura que os faz resistir às situações adversas? Qual sentido simbólico é atribuído à prática da leitura literária por esses sujeitos?”. Mas quando eu realizei as entrevistas com os leitores e obtive relatos tão ricos foi que eu senti que tinha uma tese. Ouvir as experiências dos leitores com as obras literárias, compreendendo suas vivências e como a apropriação do texto lido impactou no enfrentamento de situações adversas foi muito intenso. Alguns relatos foram difíceis de ouvir, pois envolviam temas como aborto, abuso sexual, depressão, ansiedade, pobreza, fome, bullying, doenças graves. Mas, ao mesmo tempo, foi lindo escutar como a leitura de obras literárias auxiliou essas pessoas a passarem por essas adversidades. A análise das falas dos leitores foi complexa, extensa e muito instigante! Foram necessárias idas e vindas na minha base teórica para fazer uma análise robusta e pertinente.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
JS: A Michèle Petit é a principal referência do meu trabalho, eu li quatro livros dela que dialogam com o tema da minha tese. Ela é uma antropóloga francesa que desenvolveu diversas pesquisas sobre experiências de leitura em contextos de crise. Eu fiz marcações, fichamentos e anotações sobre esses livros, foi um árduo trabalho, mas valeu a pena. Eu fui apresentada a essa autora ainda na graduação, no quinto período, pela Profa. Dra. Maria da Conceição Carvalho, que lecionava a disciplina “Leitura e Formação de leitor”. Essa disciplina foi fundamental na minha trajetória como pesquisadora, sou grata até hoje à Professora Conceição, que inclusive esteve na banca de defesa.
Indico os quatro livros da Michèle Petit para quem tiver interesse: A arte de ler ou como resistir à adversidade (2009); Leituras: do espaço íntimo ao espaço público (2013); Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva (2009); Ler o mundo: experiências de transmissão cultural nos dias de hoje (2019).
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
JS: O ineditismo da tese está na proposição do conceito de leitura fluídica, na qual o leitor é capaz de guiar-se pela sua necessidade atual e transitar por diversos perfis de leitura, de modo a atender às suas necessidades psicológicas, emocionais e sociais. Tal perfil foi evidenciado na investigação, categorizando o leitor que se apropria dos textos literários de modo dinâmico e intuitivo de maneira a enfrentar as adversidades.
Considero também que o uso da Abordagem Clínica da Informação em um estudo sobre leitura foi algo inédito na Ciência da Informação. Essa abordagem, estruturada pelo Prof. Claudio Paixão Anastácio de Paula, possibilitou o acesso às dimensões subjetivas e inconscientes dos sujeitos, de modo a tornar possível a captação de informações para além do discurso direto dos leitores entrevistados, de modo a apreender os conteúdos imagéticos e simbólicos, que foram essenciais na etapa de análise dos dados.
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
JS: A tese conclui que há muitas instâncias em que a leitura literária protagoniza ações de ruptura, transgressão, enfrentamento, resistência. A pesquisa discorreu sobre a potencialidade da leitura literária em ser apropriada pelo sujeito como forma de resistir às adversidades. A análise realizada demonstrou que a leitura não é simples distração, mero prazer despretensioso, mas sim, experiência afetiva, social e existencial, capaz de proporcionar autonomia, elucidar vivências singulares, promover a atividade psíquica, despertar emoções e pensamentos.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
JS: A pesquisa contribui para desmistificar algumas concepções do senso comum, tanto em relação ao perfil dos leitores – idade, escolaridade, profissão – como os impactos da leitura na vivência dos sujeitos. Se, na linguagem popular, “a leitura salva vidas”, nesta pesquisa esse “salvamento” foi identificado, compreendido e analisado como os cinco processos psíquicos decorrentes da prática da leitura no enfrentamento de situações adversas –processamento / integração, circum-ambulação, identificação / catarse, consolação, amplificação.
