
As contribuições da Nova Biblioteconomia de David Lankes no contexto brasileiro – Entrevista com Emanuelle Amaral Ferreira

As contribuições da Nova Biblioteconomia de David Lankes no contexto brasileiro – Entrevista com Emanuelle Amaral Ferreira
Emanuelle Geórgia Amaral Ferreira
emanuelle.gaf@gmail.com
Sobre a entrevistada
A recém-doutora Emanuelle Geórgia Amaral Ferreira defendeu, em 2024, sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, sob a orientação do Prof. Dr. Carlos Alberto Avila Araujo e coorientação da Dra. Gabrielle Francinne de Souza Carvalho Tanus.
Natural de Belo Horizonte, Minas Gerais, Emanuelle tem como hobbies meditar, ler, assistir a filmes e visitar museus. No âmbito profissional, atua como professora e coordenadora do curso de Biblioteconomia da Faculdade Ipemig e bibliotecária escolar na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
Sua tese, intitulada “A Nova Biblioteconomia de Lankes no contexto brasileiro”, explorou como a nova biblioteconomia se aplica à prática da biblioteconomia brasileira, revelando características únicas, como o acolhimento, o senso de pertencimento e a valorização do território, que vão além da perspectiva proposta por Lankes.
Emanuelle nos conta, nesta entrevista, sobre sua trajetória acadêmica, sua experiência no doutorado e seus projetos futuros.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Emanuelle Ferreira (EF): A realização do doutorado foi uma consequência natural da minha dissertação de mestrado. Durante o mestrado, trabalhei com a concepção de Biblioteconomia contemporânea e, nesse processo, tive contato com a perspectiva de David Lankes sobre a Nova Biblioteconomia. Naquele momento, a perspectiva de Lankes pareceu-me uma resposta para as minhas convicções. Meu orientador, percebendo meu interesse pela perspectiva, sugeriu que eu a incluísse nas análises da minha dissertação. Foi então que se iniciou minha jornada na construção do meu entendimento da Nova Biblioteconomia como uma perspectiva contemporânea. Por se tratar de uma visão construída no contexto norte-americano, senti a necessidade de compreendê-la sob a ótica brasileira. Lankes afirma que a Nova Biblioteconomia pode ser adotada globalmente, mas acredito que o Brasil, com suas singularidades, exige que suas particularidades sejam consideradas. Não podemos simplesmente importar uma teoria sem a devida contextualização. A missão do bibliotecário proposta na Nova Biblioteconomia serve como um norte para as ações do profissional, mas o como fazer a Nova Biblioteconomia requer senso crítico e discernimento em relação às realidades sociais brasileiras. Com base nesse princípio, fui inspirada a elaborar o projeto que hoje se configura como minha tese de doutorado.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
EF: A qualificação representou um marco decisivo na minha trajetória no doutorado. A banca examinadora, com sua generosidade e precisão nas observações, permitiu-me reconhecer o potencial do meu trabalho. À medida que me aprofundava na redação das análises, a tese ia se delineando com maior clareza. Uma parte inicial dessas análises foi apresentada no XXIX Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação (CBBD), realizado em formato online devido à pandemia. O trabalho, intitulado “‘Não deixar ninguém para trás’: análise temática das edições de 2013 a 2019 do CBBD“, foi reconhecido como um dos melhores trabalhos do evento. Esse reconhecimento solidificou a convicção de que eu estava no caminho certo na construção de uma tese consistente e relevante.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
EF: O principal autor que fundamenta a perspectiva adotada na minha tese é R. David Lankes, com suas obras sobre a Nova Biblioteconomia, dentre as quais se destacam “The Atlas of New Librarianship” (2011), “Expect More: melhores bibliotecas para um mundo complexo” (2012, 2016) e “The New Librarianship Field Guide” (2016). Tive a oportunidade de conhecer Lankes durante sua participação como conferencista no CBBD de 2015, em São Paulo. Na ocasião, ele apresentou sua perspectiva a partir da obra “Expect More: demanding better libraries for today ‘s complex world” (2012). Houve, então, um acordo para a tradução da obra pela Febab, inicialmente divulgada no blog do autor para fomentar o diálogo e, posteriormente, publicada como livro. As ideias de Lankes despertaram grande interesse em mim. Acompanhei com ansiedade a divulgação dos capítulos da tradução no blog e, a partir dessa experiência, busquei aprofundar meus conhecimentos sobre a Nova Biblioteconomia, explorando outras obras do autor e pesquisando artigos sobre a origem e o desenvolvimento dessa perspectiva. Richard David Lankes é professor de Biblioteconomia na Universidade do Texas em Austin. Ele se destaca por combinar teoria e prática na criação de projetos de pesquisa que buscam fazer a diferença na sociedade. Além disso, Lankes se dedica a compreender como as abordagens e tecnologias da informação podem ser utilizadas para transformar diversos setores. O livro que foi a base da minha tese, “The Atlas of New Librarianship“, foi agraciado com o prêmio ABC-CLIO/Greenwood 2012 de Melhor Livro de Literatura Bibliotecária.
