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v. 1, n. 9, nov. 2023
Do incômodo nasceu o caminho: do ensino bibliotecário às epistemologias negro-africanas em Biblioteconomia e Ciência da Informação, por Franciéle Garcês

Do incômodo nasceu o caminho: do ensino bibliotecário às epistemologias negro-africanas em Biblioteconomia e Ciência da Informação, por Franciéle Garcês

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Do incômodo nasceu o caminho: do ensino bibliotecário às epistemologias negro-africanas em Biblioteconomia e Ciência da Informação

Franciéle Carneiro Garcês da Silva
francigarces@yahoo.com.br

Minha tese, hoje livro intitulado “Biblioteconomia Negra: das epistemologias negro-africanas à Teoria Crítica Racial” (Malê, 2023), nasceu do incômodo. Esse incômodo me acompanhou durante a vida inteira enquanto mulher negra nascida no Rio Grande do Sul e no Brasil, ambos, estado e país, forjados no insidioso racismo estruturante e estruturador das vidas, relações sociais e experiências de sujeitos negros.

Esse incômodo se intensificou ao chegar na graduação em Biblioteconomia, e perceber, para além da consciência sobre o racismo manifestado nas estruturas institucionais, que pessoas negras como eu ainda são poucas como professoras no ensino superior de universidades públicas brasileiras; são incipientes enquanto intelectuais e pesquisadoras dentro dos currículos e planos de ensino dos cursos; e não são (re)conhecidas enquanto autoridades epistêmicas nas mais diversas especificidades dentro das áreas do conhecimento, incluso, na Biblioteconomia e na Ciência da Informação.

As inferências que faço advém da trajetória de dez anos enquanto pesquisadora de questões étnico-raciais dentro do campo biblioteconômico-informacional. Durante esse período, realizei três pesquisas em diferentes níveis de profundidade com o intuito de investigar as questões étnico-raciais, a contribuição negra na construção do campo e o debate epistêmico e denunciador do racismo na profissão bibliotecária elaborado por pessoas bibliotecária negras. Na graduação, investiguei a percepção docente acerca da cultura e a história negro-africana e se elas estavam abarcadas no ensino profissional em Biblioteconomia. Nessa pesquisa, orientada pela Profa. Daniella Pizarro, constatamos – apesar das pessoas docentes considerarem importante a introdução do debate – a frágil abordagem das culturas tanto nas disciplinas e Projeto Político Pedagógico do curso avaliado, quanto na aplicação de ações didático-pedagógicas referentes às questões étnico-raciais.

Ao cursar o mestrado, agora sob orientação do Prof. Gustavo Saldanha, o incômodo aumentou. Ao visar compreender as representações sociais acerca das culturas Africana e Afro-brasileira na Educação em Biblioteconomia e Ciência da Informação no Brasil, a partir de instrumentos normativos (projeto político pedagógico, ementa, programa e bibliografia das disciplinas) e dos discursos dos docentes pertencentes a cursos de Biblioteconomia de instituições federais e estaduais, mais uma vez, a abismal ausência do debate étnico-racial se fez presente. Inicialmente, constatei que são diversos os desafios para formação profissional consciente do nefasto racismo e do passado colonial e escravista cujas sequelas perduram nas experiências de pessoas negras quando essas não conseguem o acesso a direitos civis básicos, como o acesso à informação, ao livro e à leitura, por exemplo. Por conta dessa (in)consciência, ainda há profissionais da Biblioteconomia que optam por se dizer “neutros”, ao mesmo tempo em que são contra políticas públicas com enfoque em populações historicamente marginalizadas. A dificuldade está em entender que a política de cotas raciais é, no mínimo, uma política de reparação para negros e indígenas dado os mais de trezentos anos de escravidão e genocídio, assim como, a importância da construção de acervos pluridiversos possibilita à população negra a (re)construção de memórias, histórias e sociabilidades antes subrepresentadas nos livros. Essa (re)construção se concretiza com obras que retirem a população negra de lugar de “objeto de estudo” para serem sujeitos de suas próprias incursões científicas. Quando se assume uma pseudoneutralidade científica e profissional, as pessoas bibliotecárias acabam por aceitar falácias como a da democracia racial e da meritocracia. Se houvesse um pouco de justiça social e racial no nosso país não seriam as pessoas negras aquelas que são consideradas como suspeitas em abordagens policiais, nem aquelas que acabam por morrer pelas mãos das forças de segurança, ou pela falta de assistência médica. Coincidentemente, a área que se diz “neutra” acaba por visibilizar o discurso hegemônico dentro dos cursos, acervos e coleções, ao mesmo tempo em que continua a cometer memoricídio e epistemicídio com as populações negra e indígena dentro e fora das bibliotecas e da Biblioteconomia.