Foi surpreendente identificar o protagonismo dos leitores na criação de estratégias de enfrentamento às adversidades (sejam elas conscientes ou não) recorrendo à prática da leitura literária para encontrar, ainda que de modo não necessariamente intencional, fortalecimento emocional, acolhimento, escape, reconstrução psíquica, elaboração de traumas, compreensão de si mesmos e do mundo que os cerca.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
JS: A metodologia é sempre um desafio, pois são muitas decisões a serem tomadas. Eu queria ouvir os leitores, então pesquisei sobre História Oral. Já a Abordagem Clínica da Informação foi escolhida pela possibilidade de compreensão da dimensão simbólica dos discursos, então eu optei por fazer uma junção desses dois métodos. O objetivo foi buscar informações no discurso direto dos leitores por meio dos relatos (História Oral) e também do discurso indireto (inconsciente) através da análise de símbolos e imagens (Abordagem clínica da Informação).
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?
JS: Eu considero que tive 30% de inspiração e 70% de transpiração para escrever a tese. Escrever é um trabalho árduo, mas muito gratificante. Eu tinha o hábito de reler bastante tudo que eu tinha escrito até o momento para que eu pudesse não apenas revisar, mas também ter mais insights. Eu estudava muitas horas por dia.
A coleta de dados foi bem trabalhosa, como eu optei por fazer entrevistas, dependia de outras pessoas para prosseguir com a tese. A análise de dados foi bem empolgante, mas tive que fazer muitas leituras também.
Eu realmente adorei fazer essa tese, recordando agora, sinto saudades dessa época.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
JS: Tenho sim. Uma parte muito difícil do doutorado, por incrível que pareça, não foi a escrita da tese, mas sim as disciplinas obrigatórias. Infelizmente, eu tive o projeto da minha tese invalidado por pessoas (dentre elas, docentes) que afirmavam que uma pesquisa sobre leitura não se enquadrava na Ciência da Informação. É complicado lidar com isso, visto que eu havia sido aprovada na seleção do Programa de Pós-Graduação, tinha um orientador da minha pesquisa, e mesmo assim tinha que reafirmar o tempo todo o valor do meu trabalho.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
JS: Foi ótimo, eu tive muito apoio e compreensão da minha família. Meus pais sempre me incentivaram muito a estudar. Meu marido também acolheu todas as minhas necessidades e angústias, ele assumiu várias demandas para que eu pudesse priorizar a tese. Minha irmã e cunhado também estavam fazendo doutorado, então nos apoiamos mutuamente.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
JS: Durante a pesquisa, houve problemas decorrentes do desenvolvimento de uma investigação totalmente remota em meio ao contexto pandêmico, como quedas de conexão da rede de internet e falhas em áudio e vídeo durante as entrevistas, o que afetou o desenho metodológico da pesquisa que, em outro contexto, poderia contemplar uma segunda rodada de entrevistas.
No tocante ao aspecto social da pesquisa, considera-se que a compreensão do contexto social dos colaboradores da pesquisa foi parcialmente prejudicada, uma vez que as entrevistas por videochamada não conseguiram abarcar nuances que encontros pessoais poderiam trazer, de modo a caracterizar melhor as condições de vida dos participantes.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
JS: Como pesquisas complementares e futuras, sugiro o estudo de outros grupos de pessoas e de outros tipos de adversidades, bem como um estudo mais detalhado dos contextos sociais de leitores que experienciam adversidades. Recomendo a expansão dos estudos sobre leitura literária no campo da CI, indicando o uso da Abordagem Clínica da Informação para análise dos fenômenos infocomunicacionais em diferentes grupos e contextos. Por fim, proponho o aprofundamento da proposta conceitual de leitura fluídica e sua aplicação em outras pesquisas.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
JS: Pretendo continuar atuando como bibliotecária, seja na universidade ou em outra instituição. Mas não descarto a possibilidade de atuar como docente no futuro, caso surja alguma oportunidade. Também cogito fazer outra graduação e continuar estudando.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
JS: Pergunta difícil. Eu sinto que no mestrado eu estava muito mais perdida, o que fez com que eu aprendesse bastante coisa correndo atrás mesmo. No doutorado, eu já sabia o “caminho das pedras”, no que concerne à estrutura da tese, divisão dos capítulos, metodologia. Na escrita da tese eu já estava bem mais madura. Talvez eu teria me preparado de uma forma diferente para a defesa, nada me preparou para seis horas de banca, foi bem cansativo.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
JS: Eu fui muito estimulada pelo meu orientador a publicar trabalhos, então considero que tive uma boa produção acadêmica. Eu publiquei 11 artigos, 8 capítulos de livro, 8 trabalhos apresentados em evento, além de organizar 2 livros durante o doutorado. Nunca tinha parado pra contar antes, realmente foi muita coisa.
