
Os discursos ainda permitidos, as condutas da censura e as implicações na atuação do bibliotecário – Entrevista com Marcycleis Cavalcanti

Os discursos ainda permitidos, as condutas da censura e as implicações na atuação do bibliotecário – Entrevista com Marcycleis Cavalcanti
Marcycleis Maria Cavalcanti
marcycleis@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2022, Marcycleis Maria Cavalcanti defendeu sua dissertação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal da Paraíba, sob orientação da Profa. Dra. Leilah Santiago Bufrem e Prof. Dr. Hélio Pajeú.
Marcycleis atualmente cursa o doutorado junto à Universidade Federal de Pernambuco. Entre seus hobbies estão assistir a filmes e séries e escrever “pequenices” literárias, que mostra para quase ninguém.
Sua dissertação, intitulada “Contido: os discursos ainda permitidos, as condutas de censura e as implicações na atuação profissional do bibliotecário”, analisou como a censura, embora extinta oficialmente, ainda impacta a atuação dos bibliotecários no Brasil. A partir de casos emblemáticos entre 2017 e 2019, como a exposição Queermuseu e a censura a livros infantojuvenis, discute-se como a repressão à informação atinge a prática profissional e ameaça direitos fundamentais. Com base em Foucault e outros teóricos, sua pesquisa reforça a importância do posicionamento ético dos profissionais da informação frente aos novos formatos de censura, recorrente da crescente polarização e conservadorismo.
Na entrevista, Marcycleis compartilha sua trajetória e experiência na pós-graduação.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação?
Marcycleis Cavalcanti (MC): Decidi fazer o mestrado porque senti necessidade de desenvolver melhor o tema no qual trabalhei ao final da minha graduação. Notei que era e ainda é um tema pouco trabalhado nas aulas e nos artigos acadêmicos da CI brasileira desde uma perspectiva mais atual. Quanto a escolha do tema costumo brincar com amigos e colegas que ele me escolheu e que veio a mim na “força do ódio” porque fiquei incomodada com a notícia da retirada arbitrária do catálogo da exposição Queermuseu, no ano de 2017, de dentro de uma biblioteca pública e com a sequência de eventos relacionados a esse acontecimento. O que me levou a pensar nos anos de dedicação empregados por bibliotecários durante a graduação, em cursos de extensão e especialização, pra gente ser constrangido dessa forma e ver nossas prerrogativas profissionais desrespeitadas.
Naquele momento fiquei surpresa em saber o quão expostos estávamos quando submetidos a esse tipo de situação, como a imposição de censura ostensiva, nesse caso imposta por agentes do Estado brasileiro. Como era escassa a produção sobre o tema e desenvolvida, em sua maior parte, sob um olhar voltado para o passado, para o período da Ditadura civil-militar brasileira, como se não ocorresse censura na atualidade. Nem mesmo o Código de ética bibliotecário mencionava nada sobre a censura o que, ainda bem, já foi alterado em sua última atualização. E a discussão acerca da censura vem sendo ampliada.
No mestrado achei pertinente estender olhar também para as tentativas de censura e sobre a censura efetivada promovidas também pela sociedade civil.
DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?
MC: Principalmente o público acadêmico (alunos e professores) e bibliotecários em atuação. Mas a pesquisa, embora direcionada aos bibliotecários, esclarece alguns aspectos da censura para qualquer profissional da informação e para qualquer pessoa que tenha interesse no assunto.
DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade?
MC: Ela demonstra que a censura está presente em todos os regimes políticos, lugares e épocas; que ela se adapta aos contextos político sociais e, por isso mesmo, ainda é identificável no Brasil de hoje e afeta diretamente nosso direito de ler, conhecer e pensar por conta própria, e que isso não é só um problema político é uma ameaça ao exercício da cidadania e à convivência com a diversidade.
Esclarece quanto às possíveis dúvidas acerca do que é e do que não é censura para profissionais que lidam com a informação, e como a censura interfere diretamente no trabalho de quem tem no cuidado com a informação sua atividade principal, como os bibliotecários, que não são profissionais que apenas organizam livros, mas têm também um importante papel na defesa da liberdade de expressão e do acesso à informação.
DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós Graduação? Por quê?
MC: Memória da Informação Científica e Tecnológica. Porque minha pesquisa se propôs a compreender aspectos acerca da censura enquanto fenômeno indissociável do controle da informação, – uma atribuição inerente à profissão bibliotecária – que impacta nas práticas sociais dos sujeitos para constituição da memória social desde uma perspectiva moral, política e ideológica.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua dissertação? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
MC: O livro O Efeito Lucifer de Philip Zimbardo (ZIMBARDO, P. O Efeito Lúcifer: como pessoas boas tornam-se más. 8. ed. Rio de janeiro: Record, 2020)
O livro de Robert Darnton: Censores em ação (DARNTON, R. Censores em ação: como os Estados influenciaram a literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2016)
O artigo muito esclarecedor de Maria Cristina Castilho Costa, intitulado: Isto não é censura.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
MC: Uma boa delimitação do tema com seus recortes contextuais – porque a censura é um fenômeno de amplo alcance cronológico, geográfico e social – com foco na discussão não só dos casos de censura destacados, mas, referente aos critérios de identificação, modos de efetivação, etapas de aplicação, entes envolvidos e implicações para profissionais da informação, destacadamente para bibliotecários. Então, a clareza sobre o objeto de estudo foi determinante.
DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?
MC: O período de incertezas durante a pandemia quando ingressei no mestrado. E a falta de um contato mais direto com colegas e orientadores. Uma discussão presencial em sala de aula pode ajudar muito com outros pontos de vista, com percepções sobre as quais podemos não estar atentos.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a dissertação?
MC: Não foi tão difícil porque os objetos de estudo escolhidos como representativos dos casos de censura foram amplamente discutidos na mídia digital e ter a posse deles me permitiu verificar em primeira mão os temas representados em cada obra e confrontá-los com os motivos alegados pelos censuradores para censurá-los e com as notícias nos jornais sobre a censura dessas obras artístico-literárias, e, partir disso, tecer a discussão. A parte mais pesada mesmo foi o ato de escrever dentro do tempo previsto, as muitas horas de leitura e, ainda, escolher sobre o que não falar também pesou um bocado.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da dissertação?
MC: Sou dessas que querem solucionar tudo em um mesmo trabalho e sempre acho que dá pra ampliar e aprofundar mais e mais a discussão. Então, o mais difícil pra mim foi lidar com minha auto exigência de desenvolver um trabalho que contemplasse tudo sobre o tema, ainda que eu saiba que isso não é possível. Um escopo bem delimitado ajudou a resolver esse problema e, nesse sentido, a ajuda dos meus orientadores foi essencial.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?
MC: Mesmo com as incertezas durante o período da pandemia eu tive todo o apoio e suporte necessários para me manter focada durante o desenvolvimento da pesquisa.
DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
MC: Focar na delimitação do escopo de pesquisa, na organização do tempo destinado para leitura e escrita e na definição da metodologia.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
MC: Diria que foi uma produção modesta, contudo, focada no meu tema de pesquisa. Sim, já publiquei algumas coisas muito mais pensando na temática que, de qualquer modo, são frutos do entendimento que desenvolvi ao longo da pesquisa sobre a censura desde a graduação até a finalização do mestrado. Gosto bastante do artigo publicado na revista RDBCI sobre a Biblioteca sem censura contida no jogo Minecraft porque analisa essa estratégia criativa de burlar a censura em países predadores da liberdade de imprensa.
- Censura e ideologia: o caso do catálogo Queermuseu: cartografias da diferença na arte brasileira.
- Produção científica brasileira em ciência da informação acerca do tema censura: uma aproximação temática.
- Projeto The Uncensored Library: uma estratégia para burlar a censura em países predadores da liberdade de imprensa.
DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?
MC: Estou atualmente dando continuidade à pesquisa no Doutorado.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
MC: Não faria nada diferente. Todas as leituras, relações com colegas, com orientadores e demais professores foram muito importantes para que eu pudesse desenvolver minha pesquisa e ficar satisfeita com ela. É claro que não é possível discutir tudo em uma dissertação e o que não coube nela ficou para o doutorado.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de mestrado?
MC: Foram muito importantes as soluções propostas pelo PPGCI-UFPE no período pandêmico. As dinâmicas propostas pelos professores e pela coordenação foram essenciais para que tivéssemos algo muito próximo do convívio presencial.
DC: Você por você:
MC: Sou um estranhamento que já começa pelo meu nome: Marcycleis, mas quem convive comigo logo percebe que isso é só o começo da singularidade. Sigo movida por perguntas, inquietações e pelo desejo constante de entender como a informação atravessa a vida das pessoas, influencia decisões e constrói (ou desconstrói) realidades.
Minha formação é em Biblioteconomia, mas minha motivação vai além dos muros acadêmicos. Gosto de explorar as entrelinhas, os silêncios, aquilo que não está dito nos documentos — talvez por isso me interesso tanto por temas como censura e acesso à informação. Estudar como o conhecimento circula (ou é impedido de circular) no Brasil tem sido um caminho instigante, cheio de descobertas e, por vezes, de indignações.
No meu cotidiano cultivo o hábito da escuta e da observação. Aprecio uma boa conversa, daquelas que começam num café e findam com uma nova ideia ou com um abraço que deixa o coração mais leve. Acredito que empatia e curiosidade são guias poderosos — tanto na vida quanto na ciência.
Entrevistada: Marcycleis Maria Cavalcanti
Entrevista concedida em: 14 de Maio de 2025
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Iasmim Farias Silva
Fotografia: Marcycleis Maria Cavalcanti
Diagramação: Iasmim Farias Silva









