A Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) no Brasil ou os lírios não nascem da lei, por Jhonatan Almada
A Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) no Brasil ou os lírios não nascem da lei
Jhonatan Almada
jhonatan.almada@unesp.br
“As leis não bastam, os lírios não nascem da lei”, escreveu Carlos Drummond de Andrade no poema Nosso Tempo. Penso que este é o mote adequado para situar a Política Nacional de Leitura e Escrita.
Tive a oportunidade de dirigir uma instituição pública de ensino e ali uma das principais medidas adotadas foi estimular a leitura e a escrita dos estudantes, o que implicou em disponibilizar bibliotecas escolares decentes, com bibliotecários, articular seu trabalho em rede e de forma interdisciplinar com clubes de leitura e escrita. O coroamento desse conjunto foi um edital de publicação, estimulamos que os estudantes apresentassem suas produções na forma de prosa ou poesia, a partir daí, publicamos os trabalhos como livros impressos e organizamos os lançamentos. Observem que é uma medida concreta no campo escolar que enxerga os estudantes e os apoia no desenvolvimento ou na descoberta de seus talentos. Um dos estudantes disse que foi uma enorme surpresa em sua família quando seu trabalho foi selecionado e publicado, até então viam com ceticismo o valor dos seus escritos ou a possibilidade de que fosse escritor.
Começo relatando essa experiência para situar que a política precisa estar atenta às diferentes escalas, por vezes se perde no primeiro nível das escalas, o nível federal que em um país como o Brasil detém a maior parcela de recursos, portanto, a maior capacidade de propor políticas. Contudo, quando passamos aos níveis estadual e municipal, ingressamos em uma miríade de especificidades e complexidades, desde a adesão à política nacional até sua implementação prática local. Nesse percurso, a escola pode ser esquecida ou ficar à margem como lugar passivo de recepção da política, como se não fosse capaz de participar do processo de construção e de reinterpretá-la. Ainda estamos devendo o pedido de Leonice Alves de Souza que em Carta aos Constituintes solicitou que “o governo cedesse os livros todos, como passa na televisão. O principal: livros”.
O Brasil estabeleceu pela Lei nº 12.244, de 24 de maio de 2010, que no prazo de 10 anos as bibliotecas escolares estariam universalizadas. Mostramos que isso não ocorreu (CIEPP, 2019) e que anos depois do fim da vigência desta lei, somente 34% das escolas públicas de ensino fundamental possuíam bibliotecas escolares e 32% das escolas públicas de ensino médio ainda aguardam ter uma (Almada, 2024). A Associação dos Membros dos Tribunais de Contas-Atricon encontrou dados similares em seu levantamento, agregando a informação de que somente 46% das escolas públicas possuíam bibliotecários. Temos, portanto, uma lei não cumprida, escolas sem bibliotecas, bibliotecas sem bibliotecários. Alguns dos que nos leem dizem que basta substituir tudo por tablets ou computadores, ignorando que as pesquisas evidenciam o papel insubstituível da leitura do livro impresso e da escrita à mão para o desenvolvimento cognitivo.
O fracasso da lei de universalização das bibliotecas escolares sinaliza para que tenhamos pés no chão quanto ao lançamento da Política Nacional de Leitura e Escrita. Não é a primeira iniciativa com o objetivo de estimular a leitura e escrita no Brasil, algo similar ocorreu no Governo Collor com o Programa Nacional de Incentivo à Leitura-PROLER em 1992; o Governo Lula lançou o Plano Nacional do Livro e Leitura em 2006; o Governo Dilma institucionalizou o Plano Nacional do Livro e da Leitura em 2011; o Governo Temer sancionou a Política Nacional de Leitura e Escrita como lei em 2018 e finalmente em 2024, o Governo Lula regulamentou a Política Nacional de Leitura e Escrita.
A PNLL propõe quatro eixos estratégicos: democratização do acesso, fomento à leitura e à formação de mediadores; valorização institucional da leitura e de seu valor simbólico, bem como, o fomento à cadeia criativa e à cadeia produtiva do livro. Entre as ações previstas estão o estímulo à premiação de obras literárias, o fomento à premiação dessas obras no ambiente escolar, a concessão de bolsas, a criação de programas de residência, intercâmbio e circulação, programas de tradução e o fomento da escrita literária em instituições de educação superior. São muitas iniciativas para um Ministério da Cultura que tem poucas pernas e um Ministério da Educação que tem muito por fazer. Há que se pensar se o atual arranjo institucional dará conta de cumprir com esses objetivos e realizar essas ações, sobretudo se pensarmos na articulação com Estados e Municípios.