DC: Exerceu alguma monitoria / estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
JS: Eu participei de um projeto no qual lecionei a disciplina Gestão de Unidades de Informação para alunos do segundo período de Biblioteconomia. A disciplina estava muito relacionada com a minha prática profissional, pois eu atuava como bibliotecária em uma biblioteca municipal. Foi uma experiência maravilhosa, tenho contato com alguns alunos até hoje. Infelizmente, as aulas ocorreram durante a pandemia, então foram no formato do ensino remoto emergencial. Gostaria de ter lecionado também aulas presenciais.
DC: Elas contribuíram em sua tese? De que forma?
JS: A experiência docente não dialogou diretamente com minha tese, como eu disse, a disciplina estava mais vinculada à minha prática profissional como bibliotecária. Eu considero que a experiência contribuiu muito para minha formação como professora.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
JS: Mergulhem na teoria sobre leitura, é muito bom formar um bom arcabouço teórico. Mas os principais protagonistas são sempre os leitores, ouçam os leitores, eles tem muito a dizer e a contribuir. Cada leitor tem uma infinidade de experiências lindas e inspiradoras de leitura.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
JS: Sou testemunha da qualidade da produção quando existe um alinhamento entre orientador e orientando. Meu orientador Prof. Dr. Cláudio Paixão foi como um pai acadêmico, contribuiu imensamente para o trabalho. Ele realmente cumpriu seu papel como orientador com críticas, sugestões, apontamentos, referências. O Claudio se tornou um grande amigo durante o doutorado, daqueles de longas conversas e áudios no whatsapp. Nós trabalhamos muito bem juntos, considero que a tese é nossa. Meu carinho por ele é eterno.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
JS: Ainda não. Após a defesa eu me dediquei a estudar para um concurso público na área de Biblioteconomia e, depois, tive meu bebê. Estou voltando da licença maternidade agora. O que eu consegui fazer nesse tempo foi escrever um artigo e um capítulo de livro sobre a tese, mas ainda não foram publicados. Também concedi uma entrevista sobre a tese para a Rádio UFMG.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
JS: Infelizmente, quando ingressei no doutorado eu precisava de uma bolsa de estudos, mas houve um corte de verbas e eu não consegui. Então fiz o curso todo trabalhando e estudando. Houve uma falta de apoio ao discente nesse sentido financeiro, mas não é culpa do Programa de Pós-Graduação. Consegui auxílio para ir ao CBBD 2019 apresentar alguns trabalhos e isso já foi muito bom. Da minha parte, contribuí com a produção acadêmica de artigos, capítulos de livro, trabalhos apresentados em eventos e até mesmo organização de dois livros. Além disso, defendi o doutorado 1 ano antes do fim do prazo, o que ajuda o Programa, visto que atrasos interferem nas avaliações dos cursos de pós-graduação.
DC: Você por você:
JS: Uma pesquisadora sensível e curiosa, em constante aprendizado.
Entrevistada: Jéssica Patrícia Silva de Sá
Entrevista concedida em: 05 de dezembro de 2024 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Ana Júlia Souza
Fotografia: Jéssica Patrícia Silva de Sá
Diagramação: Ana Júlia Souza