
Entrevista com Bianca Ferraz sobre sua pesquisa que abordou as a prática de leitura literária no sistema socioeducativo

Entrevista com Bianca Ferraz sobre sua pesquisa que abordou as a prática de leitura literária no sistema socioeducativo
Bianca Ferraz dos Santos
ferrazproducoesbc@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2022, Bianca Ferraz dos Santos concluiu seu mestrado em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sob a orientação da Profa. Dra. Patrícia Vargas Alencar.
Bianca é natural de Duque de Caxias (RJ) e lidera há 10 anos a Ferraz Produções, uma empresa especializada em eventos literários, onde atua como gestora cultural. Nas horas vagas, Bianca participa de rodas de samba, frequenta shows, cinema e teatro, além de gostar de reunir os amigos e relaxar na praia.
Sua dissertação, intitulada “Leitura Literária na Socioeducação: Ações de mediação da leitura nas unidades do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo”, aborda a relevância da mediação da leitura para jovens em medidas socioeducativas. O estudo evidencia como a leitura literária pode ser uma ferramenta de ressocialização e desenvolvimento pessoal e conclui que a leitura é um pilar essencial na formação de indivíduos críticos e criativos.
Nesta entrevista, Bianca compartilha detalhes sobre sua pesquisa, o impacto das ações literárias em contextos socioeducativos e sua experiência no mestrado.
DC: O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação?
BF: Decidi fazer o mestrado porque desejava ampliar meu conhecimento e fortalecer minha trajetória profissional com um trabalho que fosse além das atividades práticas, tocando o coração das questões sociais e culturais. Após minha graduação e especialização em gestão cultural, trabalhei em diversos projetos que reforçaram meu compromisso com a transformação social por meio da cultura. Em 2015, ao implantar salas de leitura no sistema socioeducativo do Espírito Santo, tive uma experiência marcante de seis meses, em contato direto com adolescentes em medidas socioeducativas, além do corpo técnico e da diretoria. O momento mais impactante foi quando um dos jovens expressou seu desejo de estudar biblioteconomia após sua saída, revelando a força da leitura como um catalisador de esperança e mudança. Isso me fez perceber que a mediação da leitura vai além de uma simples atividade: é uma ferramenta de ressocialização, diversidade e inclusão. Com essa vivência em mente, em 2019, optei por um mestrado que refletisse essa necessidade de trazer relevância e significado à minha trajetória, mesmo em meio aos desafios da pandemia.
Outro fator que me levou a aprofundar essa pesquisa foi perceber que os adolescentes em medidas socioeducativas estão, muitas vezes, distantes do convívio familiar e carecem de atividades que estimulem o desenvolvimento emocional e cognitivo. A leitura, além de promover uma fuga momentânea da realidade, possibilita a vivência de outras histórias e a conexão com diferentes experiências, ajudando esses jovens a expandir sua visão de mundo e a desenvolver a empatia e a criatividade. Vi a necessidade de explorar como a mediação de leitura pode ser uma prática inclusiva, capaz de atender tanto jovens alfabetizados quanto aqueles em situação de analfabetismo funcional, garantindo que ninguém fosse deixado para trás.
Ademais, notei que as práticas de mediação de leitura em ambientes socioeducativos muitas vezes careciam de sistematização, o que dificultava uma avaliação consistente dos impactos e resultados. Isso me motivou a buscar formas de contribuir para uma metodologia mais estruturada que pudesse servir de base para mediadores e instituições, destacando o papel essencial dos bibliotecários, com seu olhar humanista e capacidade de promover a inclusão e a diversidade por meio da cultura. Acredito que a mediação da leitura, quando bem conduzida, tem o potencial de ser um caminho de ressocialização e de formação integral, algo que queria explorar e contribuir academicamente.
DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?
BF: Os principais beneficiados são os jovens em medidas socioeducativas, mediadores de leitura e as instituições que os acolhem. A pesquisa mostra como a mediação da leitura, quando conduzida por profissionais com um cunho humanista como os bibliotecários, pode servir como uma ponte para a ressocialização e o desenvolvimento pessoal. A diversidade cultural promovida através da leitura ajuda a criar um espaço de reflexão e autoconhecimento, elementos fundamentais para a reintegração e construção de um futuro mais inclusivo e promissor.
DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade?
BF: Minha dissertação enfatiza a importância de uma sistematização para a prática de mediação da leitura literária no sistema socioeducativo, especialmente em contextos onde não há modelos definidos. Além disso, um dos objetivos foi contribuir para o aperfeiçoamento das atividades de mediação da leitura no sistema socioeducativo, fomentando a realização de novos estudos e discussões acadêmicas sobre o tema. Espero que isso promova um debate amplo sobre a importância de pensar e ampliar as ações que contribuam para a ressocialização dos adolescentes, bem como a criação de políticas públicas de incentivo à leitura. Também viso incentivar a criação de projetos como a Sala de Leitura por parte de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, que compreendem a importância de colaborar para a ressocialização desses jovens e para sua reintegração social. Minha intenção é que este trabalho vá além da academia, servindo como base para pautar políticas públicas que fomentem a prática de leitura e promovam ações que valorizem a cultura e a inclusão, fortalecendo o papel da leitura como um caminho de ressocialização e desenvolvimento humano.
DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós Graduação? Por quê?
BF: Meu trabalho está inserido na linha de pesquisa “Biblioteconomia, Cultura e Sociedade” porque explora como a mediação da leitura pode impactar a formação social e cultural de adolescentes em contextos de privação de liberdade. O foco é humanista e busca mostrar a biblioteca como um espaço de diversidade e inclusão, promovendo a ressocialização e a valorização da cultura.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua dissertação?
BF: As obras de Michèle Petit, como A arte de ler ou como resistir à adversidade e Os Jovens e a leitura, foram fundamentais. Petit aborda a leitura como uma forma de resistência e ressignificação da vida, conceitos que ressoaram com minha experiência no sistema socioeducativo, evidenciando como a prática pode oferecer novas perspectivas e humanização. Paulo Freire, com A importância do ato de ler, trouxe a perspectiva da leitura como prática de libertação e construção de sentido crítico. A tese de Julião, E. F., A ressocialização através do estudo e do trabalho no sistema penitenciário brasileiro (Doutorado em Ciências Sociais, UERJ, 2009), e o artigo de Julião, E. F. e Paiva, J., A leitura no espaço carcerário (Perspectiva, 2014), enriqueceram minha compreensão do papel da educação e da leitura em contextos de reclusão, reforçando a conexão entre práticas culturais e ressocialização.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
BF: A metodologia foi baseada em uma abordagem exploratória com coleta de dados quali-quantitativa. Realizei entrevistas e apliquei questionários a mediadores de leitura e profissionais do sistema socioeducativo para entender suas perspectivas e desafios. Essa etapa foi complementada por uma análise bibliográfica detalhada, com referências interdisciplinares em biblioteconomia, educação e serviço social, para embasar a relevância da mediação de leitura e seu impacto em contextos de crise.
DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?
BF: A escassez de material específico sobre mediação de leitura no sistema socioeducativo, em comparação com o sistema prisional, foi um grande desafio. Para suprir essa lacuna, precisei buscar referências na educação e no serviço social. A conciliação do trabalho prático com a pesquisa acadêmica, especialmente durante a pandemia, também foi desafiadora. Além disso, a ausência de bibliotecários nas instituições reforçou a importância da minha pesquisa em mostrar como esses profissionais, com seu cunho humanista, poderiam contribuir significativamente para práticas de leitura que promovem ressocialização e inclusão.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a dissertação?
BF: Diria que foi 30% inspiração e 70% transpiração. A inspiração veio do impacto das minhas experiências com jovens em medidas socioeducativas e da crença na leitura como um instrumento de transformação social. No entanto, o trabalho árduo, a pesquisa detalhada e a superação dos desafios práticos demandaram muita dedicação e esforço.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da dissertação?
BF: Essa jornada foi marcada por crescimento pessoal e profissional, com desafios que testaram minha resiliência. A pesquisa é pioneira em sua área e espero que inspire outros estudos que ampliem o referencial teórico sobre o papel da mediação de leitura na ressocialização. Fiquei especialmente satisfeita em ver o reconhecimento e o potencial de impacto da minha pesquisa em um campo tão relevante.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?