A PNLL retoma e atualiza dispositivos do PROLER (1992), situando-o nos mecanismos de fomento do Sistema Nacional de Cultura e enfatizando o apoio às bibliotecas comunitárias. Além disso, cria o Prêmio Vivaleitura para estimular e reconhecer iniciativas que contribuam para o cumprimento da política. É possível que esta premiação por se tratar de incentivo financeiro tenha eficácia para dar materialidade à política, não basta ser simbólico. Aqui é nosso otimismo da vontade que se apresenta em um momento conjuntural atravessado pela desinformação, alienação digital e ataques ao conhecimento.
A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2019) mostra que temos 52% de leitores, o que significa aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos 1 livro nos últimos três meses. Isso equivale a dizer que o brasileiro lê em média 5 livros por ano. Ainda que se trate de pesquisa amostral, é a única do tipo disponível e com tal abrangência, foram 8.076 entrevistas em 208 municípios. Por outro lado, a pesquisa Panorama do Consumo de Livros (2023) aponta que somente 16% da população acima de 18 anos afirma ter comprado um livro nos últimos 12 meses.
Chamo a atenção de vocês para esses 32 anos de iniciativas que foram se arranjando no tempo, como no baião Paulo Afonso, cantado por Luiz Gonzaga. Apesar disso, pouco se lê e pouco se compra de livro. Percebam que governos com distintas orientações ideológicas intentaram algo em relação à leitura e escrita, sendo que houve avanço entre a regulamentação episódica até a institucionalização da política como lei. A despeito desse avanço formal, temos muito por trabalhar para mudar essa desafiadora realidade.
Referências:
ALMADA, Jhonatan. Relatório Geração Brasil 2023: condições de infraestrutura escolar para as crianças e adolescentes brasileiros. São Luís: CIEPP, 2024. Disponível em: https://www.ciepp.org/_files/ugd/25b93e_be1dc7e4efb54104a4c337a9d17a120f.pdf . Acesso em: 10 nov. 2024.
ATRICON – Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil. Bibliotecas nas Escolas Públicas do Brasil: dados do Censo Escolar 2022. Brasília: ATRICON, 2024. Disponível em: https://atricon.org.br/wp-content/uploads/2024/02/Bibliotecas_Escolas_Publicas.pdf . Acesso em: 10 nov. 2024.
BRASIL. Decreto nº 12.166, de 5 de setembro de 2024. Regulamenta a Política Nacional de Leitura e Escrita, instituída pela Lei nº 13.696, de 12 de julho de 2018, e altera o Decreto nº 519, de 13 de maio de 1992, e o Decreto nº 520, de 13 de maio de 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/decreto/D12166.htm . Acesso em: 10 nov. 2024.
BRASIL. SENADO FEDERAL. Base SAIC – Sugestões da população para a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Brasília: 1988. Disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/constituicao-dos-sonhos/ . Acesso em: 10 nov. 2024.
CBL – Câmara Brasileira do Livro; Nielsen BookData. Panorama do Consumo de livros: um estudo sobre o perfil e hábitos de compradores de livros no Brasil. 2023. Disponível em: https://cbl.org.br/wpcontent/uploads/2023/12/Pesquisa-Panorama-do-Consumo-de-Livros_parapublicacao_V1.pdf . Acesso em: 10 nov. 2024.
CIEPP – CENTRO DE INOVAÇÃO E CONHECIMENTO PARA A EXCELÊNCIA EM POLÍTICAS PÚBLICAS. Retrato das Bibliotecas Escolares no Brasil. São Luís: CIEPP, 2019. Disponível em: https://www.ciepp.org/_files/ugd/25b93e_94d86927dc4e4046923c49a8230b1cb4.pdf . Acesso em: 10 nov. 2024.
FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil. 5ª ed . São Paulo: Pró-Livro, 2019. Disponível em: https://www.prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/ . Acesso em: 10 nov. 2024.
PAULO Afonso. Intérprete: Luiz Gonzaga. Compositores: Luiz Gonzaga e Yolanda Simões de Souza Dantas. In: Baião. Intérprete: Luiz Gonzaga. [S. l.: s. n.], 1955.
Sobre o autor:
É Diretor do Centro de Inovação para a Excelência em Políticas Públicas – CIEPP, co-fundador da Rede de Planificadores Educativos da América Latina, membro da Rede de Especialistas em Política Educativa da UNESCO/IIPE, NORRAG e Campanha Nacional pelo Direito à Educação no Brasil. Foi Diretor de Ensino de Graduação da Universidade Federal do Maranhão-UFMA (2021-2023), Reitor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão-IEMA (2017-2020) e Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação (2016-2017).
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Maranhão. Especialista em Gestão de Políticas Públicas pela Fundação Getúlio Vargas e Licenciado em História pela Universidade Estadual do Maranhão.
Redação e Foto: Jhonatan Almada
Diagramação: Marcos Leandro Freitas Hübner