
Entrevista com Naylane Matos sobre sua pesquisa que abordou os estudos feministas de tradução no Brasil

Entrevista com Naylane Matos sobre sua pesquisa que abordou os estudos feministas de tradução no Brasil
Naylane Araújo Matos
naylane.matos@unir.br
Sobre a entrevistada
A docente Naylane Araújo Matos defendeu, em 2022, sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Andréia Guerini.
Natural da Bahia, Naylane tem como hobbies a leitura e a realização de atividades ao ar livre, especialmente na natureza. No âmbito profissional, atua como docente na Universidade Federal de Rondônia.
Sua tese, vencedora do Prêmio Prêmio Capes de Tese 2023 na área de Linguística e Literatura, intitulada “Estudos Feministas da Tradução no Brasil: Percursos históricos, teóricos e metodológicos na produção científica nacional (1990-2020)”, investigou o desenvolvimento dos Estudos Feministas da Tradução no Brasil ao longo de três décadas. A pesquisa mapeou e analisou as especificidades históricas das lutas femininas no país, articulando-as às lutas internacionais, à institucionalização do feminismo e às políticas feministas de tradução voltadas para a construção de alianças transnacionais com vistas à transformação social.
Naylane nos conta, nesta entrevista, sobre sua trajetória acadêmica, sua experiência no doutorado e seus projetos futuros.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Naylane Matos (NM): A escolha de fazer um doutorado se mostrou parte da continuidade na minha formação acadêmica, com vista a me especializar para a carreira docente, iniciada com a Licenciatura em Letras – Língua Inglesa e Literaturas na Universidade do Estado da Bahia. O doutorado foi uma continuidade dos estudos já iniciados no mestrado, cuja dissertação também partiu de um viés feminista. Como militante feminista, atuando em diferentes espaços de luta e pautando as demandas de gênero atravessadas pelas questões de raça e classe, a pauta feminista foi central na elaboração da minha escrita e, no caso da tese, trabalhar com os Estudos Feministas da Tradução, analisando como este campo de estudo se desenvolveu e se desenvolve no Brasil, era fundamental para compreender como as lutas históricas das mulheres brasileiras impactavam e moldavam as questões de gênero em tradução, mas também para mapear tendências e filiações teóricas que se consolidaram na produção científica da área no Brasil.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
NM: Eu iniciei o projeto de doutorado com uma trajetória de pesquisa sobre os Estudos Feministas da Tradução bastante robusta e acúmulo de leituras sobre feminismos locais e transnacionais. Atuando como tradutora de teoria feminista da tradução, participando de espaços científicos para aprimoramento da pesquisa e na troca com outras pesquisadoras, além de uma escrita que permitia a revisão do texto, a reelaboração e todos os dados levantados é que meu texto foi ganhando forma de tese. Nunca temos certeza de que o trabalho que produzimos é de fato uma tese, até que ele seja avaliado e submetido a críticas – especialmente na etapa de qualificação do texto – e, então, tenhamos segurança para defender a nossa argumentação. Pude constatar que o trabalho em construção reunia os elementos necessários para atender aos objetivos propostos e que a metodologia era coerente à medida que expunha meu próprio texto a dúvidas, revisava minhas bases teóricas e seguia aprimorando minha reflexão com o que Paulo Freire chamou de “curiosidade epistemológica”. Ninguém pode escrever uma tese sem curiosidade!
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
NM: As elaborações da Prof.ª Dr.ª Olga Castro (atualmente da Universidade Autônoma de Barcelona) sobre os Estudos Feministas Transnacionais da Tradução sempre foram centrais para o meu trabalho. Seu texto, em coautoria com a Prof.ª Dr.ª Maria Laura Spoturno (da Universidade Nacional de La Plata), “Feminismos y traducción: apuntes conceptuales y metodológicos para una tradutología feminista transnacional” foi importante para a definição conceitual da área que eu elenco no trabalho. Também, as elaborações teórico feministas que enfatizam a luta de classes, como Silvia Federici, bell hooks e Maria Amélia Teles (torturada na ditadura militar no Brasil), do gênero no entrecruzamento com a colonialidade, como Maria Lugones e Françoise Vergès, bem como a perspectiva do feminismo socialista de Alexandra Kollontai sustentaram as minhas análises. E, sem sombra de dúvidas, a minha trajetória de militância no Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro foi fundamental para politizar as discussões feministas da minha área, no que diz respeito à produção do conhecimento mediada pela ideologia burguesa.
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
NM: O mapeamento que apresento na tese é inédito, ainda não havia um estudo que reunisse o que o Brasil produz e produziu no âmbito dos Estudos Feministas da Tradução. Mas, mais significativa, é a análise do mapeamento ancorada numa perspectiva de classe, relacionando as diferentes especificidades históricas das lutas das mulheres e da institucionalização do feminismo no Brasil, bem como a história colonial. Esses elementos permitiram demonstrar como a relação do contexto local com as teorias transnacionais operam na área de pesquisa.
