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v. 3, n. 1, jan. 2025
Andanças que me levam não tem Sul nem Norte, por Avacir Silva

Andanças que me levam não tem Sul nem Norte, por Avacir Silva

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Andanças que me levam não tem Sul nem Norte

Avacir Gomes dos Santos Silva

avacir.santos@unir.br

“Vou me embora, vou me embora. Vou buscar a sorte. Caminhos que me levam
não tem sul nem norte, mas meu andar é firme e meu anseio é forte ou eu 
encanto a vida ou desencanto a morte”

(Paulo Diniz e Roberto José, 1971)

Os versos da canção: “Vou-me embora”, do grande compositor e cantor Paulo Diniz, retratam a minha história de vida. Igual a tantos outros filhos de retirantes nordestinos, fugitivos da seca, eu não tive o caminho da tradição familiar a ser seguido. Por isso, encanta-me muito mais a ideia de andanças. O andar de cá pra lá e de lá pra cá, formatou meu modo de ver, sentir, compreender o mundo.  Nas minhas andanças me fiz gente, professora, pesquisadora e escritora.

Para cumprir a saga de “vida e morte severina”, eu, a única aluna pobre da escola durante as férias trabalhava de boia fria, babá e empregada doméstica. Na volta às aulas, quando a professora pedia a tal redação sobre as férias, enquanto as outras meninas escreviam sobre as aventuras de viagens eu inventava histórias daquilo que eu não vivi. Acho que veio daí a minha necessidade da escrita, com ela descobri a possibilidade de criar outros mundos.

Meus pais vieram do Nordeste, eu nasci no Sul. E lá, era certo, não ficaria. Em 1986 migrei para Rondônia. No início daquele ano fui contratada como professora pelo Governo de Rondônia. O choque cultural entre o que vivi no Sul do país e a nova realidade era algo assustador.  Em 1987 iniciei minha graduação em Pedagogia no Campus de Porto Velho. Neste ano, nossa turma foi a última que estudou nas dependências do prédio da Unir Centro.

Um ano antes havia chegado em Rondônia. Atravessava a avenida Presidente Dutra e passava pelas escadarias da Unir sonhando com o dia em que adentraria naquele local, que mantinha, para mim, uma áurea de puro encantamento. 

O Campus de Porto Velho, distante 5 km do centro da cidade, foi inaugurado um ano depois. Agora, era preciso pegar o ônibus para o trabalho e de lá para a Universidade. Durante as infindas greves de motorista ou quando faltava o dinheiro para a passagem, a aventura era pular a catraca ou pegar carona com os caminhoneiros, que circulavam pela BR-364. 

Depois de vários anos de experiência na docência da Educação Básica, em 2004 fui aprovada em primeiro lugar no Concurso Público Docente da Universidade Federal de Rondônia, onde além da atuação docente cursei o Mestrado em Geografia. Em 2008 saí da região Norte e fui para o Centro-oeste para o Doutorado na Universidade Federal de Goiás, UFG. De lá viajei para Santiago de Compostela (Espanha) para o Estágio Doutoral.

Capa do livro: “Culturas desviantes” resultado do doutorado da pesquisadora

A minha tese: “Culturas desviantes: as espacialidades das comunidades ribeirinhas do Vale do Guaporé”, foi eleita pela Editora da UFG, entre as melhores do ano de 2012. Como premiação a tese foi publicada em formato de livro. E assim, escrevi meu primeiro livro: “Culturas desviantes: andanças pelo Vale do Guaporé” (2014), o qual retrata o modo de vida dos ribeirinhos, que vivenciam a simbiose entre o mundo das águas e o mundo da floresta.

De volta a Unir realizei uma pesquisa sobre a colonização do Vale do Guaporé, por meio da história de vida dos migrantes sulistas e nordestinos, que chegaram na região no final das décadas de 70 e início da década de 1980. A pesquisa resultou na publicação do 2º livro: “Cacaios e sonhos: histórias dos Narradores do Vale do Guaporé” (2017). Graças a coragem e o trabalho daqueles migrantes hoje temos um lugar para chamar de nosso Estado e nossa cidade.

Tempos mais tarde fui aceita no Pós-Doutorado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Uerj, durante o ano de 2018. Outro choque cultural, sim. Mas agora eu estava na Cidade Maravilhosa, entre montanhas, o mar e o samba a gente “deixa a vida me levar”. Nesse tempo e espaço na Uerj vivenciei experiências maravilhosas e pude compreender a lindeza existente entre a geografia, a religião e a cultura, para além daquilo que sonhava minha vã filosofia.

Em 2021 foi publicado o livro: “Os guardiões dos Santos Reis no Vale do Guaporé”, resultado do Pós-doutorado, no qual é retratado um pouco da imensa lindeza dos saberes e fazeres   dos grupos, que cantam a alegria ao Rei, por esse distante rincão brasileiro.

Capa do livro: “Os guardiões dos Santos Reis no Vale do Guaporé” escrito durante o pós-doutorado

No auge da pandemia Covid-19, aceitei o desafio de escrever uma biografia. “Dirceu Bettiol: a história de vida de um pescador de sonhos” (2022), um livro singelo e grandioso, que nos permite compreender o quanto a história de um homem se estende para a vida de tantas outras pessoas e para além dos sonhos de menino.

O mais recente livro, “Falas do tempo: causos crônicas e histórias” (2024), foi contemplado pelo Ministério da Cultura – 2023, por meio do Prêmio “Carolina Maria de Jesus”. A obra é um convite para se reviver a magia das histórias, num tempo quando a vizinhança se reunia na frente de casa, até altas horas e cada um contava uma história mais fascinante que a outra. As histórias narradas por Carmela e Carmelita retratam a passagem de dois séculos de vivências de duas mulheres pretas, mãe e filha, com a compreensão de que o tempo fala da própria transição e da transição humana.

Ao longos dos anos, em minhas andanças tornei-me professora, pedagoga, historiadora, mestre, doutora, pós-doutora e escritora. Realidades impensadas pela menina preta que veio do sul. Com certeza, outros caminhos seriam trilhados com a permanência na cidade natal. Mas escolhi ampliar a zona de combate, para outras tantas labutas.  Assim, as andanças em outras paragens me possibilitaram maior compreensão do que sou e do meu estar no mundo.

Capa do livro: “Falas do Tempo” contemplado pelo com o Prêmio “Carolina Maria de Jesus” do Ministério da Cultura

Ao ensimesmar sobre todos esses momentos de tantas e tantas andanças rio.  Meus pais fugitivos da seca saíram do sertão nordestino e ficaram no Sul. Eu vim do Sul à procura de melhores condições de vida. Fui para o cerrado, de lá atravessei o Atlântico. Voltei para Norte, desci para o Centro Sul. Andei, andei, venci, voltei, aqui estou e se preciso for, de novo irei para onde o tempo, o vento e Deus me levarem.

Das certezas da vida levo apenas uma: a educação, para quem “não nasceu em berço esplêndido”, é a única possibilidade de transformação pessoal e quiçá social.  Sigo em minhas andanças, encantando-me com a vida e quem sabe um dia poderei encantar a morte.

Sobre a autora:

Avacir Gomes dos Santos Silva

Professora do Departamento de Pedagogia da Universidade Federal de Rondônia. É pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Cultura e Religião em Rede e Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas de Especialidades Amazônicas.

Pós-Doutora em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás. Mestra em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia. Licenciada em Pedagogia e História  pela Universidade Federal de Rondônia.


Redação e Foto: Avacir Gomes dos Santos Silva 

Diagramação: Ana Júlia Souza

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