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
EF: Minha tese é inédita, sobretudo, por ser a primeira pesquisa de doutorado brasileira a abordar a Nova Biblioteconomia de Lankes contextualizando com a realidade do Brasil. Na tese, apresento como contribuição inédita conceitos que caracterizam a Nova Biblioteconomia brasileira: o acolhimento, o território e o senso de pertencimento.
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
EF: Ao abordar a Nova Biblioteconomia contextualizada a nossa realidade, minha tese contribui para propiciar a reflexão e a transformação da maneira como a comunidade vê e utiliza as bibliotecas. Ao mostrar o potencial desses espaços como centros comunitários de aprendizado e conexão, a pesquisa pode contribuir para a construção de uma sociedade mais justa, informada e desenvolvida.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
EF: Ao identificar os conceitos de acolhimento, território e pertencimento, minha tese contribui para fortalecer a concepção de Nova Biblioteconomia brasileira, que busca uma atuação mais engajada e transformadora do bibliotecário. A pesquisa mostra como a atuação do bibliotecário engajado é fundamental para construir comunidades mais justas e democráticas, onde todos tenham acesso à informação e a possibilidade de construir conhecimento.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
EF: Desde o início do meu doutorado, a construção da metodologia da pesquisa se tornou uma prioridade. Para defini-la, realizei um trabalho de articulação entre o problema de pesquisa, os objetivos e os procedimentos metodológicos. Detalhei cada etapa do processo, desde a construção do referencial teórico até os critérios para a seleção dos relatos de experiência e a definição da amostra para as entrevistas. A definição clara dos objetivos específicos da pesquisa foi fundamental para nortear a escolha da metodologia mais adequada. Embora minha banca tenha notado que a abordagem adotada se distancia do convencional, reconheceu que ela é passível de reaplicação em outros estudos.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?
EF: Como pesquisadora que adota métodos qualitativos em suas pesquisas, não há como mensurar os percentuais de inspiração e transpiração. Foi necessário muito fôlego para ler e analisar todos os relatos de experiência das edições de 2013 a 2019 dos Anais do CBBD e realizar as entrevistas. Por outro lado, foi necessário muita inspiração para não me esquecer do porque eu estava fazendo uma tese sobre a Nova Biblioteconomia brasileira.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
EF: O contexto da pandemia impôs desafios significativos, especialmente no que diz respeito à manutenção da saúde emocional. Agradeço a oportunidade desta entrevista, que além de sua relevância para a divulgação científica, nos permite lembrar que por trás de cada pesquisa existe um ser humano. Houve momentos em que me senti incapaz de escrever a tese. A pressão por realizar um trabalho de qualidade, relevante e com impacto social era grande. Esses valores, embora importantes, contribuíram para que eu me visse como menos capaz do que realmente sou, o que me impedia de escrever e me levava a procrastinar. Tive muito medo de não entregar a tese. É estranho como o nosso emocional nos faz perder um pouco da racionalidade… Por mais que eu vivenciasse experiências que me mostravam que eu daria conta e que a pesquisa iria sim gerar uma tese, eu me sentia travada para a escrita. O que me animava era reler Lankes, o que me ajudou a reconectar com o que me fez querer fazer doutorado. O doutorado é um projeto de longo prazo que exige planejamento. No entanto, foi o período em que me senti com menos controle, tanto por fatores internos quanto externos, como o contexto mundial da pandemia e questões pessoais e sociais. No dia da defesa, meu orientador fez um comentário que resume bem essa jornada: “A Manu mudou durante a pesquisa”. E essa mudança se reflete em meu trabalho. A Emanuelle que iniciou o doutorado não é a mesma que o finalizou. Afinal, a gente nunca é o mesmo… a vida nos transforma a cada dia. Mas precisei renascer em meio às minhas inseguranças para finalmente concluir a tese.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
EF: A família foi a minha força. Nunca deixaram de acreditar no meu potencial e que eu venceria essa etapa.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
EF: A pandemia de COVID-19 impactou a metodologia da pesquisa, originalmente planejada para entrevistas presenciais durante o CBBD. A transição para o formato online, embora tenha ampliado o alcance, trouxe desafios como a instabilidade da internet e o risco de perda de dados, culminando na perda de uma entrevista devido a uma falha na gravação.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
EF: Considerando que a Nova Biblioteconomia é um campo com grande potencial de pesquisa, podemos explorar diferentes perspectivas e contextos para aprofundar o conhecimento sobre o tema, como por exemplo: a Nova Biblioteconomia brasileira em diferentes tipologias de bibliotecas e suas práticas e comunidades; e o papel do bibliotecário na Nova Biblioteconomia brasileira. Há ainda a possibilidade pesquisar a Nova Biblioteconomia no contexto sulamericano; a investigação de práticas de bibliotecários que aderem a perspectiva da Nova Biblioteconomia nas produções acadêmicas tanto do Brasil quanto da América Latina.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