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
NM: Não é uma tese útil, no sentido utilitarista empregado pelo capitalismo. É uma tese que pretende retirar o véu do patriarcado capitalista colonial cis hetero e que questiona as bases da produção do conhecimento no âmbito dos Estudos Feministas, com ênfase na tradução. Nesse sentido, a tese reúne dados importantes para outras pesquisas da área, além de questionar os feminismos hegemônicos. Ademais, uma tese feminista, com abordagens anticolonialista e classista, auxilia no acúmulo de produções científicas que questionam os papéis sociais de gênero e o racismo estrutural no modo de produção capitalista, fomenta o debate politizado e a construção da consciência feminista na sociedade para a transformação social.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
NM: As principais contribuições são precisamente essas que respondi acima. Mais especificamente para o campo dos Estudos Feministas da tradução, a tese demonstra como as línguas hegemônicas e elaborações teóricas norte-centradas refletem assimetrias entre Norte-Sul Globais; explica como os Estudos Feministas da Tradução no Brasil estão marcados por especificidades do contexto colonial; discute como a tradução feminista apresenta elementos para o reconhecimento da divisão global do trabalho e como as novas formas de organização dos feminismos, em sua articulação com a produção científica brasileira, refletem contradições frente à institucionalização do feminismo encampada por políticas neoliberais a serviço do capital.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
NM: Eu fiz buscas nos bancos de teses e dissertações dos Programas de Pós-Graduação em Estudos da Tradução no Brasil, nas revistas científicas e no Diretório de Grupo de Pesquisa do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) a partir de termos chaves que eu defini previamente, considerando meu objeto de investigação e minha área de pesquisa. Organizei os dados em diferentes planilhas e utilizei uma ferramenta de análise de corpus (o conjunto dos documentos a serem analisados) para encontrar os dados que foram analisados. O tratamento dos dados foi feito a partir do recorte teórico dos Estudos Feministas da Tradução, com ênfase na conjuntura brasileira. Para apresentar os dados encontrados, elaborei gráficos, tabelas, quadros e imagens.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?2
NM: A inspiração para a tese se dava em espaços de coletividade feminista e, principalmente, porque antes de transpirar na escrita de um texto, nossos corpos transpiram nas ruas, nos enfretamentos reais e nos diferentes espaços, frente às violências sistemáticas que sofremos cotidianamente, inclusive nos espaços institucionais.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
NM: O acesso a materiais dos Estudos Feministas da Tradução que, majoritariamente produzidos em língua inglesa e publicados por grandes editoras do Norte, têm alto custo, sendo dificilmente encontrados nas nossas bibliotecas. Nesse sentido, é importante estarmos críticas ao conhecimento produzido nos grandes centros hegemônicos.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
NM: Na época da escrita da tese, eu compartilhava casa com uma companheira que me apoiava e me incentivava muito. Tínhamos muitas trocas intelectuais que também auxiliaram meu processo de escrita, sem falar na rede de apoio de amigos e amigas em Florianópolis, já que estava longe da família. Os espaços coletivos com as camaradas militantes do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro também eram espaços de acolhimento e incentivo. Como força motriz, buscava encorajamento nas mulheres iletradas da minha família. Toda essa rede de mulheres cujo trabalho reprodutivo foi fundamental para que eu pudesse chegar à academia, me manter no doutorado e me tornar doutora.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
NM: A maior dificuldade foi elaborar uma tese feminista tendo que lutar simultaneamente contra o retrocesso social e político que se agigantou no Brasil desde o Golpe de Dilma Rousseff, primeira e única mulher eleita à presidência da república. Houve também a tensão da pandemia e a necessidade de me manter lúcida enquanto muitas mulheres sofriam violência dentro das próprias casas.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
NM: Não creio que pesquisas futuras devam ser sobre a tese, mas pensadas a partir da tese. Eu diria que uma pesquisa que analisasse o papel da tradução feministas frente às demandas das mulheres ribeirinhas, indígenas e amazônidas seria uma contribuição ímpar.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
NM: Bom, já faz um tempo considerável que eu defendi a tese. Antes da defesa, assumi o concurso da UNIR e, em função do prêmio CAPES de Tese 2023, me afastei para realização do pós-doutorado, o qual segui ampliando a pesquisa do doutorado com ênfase nos aspectos da colonialidade nos Estudos Feministas da Tradução. Em breve, retorno à sala de aula e estou cheia de projetos para o tripé ensino, pesquisa e extensão!
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
NM: Acho que criaria mais espaços para o descanso e o autocuidado. O doutorado não deveria ser um espaço adoecedor. Mas isso perpassa debater saúde e bem-estar na universidade.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
NM: Todas as pessoas que estão na academia, lamentavelmente, estão submetidas a uma lógica brutal de produtividade. Isso reitera determinadas formas quantitativas de conceber a produção do conhecimento. Temos que questionar essa lógica. Uma busca rápida no Lattes, pode ajudar o leitorado curioso a conhecer o que venho produzindo. Não gosto de eleger este ou aquele trabalho como os mais importantes. Quando temos uma produção científica socialmente referenciada, cada trabalho, com a limitação de cada tempo, cumpre sua função e aponta mais para as lacunas do que para a completude daquilo que produzimos.