No que se refere à formação profissional, a realidade acerca do debate étnico-racial se mostrou angustiante: quando avaliamos mais de 2200 disciplinas de cursos presenciais brasileiros, encontramos somente oito delas como específicas do debate e outras oito como tópico integrante dentro de uma disciplina maior. Ademais, pessoas docentes negras compuseram a maioria daquelas preocupadas com a representatividade negra nos planos de ensino, na construção de projetos de pesquisa e extensão afrorreferenciados, bem como na introdução do debate étnico-racial na formação de estudantes de Biblioteconomia. Enquanto isso, algumas pessoas docentes brancas inferiram ter dificuldades em estabelecer seu lugar na luta antirracista e na introdução do debate étnico-racial em sala de aula. E sobre isso, quero fazer uma ressalva: docentes brancos ocupam lugares de privilégio racial, simbólico e material frente a seus colegas e estudantes negros, e para que isso mude, devem assumir um compromisso de erradicar o racismo e outros instrumentos que lhes privilegiam na sociedade brasileira. Não basta ser contra o racismo, é necessário ter a consciência de sua identidade étnico-racial branca e as construções histórico-sociais que a construíram como uma norma; construir diálogos com pesquisadoras negras para apreender sobre branquitude, letramento racial, privilégios raciais e como isso impacta na sua vivência pessoal e profissional; ler pessoas negras possibilitará entender cosmovisões e percepções diferentes das suas, inclusive, para desmistificar discursos coloniais propagados como senso comum dentro de sociedades racializadas como a brasileira. Ademais, o entendimento de que, independentemente da classe social, pessoas brancas compõe o grupo racial hegemônico e é receptor de todas as bénéfices que o capitalismo racial institui pode auxiliar na assunção de uma práxis crítica e antirracista que busque retirar o branco-hegemônico do centro para translocar os grupos que sempre estiveram às margens.

Nesse entendimento advindo dessas duas pesquisas, afirmo a formação bibliotecária está aquém daquela necessária para prestar serviços e produtos de informação visando o atendimento de necessidades informacionais da população negra brasileira. A maioria das pessoas docentes em Biblioteconomia no Brasil não são e nem estão preparadas para atuar na formação profissional afrorreferenciada enquanto abordagem transversal e específica dentro das disciplinas dos cursos. Quando me refiro à abordagem transversal, quero dizer que nem todas as disciplinas terão espaço para esse debate de forma profunda. No entanto, trazer elementos da população negra e a inclusão de autorias negras na bibliografia básica e complementar – mesmo que sem informar aos estudantes – pode ser um ponto de partida para deslocarmos o ensino de base eurocentrada – como é o ensino bibliotecário – para a diversidade epistêmica dentro do enfoque das disciplinas. Em outras palavras, se estou ministrando a disciplina de Arquitetura da Informação, para além de realizar atividades de análise da arquitetura de sites negros como Geledés, Criola, Mundo Negro, Mídia Negra, entre outros, posso incluir a produção científica de autorias negras que pesquisam sobre a arquitetura da informação. Isso quebra o ciclo de dependência epistêmica do conhecimento branco para ver outras percepções de análise de um determinado contexto ou objeto. No que se refere à abordagem específica, entendo que os debates étnico-racial, de gênero e sexualidade merecem enfoque em disciplinas específicas as quais busquem preparar a pessoa estudante em Biblioteconomia para atuar com as mais diversas pertenças étnico-raciais (branca, negra, indígena, cigana etc.), identidades de gênero e sexualidade. Como profissionais da informação, é urgente a construção de uma Biblioteconomia em consonância com a comunidade e as demandas sociais daqueles que sempre estiveram à margem, inclusive, na biblioteca e no acesso à informação.

