Por quê construir uma Biblioteconomia brasileira interseccional? Pontos preliminares para pensarmos num campo (encruzilhada) social, por Andreia Sousa da Silva
Por quê construir uma Biblioteconomia brasileira interseccional? Pontos preliminares para pensarmos num campo (encruzilhada) social
Andreia Sousa da Silva
andreia.ssilva@gmail.com
Como mulher negra, bibliotecária, mãe, ativista do movimento associativo e do movimento negro, feminista, pesquisadora e docente, há 20 anos (ou até mais, contando minha atuação durante a graduação) os meus olhares sobre a Biblioteconomia e principalmente, sob a Biblioteconomia brasileira, alimentaram e alimentam inquietudes que insistem em se manter em mim, o que me leva a sempre estar desejando atuar de uma maneira mais atenta e consciente, politicamente falando. Há alguns autores que estudam e discorrem sobre a biblioteconomia brasileira, com um olhar atento e crítico, apontam a existência de nomenclaturas que rotulam esse campo, com a intenção de quebrar o conservadorismo e a ideia de neutralidade presente. A biblioteconomia pode ser uma biblioteconomia alternativa, uma biblioteconomia socialmente responsável, uma biblioteconomia radical, uma biblioteconomia anarquista, uma biblioteconomia militante, uma biblioteconomia guerrilheira, uma biblioteconomia política, uma biblioteconomia humanista, uma biblioteconomia progressista, uma biblioteconomia negra, uma biblioteconomia crítica e também social. Mas, ela não é social? Social, ela é. No entanto, teoricamente. Faço essa afirmação por conta de estudos produzidos e preocupados com a pedagogia aplicada na formação das pessoas bibliotecárias e com a atuação desses profissionais. Basta darmos o retorno, para voltar a esses conceitos e analisarmos as práticas que tornam as bibliotecas aparelhos hegemônicos de poder.
É sabido que em diferentes contextos históricos, teóricos da área, que fincaram essas nomenclaturas, queriam mesmo é deslocar o nosso olhar para a insistente presença da ideologia de classe, dominante e colonial, para a constituição e manutenção de um único saber, influenciando na atuação das pessoas bibliotecárias, forjando uma atuação conservadora e excludente, principalmente nas bibliotecas, o que afeta e influencia nas relações entre esse espaço, esse profissional e a sociedade. Além do valor (ou a ausência dele) dado pelos indivíduos. Um desses teóricos, trago aqui, a partir de uma citação assertiva de uma colega, bibliotecária e docente, que afirma que é necessário “[…] a construção do espaço da crítica, do diálogo, da reflexão e de um outro fazer que encontre um território fértil a favor dos direitos humanos e da justiça social, dentre outros valores morais e sociais de uma sociedade democrática, trazendo discussões antes ignoradas e silenciadas como classe, raça, gênero e sexualidade” (Tanus, 2021, p. 2).
Por isso, vou e levo vocês, caros colegas, para uma encruzilhada. Uma encruzilhada de saberes e de apontamentos interseccionais para estabelecer uma nova nomenclatura para o campo: a Biblioteconomia Interseccional. Que tal? Para estabelecermos esse campo, precisamos partir primeiro para o entendimento do que é INTERSECCIONALIDADE, já que essa nova biblioteconomia precisa atuar sobre a sua ótica, usando ela como uma lente metodológica para olharmos melhor o que não se enxerga. Então, recorro a Collins (2022, p. 47), que diz que a interseccionalidade “propicia novas perspectivas acerca de cada sistema de poder, acerca de como esses sistemas se cruzam e divergem uns dos outros e acerca de possibilidades políticas sugeridas”.
E, para um melhor entendimento da Biblioteconomia interseccional que se desenha, me arrisco a apresentar suas principais características, onde não apenas uma, mas todas juntas representam essa proposta de Biblioteconomia. Ela deve ter uma perspectiva interseccional, reconhecendo que as identidades das pessoas (como raça, gênero, classe social, orientação sexual etc.) se interseccionam e afetam suas experiências e necessidades, o que implica uma compreensão mais profunda de como essas intersecções influenciam o acesso e uso da informação. Também deve ser inclusiva pois deve buscar criar bibliotecas e outros espaços informacionais que sejam acessíveis e acolhedores para todas, todos e todes, independentemente de sua identidade étnica, de gênero, de classe, etária, física etc. e promovendo a diversidade em coleções, serviços, infraestrutura e pessoal qualificado. Deve possuir uma crítica social para fomentar uma abordagem crítica sobre as estruturas de poder e desigualdade na sociedade, questionando como essas afetam a biblioteconomia e o acesso à informação. Possibilitar o empoderamento comunitário para empoderar as comunidades marginalizadas por meio da provisão de recursos, serviços e espaços informacionais que respondam às suas necessidades específicas; Deve promover uma educação e consciência social sobre temas de equidade e justiça epistêmica e social, tanto entre bibliotecários quanto entre usuários, para criar consciência sobre as barreiras que diferentes grupos enfrentam. Ser colaborativa, estabelecendo alianças com organizações comunitárias e outros setores para abordar de forma eficaz às necessidades das comunidades diversas existentes, e também adaptável, reconhecendo a necessidade de adaptar práticas e políticas bibliotecárias para servir melhor às comunidades diversas, considerando seus contextos culturais e sociais.
Essas características buscam transformar a Biblioteconomia em um campo mais equitativo e justo, visibilizando e respeitando a diversidade da sociedade brasileira e também desconstruindo os fenômenos que fortalecem o capitalismo, esse sistema opressor que dita as dinâmicas sociais, políticas e econômicas. Temos, aí, a missão de construir um campo, com perspectiva e atuação anticapitalista, antirracista, antipatriarcal, anticapacitista, para a promoção de um mundo mais habitável para todo mundo. Então, qual papel você irá assumir para a implementação de uma Biblioteconomia Interseccional?
Referências:
COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo, 2022.
TANUS, Gabrielle Francine de Souza Carvalho. Institucionalização da biblioteconomia progressista e crítica. Em Questão, n. online, 2021. DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245281.432-457 . Acesso em: 30 jun. 2023.
Sobre a autora:
É pesquisadora associada do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade do Estado de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa Representação e Organização do Conhecimento e Membro do Grupo de Pesquisa Laboratório de Pesquisa em Informação Antirracista e Sujeitos Informacionais. Foi presidente da Associação Catarinense de Bibliotecários na gestão 2021-2023.
Mestra e Doutoranda em Ciência da Informação pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina. Está cursando o doutorado-sanduíche na Universidad Nacional Autonoma do México pelo Programa Universitario Diversidad Cultural e Interculturalidad. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade do Estado de Santa Catarina.
Redação e Foto: Andreia Sousa da Silva
Diagramação: Larissa Alves