DC: Exerceu alguma monitoria / estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
NM: Sim. Realizei dois estágios de docência na graduação, com as disciplinas “Teorias da Tradução” e “Ausências e invisibilidades na literatura brasileira”.
DC: Elas contribuíram em sua tese? De que forma?
NM: Sim, embora não tão diretamente. Os estágios são espaços pedagógicos que nos ensinam a ser docentes e todo o processo de escrita científica para quem é das licenciaturas acaba estando respaldado pelo que almejamos alcançar – ou nossos objetivos – na prática pedagógica.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
NM: Manter e sustentar o compromisso político de desmonte ao patriarcado capitalista de supremacia branca, além de conceber os feminismos não como objeto de estudo, mas como força política de transformação social.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
NM: Uma relação de confiança e respeito mútuo.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
NM: O meu projeto de pós-doutorado, já mencionado acima.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
NM: No Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da UFSC tive uma formação bastante especializada, com acesso a importantes espaços de formação e bolsa de mestrado (CAPES) e doutorado (CNPq). Desde quando era aluna do mestrado, pude contar com o apoio do programa na promoção de eventos para discutir feminismos em tradução. Fui uma aluna ativa e o programa foi sempre receptivo às proposições, a exemplo do Grupo de Estudos Feministas na Literatura e na Tradução (GEFLIT), cujo projeto foi elaborado por mim e outras colegas do mestrado e doutorado, e que agora é institucionalizado como um grupo de pesquisa da UFSC. Isso foi um ganho coletivo, especialmente porque professoras que não tinham um olhar feminista para a tradução começaram a se dedicar a esta temática e orientar novos trabalhos. Da mesma forma, o Prêmio CAPES de Tese 2023 concedido à minha tese foi um ganho não só para mim, individualmente, mas para a área, uma vez que foi a primeira tese em Estudos da Tradução premiada pela CAPES. Ademais, foi um ganho enorme para as pautas feministas na academia, além de legitimar institucionalmente os Estudos Feministas da Tradução.
DC: Você por você:
Vou deixar aqui um Testamento
Quando eu morrer
e a filha de minha filha encontrar estes cadernos
digam que ela busque uma editora para publicar
minha obra póstuma;
digam que trate de assegurar que meus escritos
não sejam editados pelos homens
para que eles não matem
a mulher que grita em meus textos
a menina que sonha através das minhas letrinhas
as bruxas e as loucas que festejam
por entre meus versos;
digam aos novos críticos que me leiam atentos
mas que não definhem meus textos
com sua close reading;
digam que fui uma mulher latina
nordestina sertaneja,
mostrem a eles que as mãos das minhas avós
carregavam os calos do arado;
escrevam que eu era uma educadora
sonhadora do poder para o povo
e que odiava os fascistas e paternalistas;
contem que fui amante dos desajustados
e que amava a solidão;
revelem também que eu tinha um profundo medo
da loucura
e que fui fascinada pelas mulheres loucas:
[Nide, Irá, Ade, Tati, Bertha Mason];
mostrem que fui uma cientista
aterrorizada pela loucura
e que escrevia poesia porque não conseguia
acalmar as vozes da minha cabeça;
digam que eu lia gente perturbada
pelas vozes de suas cabeças
e que amava o jeito como Julia Raiz lia seus escritos;
contem que eu lia poesia toda manhã
e que gostava de conversar com os pássaros
e anotar os versos que eles cantavam em novos poemas,
foi assim que começou a história da arara;
digam que eu lia Rosario Igoa e Isadora Krieger
e be rgb e Daiane Oliveira e Daniela Stoll
e que quando eu escutava essa gente falar de literatura
meu corpo tintilava mais forte que os sinos da igreja
que tocavam ao lado da casa onde eu cresci;
esclareçam que eu não gostava de estudar línguas coloniais
que fui trabalhar com o modo estrangeiro de dizer o mundo
para importuná-lo
e que almejava atear fogo nos imperialistas
como fez a louca do sótão em Thornfield Hall;
digam que enquanto as vozes da minha cabeça
não encontravam passagem
eu confabulava a minha morte e sentia vontade
de ir viver com minhas musas suicidas
na utópica Herland de Charlotte
[quisera fôssemos todas viver lá!];
reúnam meus livros, incluso os que nunca li
organizem meus cadernos
minhas fotos sendo feliz com minha tribo
deixem que saibam o nome e as caras das mulheres
que me sustentaram
apenas protejam os meus diários, eu vos peço!
coloquem tudo numa casa com jardim e gatos
[todas as cores de gatos]
espalhem almofadas
pendurem os lenços e as bandeiras nas paredes
coloquem comida e água para os pássaros;
convidem as meninas a entrarem
permitam que elas abram os livros
deem a elas canetas e gim para a imaginação;
conclamem artistas
abram rodas
duvidem de tudo
e a isso chamem:
Lúcida Biblioteca Comunitária
Entrevistado: Naylane Araújo Matos
Entrevista concedida em: 04 de fevereiro de 2025 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Pedro Ivo Silveira Andretta
Fotografia: Naylane Araújo Matos
Diagramação: Marcos Leandro Freitas Hübner