EF: Sempre aspirei à docência para futuros bibliotecários, direcionando minha formação nesse sentido. No entanto, reconheço a importância da experiência prática na área para um ensino autêntico e relevante. Por isso, busco agora vivenciar os conhecimentos teóricos do doutorado na prática da Biblioteconomia. Neste momento, estou conciliando a atuação como bibliotecária escolar na rede municipal com a docência e coordenação de curso, e percebi que a paixão pela Biblioteconomia me motiva de forma singular. Ajudar as pessoas a encontrarem a informação que precisam e a construir conhecimento e ver o impacto positivo do meu trabalho em suas vidas me impulsiona de maneira especial. Sigo, então, me dedicando à Biblioteconomia, aprendendo e crescendo a cada dia, sem descartar a possibilidade de, no futuro, unir minhas duas paixões atuando em cargo público para me dedicar unicamente à formação de novos bibliotecários.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
EF: Se eu iniciasse o doutorado hoje, com a experiência que tenho agora, daria mais atenção ao meu bem-estar emocional. Percebi o quanto as inseguranças e as dúvidas podem afetar o planejamento e o desenvolvimento da tese. Se eu pudesse voltar no tempo, me diria para ter mais paciência comigo mesma, celebrar cada conquista e não ter medo de pedir ajuda. O doutorado é um desafio, mas também uma oportunidade de crescimento. Acolher as emoções e aprender com os erros faz parte da jornada.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
EF: Publiquei alguns artigos, mas ainda há o que publicar. Me dediquei à divulgação científica da tese entre os bibliotecários, que considero agentes de transformação com o potencial de construir uma Nova Biblioteconomia brasileira. Ministrei algumas palestras para estudantes de Biblioteconomia e para bibliotecários, que foram grandes oportunidades de disseminar a minha pesquisa e estabelecer o diálogo. Acredito que a troca de conhecimentos e experiências entre pesquisadores e bibliotecários seja fundamental para o avanço da área e para a construção de uma Biblioteconomia relevante para a sociedade.
DC: Exerceu alguma monitoria / estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
EF: Fiz estágio docente por um ano e tive a oportunidade de criar a disciplina “Introdução à Nova Biblioteconomia”, ofertada como optativa aos alunos de graduação da ECI/UFMG. Construir uma disciplina do zero é uma experiência única e enriquecedora, e sou grata ao meu orientador pela confiança depositada em mim. Me orgulho muito dessa jornada. Fui bolsista do Instituto de Estudos Transdisciplinares (IEAT/UFMG), ministrei a disciplina obrigatória “Gestão de Unidades de Informação” por três semestres, durante o período da pandemia. As aulas remotas proporcionaram uma experiência diferenciada, com foco em aulas síncronas e na criação de um ambiente virtual de aprendizagem no Moodle que fosse intuitivo e estimulante para os alunos. Agradeço ao professor Cláudio Paixão pela confiança, acolhimento e por aprovar a proposta que desenvolvi para a disciplina.
DC: Elas contribuíram em sua tese? De que forma?
EF: A disciplina “Introdução à Nova Biblioteconomia” contribuiu significativamente para a construção do referencial teórico da minha tese, além de me proporcionar a oportunidade de vivenciar a teoria da conversa como instrumento prático de construção de conhecimento. Embora a disciplina “Gestão de Unidades de Informação” não estivesse diretamente relacionada à minha pesquisa, incorporei uma aula sobre gestão de comunidades, utilizando elementos da gestão de unidades de informação e a concepção de comunidades e construção do conhecimento proposta por Lankes. Dessa forma, ambas as experiências enriqueceram meu referencial teórico e ampliaram minha visão sobre a Biblioteconomia que praticamos.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
EF: Recomendo que pesquisadores que tomem minha tese como ponto de partida explorem a perspectiva da Nova Biblioteconomia brasileira que apresento. Isso lhes dará a segurança necessária para construir seu próprio conhecimento, inovar e contribuir para a área.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
EF: Acredito que a relação entre orientador e orientando deve ser uma parceria baseada na comunicação, no respeito, na confiança e no compromisso. Ambos devem trabalhar juntos, de forma colaborativa, para alcançar o sucesso da pesquisa e a formação do orientando.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
EF: Ainda não. Pretendo continuar com as pesquisas em torno da Nova Biblioteconomia brasileira no contexto das bibliotecas escolares, que é onde estou atuando no momento.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
EF: Numa via de mão dupla, o PPGCI/UFMG me possibilitou todos os recursos necessários para que eu me tornasse doutora em Ciência da Informação. Destaco a minha participação no Consórcio Doutoral do EDICIC 2019, ocorrido em Barcelona. Foi uma rica oportunidade de apresentar a minha pesquisa e ouvir diferentes pontos de vista. Ao participar deste evento, o PPGCI contribuiu muito com a minha formação e eu pude contribuir com a internacionalização do programa.
DC: Você por você:
EF: Uma bibliotecária apaixonada que acredita no poder da construção do conhecimento, do engajamento social e da potencialidade das bibliotecas para transformar a realidade social.
Entrevistada: Emanuelle Geórgia Amaral Ferreira
Entrevista concedida em: 10 de fevereiro de 2025 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Larissa Alves
Fotografia: Emanuelle Geórgia Amaral Ferreira
Diagramação: Larissa Alves