Por outro lado, caso não tenham base teórica ou desconheçam determinados aportes advindos da população negra, as pessoas docentes e bibliotecárias podem obter referenciais negros e indígenas a partir do diálogo com os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, entidades elaboradas para prestar suporte à universidade na criação de ações de ensino, pesquisa e extensão que visem a aplicação dos instrumentos normativos (legislações, decretos, diretrizes curriculares, etc.), a conscientização sobre os instrumentos de poder racial (branquitude, colonialidade, racismo, raça, falácia da meritocracia, mito da democracia racial) e suas influências nas vivências e experiências da população negra e indígena. Além disso, buscar materiais recém-publicados em editoras negras ou feiras de livros nacionais e locais também ajuda a ampliar o escopo de narrativas e perspectivas de ser e entender o mundo.

Retomando minha caminhada, quando fui cursar o doutorado, direcionei meu enfoque para uma lacuna que havia encontrado nas duas pesquisas anteriores: histórico da contribuição epistêmica negra-africana dentro do campo, sobretudo evocando a Biblioteconomia Negra. Por isso, sob orientação do Prof. Rubens Alves da Silva e do Prof. Fabrício José Nascimento da Silveira, direcionei-me para realizar um estudo histórico-epistemológico que, articulado a uma metodologia decolonial e a biobibliografia, apresentasse a discussão das ausências do conhecimento negro-africano nos contextos da biblioteca, universidade e formação profissional. Dessa forma, iniciei conceituando o que seria a epistemologia negro-africana para este estudo, entendendo que ela abarca elementos das epistemologias ocidental, africana e negra.

Posteriormente, fiz uma incursão que me levou a entender que o debate étnico-racial é realizado por pessoas bibliotecárias negras desde o século XX. Ainda descobri que, com vistas a enfrentar o epistemicídio e memoricídio, pessoas negras bibliotecárias construíram instrumentos de organização do conhecimento, bibliografias, bibliotecas, coleções e registros que auxiliassem na construção histórica da experiência negra nos mais variados setores sociais, assim como na luta pelo acesso à biblioteca, à informação e à profissão bibliotecária. Ainda, fui em África para argumentar que africanos não são negros, e que o proto-racismo foi o início da raça e racismo como entendemos, e que estes últimos são invenções ocidentais. Por fim, busquei pessoas bibliotecárias negras enquanto teóricas críticas raciais, ou seja, aquelas pessoas que não só possuem consciência do e vivência com o racismo e sua influência nas suas vidas, biblioteca, universidade e na Biblioteconomia, como há tempos o denunciam em suas ações e produções teóricas e intelectuais.

Embora meu incômodo tenha se diluído um pouco, ainda seguirei no caminho de construção epistêmica negra, pois há muito a (re)descobrir e a (re)iluminar dentro da Biblioteconomia Negra!

Sobre a autora

Franciéle Carneiro Garcês da Silva

Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Informação, da Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGInfo/UDESC). Idealizadora e gestora do Quilombo Intelectual, E Coordenadora do Selo Nyota e do GT Relações Étnico-raciais e Decolonialidades (GT RERAD). Vice-Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Recursos, Serviços e Práxis Informacionais (NERSI) e compõe o quadro de integrantes do Grupo de Pesquisa Ecce Liber: Filosofia, linguagem e organização dos saberes como membro do Satélites em Organização Ordinária dos Saberes Socialmente Oprimidos (O²S².sat).

Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestra em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT-UFRJ). Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade do Estado de Santa Catarina.


Redação e Foto: Franciéle Carneiro Garcês da Silva

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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