BF: Esse período foi particularmente difícil. Além dos desafios do mestrado e da pandemia, enfrentei o câncer terminal do meu marido, que faleceu pouco antes da defesa da dissertação. Essa foi uma das fases mais dolorosas da minha vida, mas a empatia dos meus orientadores e o apoio da academia foram essenciais para que eu mantivesse a determinação. Essa solidariedade me ajudou a concluir essa etapa, mesmo em meio à dor.
DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
BF: Recomendo que escolham um tema que os inspire e que tenha um impacto social relevante. É importante se conectar com as pessoas envolvidas no contexto de estudo e valorizar a diversidade e a inclusão como elementos centrais da pesquisa. A vivência prática enriquece o trabalho e traz um significado maior para a produção acadêmica.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
BF: Publiquei o artigo A sistematização como um recurso para o planejamento da prática da leitura literária no sistema socioeducativo, que teve boa recepção. Participei de palestras e eventos, compartilhando os achados da minha pesquisa e reforçando a importância da cultura e da leitura como ferramentas de ressocialização. Estou continuando essas discussões no meu doutorado na USAL.
DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?
BF: Desde a conclusão, apliquei e fui aprovada no doutorado. Continuo pesquisando e usando minha voz como pesquisadora para ampliar o debate sobre a ressocialização e a importância da leitura. Essa é uma causa que sigo levando em meus projetos e na minha vida, sempre com o compromisso de promover a inclusão e a diversidade.
DC: Pretende fazer doutorado? Será na mesma área do mestrado?
BF: Sim, estou cursando o doutorado na Universidade de Salamanca (USAL), no programa de Formação do Conhecimento. O projeto, intitulado Estudo da Importância da Mediação da Leitura em Contextos de Crise: Caso do Sistema Socioeducativo Brasileiro, expande a pesquisa do mestrado para um contexto mais abrangente, buscando impactar políticas e práticas em todo o Brasil.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
BF: Planejaria melhor a gestão do tempo e buscaria mais apoio em redes colaborativas para lidar com os desafios de forma mais tranquila. Aprendi que compartilhar experiências com outros pesquisadores pode ser uma fonte de força e inspiração.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de mestrado?
BF: O Programa me deu uma base teórica sólida e um suporte empático fundamental, preparando-me para o doutorado internacional. Embora o ambiente acadêmico às vezes seja considerado hostil, minha experiência foi de acolhimento e crescimento. Em troca, contribuí com minha presença em seminários e workshops, trazendo discussões sobre a importância da leitura em contextos de crise e promovendo uma visão mais inclusiva e humanista da biblioteconomia.
DC: O que você recomendaria para os Programas de Pós Graduação?
BF: Seria valioso que mais programas acadêmicos fomentassem parcerias com projetos comunitários e instituições públicas para que o conhecimento gerado possa ter um impacto real e positivo na sociedade. Acredito que integrar a prática acadêmica com ações no campo e projetos sociais pode não só enriquecer o aprendizado dos alunos, mas também ampliar o alcance das pesquisas e fortalecer políticas públicas voltadas para a inclusão e a diversidade. A academia precisa estar mais conectada às demandas sociais e trabalhar de forma interdisciplinar, incentivando o diálogo entre áreas como a educação, biblioteconomia, serviço social e cultura. Isso ajudará a criar um ecossistema colaborativo onde as pesquisas tenham aplicações práticas e relevância no desenvolvimento de soluções para os desafios enfrentados por comunidades vulneráveis. Também é fundamental promover a formação de novos profissionais com uma visão humanista e consciente de seu papel social, que atuem como agentes de transformação em suas áreas e que busquem criar impacto positivo por meio da cultura, da leitura e do conhecimento compartilhado.
DC: Você por você:
BF: Obstinada, resolutiva e sonhadora. Tenho uma esperança inabalável e acredito que, mesmo que não possamos mudar o início de nossas histórias, sempre podemos trabalhar para transformar o final. Essa visão me motiva a seguir em frente, buscando impacto positivo e mudanças significativas na vida das pessoas e na sociedade.
Entrevistado: Bianca Ferraz dos Santos
Entrevista concedida em: 20 de novembro de 2024 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Marcos Leandro Freitas Hübner
Fotografia: Bianca Ferraz dos Santos
Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta