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v. 3, n. 4, abr. 2025
Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais – Entrevista com Lorena Cruz Esteves

Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais – Entrevista com Lorena Cruz Esteves

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Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais – Entrevista com Lorena Cruz Esteves

Lorena Cruz Esteves

estevesjornalismo@gmail.com

Sobre a entrevistada

Em 2022, Lorena Cruz Esteves defendeu sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará, sob a orientação da Profa. Dra. Danila Cal.

Paraense, Lorena é casada e mãe. É jornalista e atua na Secretaria de Comunicação do Estado do Pará. Em seu tempo livre, aprecia a gastronomia paraense, assistir a bons filmes e séries, dançar um brega e passear ao ar livre — especialmente na Praça da República ou no Parque do Utinga.

Sua tese, intitulada “Ativismo de mulheres indígenas em ambientes digitais: diálogos sobre (de)colonialidades e resistências comunicativas”, analisa os sentidos produzidos por mulheres indígenas em seus processos de resistência às opressões interseccionais que atravessam seus corpos-territórios. A pesquisa tem como foco o Acampamento Terra Livre 2020, realizado em formato digital, e mostra como essas mulheres utilizam as linguagens da comunicação digital como instrumento de resistência, dentro de um movimento decolonial. Seu trabalho recebeu o 1º lugar nos Prêmios Intercom e Capes de Teses em Comunicação, além de Menção Honrosa no Prêmio Compolítica (2022-2023).

Nesta entrevista, Lorena compartilha sua trajetória acadêmica e os aprendizados construídos em diálogo com as mulheres indígenas que protagonizam sua pesquisa.

Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?

Lorena Cruz (LE): Assim como Paulo Freire, eu acredito na educação como prática libertadora. Estar em sala de aula ou fazendo pesquisa, compartilhando conhecimento e experiências e, com isso, contribuindo para a transformação social, é o que me moveu a fazer o Doutorado. Com muito orgulho, sou a primeira pesquisadora doutora em Comunicação, formada por um Programa de Pós-Graduação de uma Universidade Pública da Amazônia brasileira (PPGCOM/UFPA), localizado no estado do Pará. Não fui eu quem escolheu o tema, foi o tema que me atravessou de tal maneira que não pude deixar de tratar sobre isso. Eu já participava de movimentos sociais feministas, estive em várias marchas e pude ouvir diferentes mulheres e suas demandas de luta, entre elas, mulheres indígenas. Eu quis compreender mais sobre o fenômeno do ativismo de mulheres indígenas, compreendendo que a resistência delas é ancestral e histórica, mas, como o ambiente digital, tornou-se uma dimensão central desses processos de resistência, especialmente em meio a crises humanitária, política e sanitária, afinal estávamos no meio de uma crise histórica, agravada pela Pandemia de Covid-19 e pela ascensão de um governo de ultradireita, contrário aos direitos de povos subalternizados.

DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?

LE: Essa é uma pergunta difícil, talvez quando eu compreendi, em diálogo com a orientadora, as Interlocutoras e as autoras de referência mobilizadas (todas sujeitas da pesquisa), que deveria adotar a metodologia de “desengajamento epistemológico” (Ochy Curiel) e a proposta de “inversão do olhar” (Edna Castro), que propõem não importar categorias prontas para análise e deixar o corpus “falar”, a partir da escuta ativa e do diálogo de saberes, o que me permitiu um leque de possibilidades, caminhos e achados que emergiram das interações com as sujeitas da pesquisa.

DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?

LE: Algumas autoras foram basilares para o desenvolvimento da tese, entre elas, a pesquisadora Vera França com a perspectiva de Comunicação praxiológica ou interacional; a pesquisadora amazônida Edna Castro, com a proposta de “inversão do olhar”; a autora Eliane Potiguara que compartilha o histórico de lutas e resistências de mulheres indígenas; as referências em epistemologias negras, Grada Kilomba, Lelia Gonzalez e Zélia Amador de Deus; Maria Lugones e a perspectiva de Feminismo Decolonial e as autoras que embasaram a metodologia com a proposta de “desengajamento epistemológico”, Ochy Curiel, e a perspectiva interseccional, Patrícia Hill Collins e Sirma Bilge.

DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?

LE: Posso citar três aspectos que considero relevantes: a) A proposta teórica que parte de epistemologias não hegemônicas, sobretudo da perspectiva de mulheres situadas geográfica e/ou intelectualmente no Sul Global, atravessadas por opressões interseccionais de gênero, raça, classe, territorialidade, entre outras; b) a metodologia que apresenta um caminho original, baseado nas opressões e resistências, a partir das dimensões Território-Corpo-Espírito, vocalizadas pelas Interlocutoras indígenas; e c) os achados que trazem inúmeros sentidos sobre o ativismo de mulheres indígenas, especialmente considerando a comunicação e as plataformas digitais de interação, como centrais aos processos de resistência.

DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?

LE: A tese demonstra como as mulheres indígenas vêm ocupando cada vez mais um papel central nas lutas do Movimento Indígena Brasileiro, sendo reconhecidas em seu protagonismo, apropriando-se da linguagem e das ferramentas digitais para amplificar suas vozes, criando estratégias de resistência em diversos âmbitos sociais e desconstruindo imaginários sociais preconceituosos, em uma postura inerentemente interseccional, na defesa do Território-Corpo-Espírito. Por meio dos sentidos gerados em diálogo com as sujeitas da pesquisa, acredito que em vários aspectos a tese contribui para (re)pensarmos formas ocidentais hegemônicas de pensamento, geralmente baseadas em um ideário moderno eurocentrado, masculino e branco. Por exemplo, a relação de exploração que temos com a terra e a ideia de desenvolvimento; a objetificação dos corpos de mulheres subalternizadas; o racismo estrutural e institucional; a reprodução de padrões de pensamento dicotômicos cristalizados, como a relação sujeito / objeto, humanidade / natureza, conhecimento científico / conhecimento comum.

DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?

LE: A tese demonstra outros modos de compreender os fenômenos sociais, as desigualdades estruturais, a busca por justiça social e a produção de saberes, dialogando com as perspectivas indígenas, negras e decoloniais, propondo uma abordagem interseccional que considera os atravessamentos de opressões pelos quais passam mulheres que compartilham de um histórico de colonialidades persistentes (racismo, patriarcado, colonialismo e capitalismo). Além disso, a tese aborda as opressões que atravessam as vivências de mulheres indígenas e as formas de resistência expressas por elas, em defesa do que denominam como a relação sagrada entre Território-Corpo-Espírito. Ao final, a tese traz os sentidos vocalizados por elas sobre o contexto de midiatização da sociedade e como a comunicação, em especial a digital, compõe estruturalmente os processos de resistência.

DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?

LE: A metodologia propõe um “desengajamento epistemológico” e o reconhecimento de “outros” saberes subalternizados. O corpus é composto por cinco lives do Acampamento Terra Livre 2020 – considerada a maior mobilização indígena brasileira que, em 2020, em função do isolamento social, ocorreu de forma inteiramente digital -, além de rodadas de diálogo realizadas com quatro mulheres indígenas que participaram do ATL 2020. As bases do horizonte teórico-metodológico utilizado ao longo do trabalho e que nos orientaram a proposta de inverter o olhar foram: a Epistemologia Feminista Decolonial – que se constrói a partir das Teorias Feministas do Sul Global (negras, chicanas, indígenas, latino-americanas), a Interseccionalidade e a Teoria Decolonial, todas epistemologias não hegemônicas – e a Comunicação, em sua vertente praxiológica, nosso ponto de partida, que, por sua vez, nos fez compreender o fenômeno da interação social como mais do que receber/dar informação, é reflexivo e pressupõe a relação com o outro (outra), olhar e reconhecê-las em suas individualidades, ouvir e deixar-se afetar, num movimento dialógico.

DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese? 

LE: A tese exigiu muita pesquisa e leitura. São 90% de transpiração para alcançar os 10% de inspiração necessários. Não adianta querer encontrar respostas sem ler, pesquisar muito e realizar o campo. É preciso dedicação, organização e acreditar no que a sua intuição está dizendo. Muitas vezes parecem ideias soltas, sem sentido, mas, com o tempo, colocando tudo no “papel”, sem apagar nada, as relações entre elas começam a aparecer, por isso, é importante estar atenta, ter escuta ativa e registrar todas as ideias que forem surgindo no processo.

DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?

LE: Aprendi ao longo dessa jornada a importância de estabelecer um equilíbrio entre trabalho, estudo, família e saúde física e mental. Fiz o doutorado todo em meio a uma pandemia que exigiu isolamento social total, com filho pequeno e uma crise política instalada no país. Foram muitas incertezas, preocupações com a minha saúde e da minha família, perda de amigos e conhecidos. Um misto de emoções, cansaço e vontade de desistir. Ao final do doutorado tive um burnout e, após a defesa, precisei me recuperar.

DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?

LE: Foi um período muito difícil de abdicação. Mas, a minha família sempre me apoiou, minha mãe, meu pai, irmãos, marido e filho. É um privilégio poder contar com rede de apoio nesse processo.

DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?

LE: A aplicação da metodologia em meio a Pandemia e isolamento social, que fizeram com que o campo fosse todo realizado em formato online, aliada às dificuldades técnicas e a necessidade de aprofundar as leituras de referenciais não hegemônicos.

DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?

LE: Continuar aprendendo, produzindo e compartilhando conhecimento, esteja onde estiver, na busca por justiça social/racial para grupos historicamente subalternizados, especialmente mulheres racializadas, negras, indígenas, atravessadas por opressões interseccionais.

DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora? 

LE: Como afirmei anteriormente, eu buscaria um maior equilíbrio entre trabalho, estudo, família e saúde física e mental. Me dedicaria à pesquisa, sem deixar de lado a minha saúde, cuidado com alimentação, prática de atividade física, lazer e tempo de qualidade com família e amigos. 

DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?

LE: Participei intensamente de eventos e de projetos de pesquisa que contribuíram muito para as discussões desenvolvidas na tese. Gostaria de citar o Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (Compoa/UFPA) e os projetos de pesquisa Ecoaras – Comunicação, Democracia e Modos de (R)Existência de Mulheres na Amazônia (PPGCOM/UFPA); Nós Mulheres – Pela Equidade de Gênero Étnico-racial (PPGSA/UFPA); e Conflitos Socioambientais, Comunicação e Resistências (PPGCOM/UFPA). Entre os artigos produzidos, fruto da tese, destaco:

DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?

LE: Que fizessem a leitura atenta da tese para compreender a crítica ao pensamento moderno hegemônico que é abordado a todo momento nas interações entre as sujeitas da pesquisa.

DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?

LE: Acima de tudo, uma relação de respeito e confiança. O orientador deve respeitar o orientando como um pesquisador em formação, que precisa ser escutado e ter seu processo acompanhado com empatia, afinal, o orientador já esteve neste lugar. Da mesma forma, o orientando precisa ter a escuta ativa e absorver as experiências adquiridas pelo orientador. A escuta e o retorno são fundamentais, de ambos os lados, para uma troca saudável.

DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?

LE: A tese conquistou três premiações nacionais: o 1º lugar no Prêmio Intercom de Teses, da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, e também o 1º lugar no Prêmio Capes de Teses na área da Comunicação (2022-2023), da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Além destes, a tese recebeu Menção Honrosa no Prêmio Compolítica de Teses (2022-2023), da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação e Política, que premia os destaques na pesquisa acadêmica em Comunicação e Política a cada dois anos. A ideia é compartilhar os achados da tese em dois livros. Um que aborda as bases do horizonte teórico-metodológico que nos orientaram a inverter o olhar sobre o modo de fazer pesquisa e produzir conhecimento na área da Comunicação, especialmente ao tratar com grupos socialmente vulnerabilizados. E o outro livro propriamente apresentando os diálogos com as mulheres indígenas, Interlocutoras, que vocalizaram as opressões e resistências em defesa do Território-Corpo-Espírito e como a comunicação, em um contexto digital e de hiperconexão, pode contribuir para a descolonização, como dimensão das resistências dos movimentos sociais progressistas contemporâneos.

DC: O que o Programa de Pós-Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?

LE: Toda a minha formação como pesquisadora e professora devo ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM/UFPA) e a Faculdade de Comunicação (FACOM/UFPA). A visão crítica sobre o imaginário criado em relação a nossa região, sobre os colonialismos internos que nos atravessam, a necessidade de ressignificar as nossas lutas e as formas colonialistas como somos vistos e tratados, de amplificar as nossas vozes e visibilizar nossos corpos, culturas e formas diversas de resistências. Ao mesmo tempo, o poder da solidariedade, da união de pessoas em prol de demandas comuns de luta e da força do coletivo. Aprendi nesses espaços a me posicionar politicamente, a importância do afeto como liga que nos mantém resistindo e a necessidade de compartilharmos os saberes e conhecimentos adquiridos.

DC: Você por você: 

LE: Filha de Laercio e Susy, de ancestralidade indígena por parte de pai e negra por parte de mãe, mulher parda, amazônida, nortista, paraense, mãe do Kauan. Jornalista, a primeira pesquisadora doutora em Comunicação, formada por um Programa de Pós-Graduação de uma Universidade Pública da Amazônia brasileira (PPGCOM/UFPA), localizado no estado do Pará. Em constante aprendizado, acreditando na força da ancestralidade, do coletivo e do afeto.


Entrevistada: Lorena Cruz Esteves

Entrevista concedida em: 18 de fevereiro de 2025 aos Editores.

Formato de entrevista: Escrita 

Redação da Apresentação: Marcos Leandro Freitas Hübner

Fotografia: Lorena Cruz Esteves

Diagramação: Naiara Raíssa da Silva Passos

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