Vulnerabilidade informacional nas pessoas em situação de rua, por Daniela Spudeit
Vulnerabilidade informacional nas pessoas em situação de rua
Daniela Spudeit
daniela.spudeit@udesc.br
A sociedade pode pensar que seja um desafio atuar com pessoas em situação de rua, muitos têm preconceitos, receios, medos, inseguranças, etc. No entanto, são pessoas acolhedoras e só querem isso: serem acolhidas, serem ouvidas, terem voz, terem oportunidades para mudança de vida. Foi assim que comecei como voluntária num projeto social da minha igreja em 2018: fazendo almoços e servindo-os na Passarela da Cidadania, que é onde funciona o sambódromo de Florianópolis, espaço escolhido pela Prefeitura de Florianópolis para atender essas pessoas em situação extrema de vulnerabilidade social. Nessas vivências, pude perceber a sede que eles tinham por leitura, por informação, por oportunidade. Assim, aliei meus interesses particulares e profissionais desenvolvendo um projeto para o doutorado relacionando competência em informação e pessoas em situação de rua (PSR). Fiz a pesquisa durante o período da pandemia e defendi final de 2021 sob orientação da professora Elizete Vieira Vitorino no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação na Universidade Federal de Santa Catarina.
Refletir a vulnerabilidade informacional que esse grupo de pessoas está submetido sob o prisma da Competência em Informação foi um grande desafio, ainda mais no contexto das bibliotecas públicas, que foi o foco da minha pesquisa. Na literatura era possível encontrar poucos trabalhos sobre PSR, muitos sobre biblioteca pública e dezenas de outros sobre competência em informação, mas nada que relacionasse as três temáticas a nível nacional ou internacional. Pronto! Eis meu objeto de pesquisa com a originalidade que um doutorado requer. Fui buscar na Sociologia, na área da Saúde, no Direito, entre outras áreas os subsídios teóricos para entender mais a fundo sobre direitos humanos, políticas públicas, características e necessidades desse grupo de pessoas, e na Ciência da Informação me apropriei de tudo que foi possível para retratar a vulnerabilidade informacional e problemas informacionais gerados na sociedade contemporânea.
O que motiva as pessoas a irem para as ruas têm diferentes causas tais como rompimento de laços familiares, perda de fonte de renda, problemas com vícios, etc., mas o que MANTÉM essas pessoas nas ruas muitas vezes é simplesmente a falta de oportunidades (gerada pelo preconceito ou ausência de políticas públicas mesmo) que muitas vezes é causada por falta de acesso e uso da informação. Aqui entra o desenvolvimento da competência em informação que foi inclusive pauta do Manifesto do CBBD – Congresso Brasileiro de Biblioteconomia e Documentação – organizado pela FEBAB – Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da informação e Instituições – em 2013 voltado às pessoas em situação de vulnerabilidade social, respaldado pela Declaração de Direitos Humanos, pelos objetivos da Agenda 2030 da ONU e pela própria Constituição Federal Brasileira.
Dessa forma, foi feita uma ampla pesquisa bibliográfica, documental e entrevistas com as pessoas que estavam acolhidas na Passarela da Cidadania originando a minha tese de doutorado. Durante esse período de coleta de dados, identifiquei as necessidades de informação, o perfil, as características, as demandas, o processo de comportamento informacional, as dificuldades, entre outras informações importantes.
Percebi que esse grupo de pessoas muitas vezes não exerce sua cidadania ou não usufrui dos seus direitos básicos garantidos pela Constituição Federal por falta de conhecimento. Por exemplo, na época da pandemia muitos perderam o emprego e não sabiam como ter acesso ao auxílio emergencial, assim foram parar nas ruas. Além disso, outras necessidades como entrar num sistema de informação governamental na internet para ter direito a algum benefício, auxílio doença, aposentadoria, fazer um currículo, achar uma vaga de trabalho em sites, etc eram necessidades informacionais comuns em suas falas. Também havia outras necessidades de quem já estava nas ruas: como conseguir tirar uma segunda via de um documento, conseguir uma passagem para voltar para sua cidade de origem, marcar um médico no posto de saúde, buscar um lugar para tratamento de vícios, achar um abrigo para passar a noite porque foi despejado, etc eram outras demandas que poderiam ser resolvidas com acesso à informação, ou seja, serviços que poderiam ser oferecidos pelas bibliotecas públicas.
Foi assim que desenvolvi minha pesquisa criando diretrizes que visam promover o acesso e uso da informação para PSR pautado num programa para desenvolvimento da competência em informação que possa ser oferecido em bibliotecas públicas, mas também por qualquer tipo de unidade de informação e por bibliotecários engajados socialmente nessa missão linda de promover integralmente o acesso à informação “sem deixar ninguém para trás”.
Quando terminei o doutorado, voltei da minha licença para UDESC, lugar que leciono nos cursos de graduação em Biblioteconomia e no mestrado profissional em Gestão da Informação, e em março de 2022 criei um programa de extensão dentro da Passarela da Cidadania e lá junto com eles criamos nossa biblioteca comunitária que eles mesmos ajudaram a formar a coleção pois traziam livros que estavam pelas ruas e lixeiras.Juntos inauguramos a Biblioteca Cidadã em junho do mesmo ano após um trabalho coletivo com diversos parceiros para seleção de obras, aquisição de literaturas que era a principal necessidade das PSR, organização do espaço com estantes, etc.
Desde então a Biblioteca Cidadã mudou para espaço maior, hoje temos espaço para leitura e estudos, são realizadas muitas atividades culturais e educacionais, inauguramos recentemente a segunda unidade da Biblioteca Cidadã e cada vez mais estamos ampliando e melhorando os serviços para que essa biblioteca comunitária oportunize a democratização do conhecimento e exercício pleno da cidadania para todas as pessoas. Desejamos que esse grupo de pessoas possa ver a biblioteca como um espaço de construção, de acolhimento, de oportunidade, de realização de sonhos, de mudança de vida, de esperançar.
Referências
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE ASSOCIAÇÕES DE BIBLIOTECÁRIOS, CIENTISTAS DA INFORMAÇÃO E INSTITUIÇÕES. Manifesto de Florianópolis sobre a competência em informação e as populações vulneráveis e minorias. Florianópolis, 2013. Disponível em: http://repositorio.febab.org.br/items/show/4554 . Acesso em 11 de ago. 2024.
SPUDEIT, D. Diretrizes para o desenvolvimento da competência em informação em bibliotecas públicas com foco nas pessoas em situação de rua. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação, Programa Pós-Graduação em Ciência da Informação, Florianópolis, 2021. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/231102 . Acesso em 11 de ago. 2024.
Artigo disponível em:
SPUDEIT, D.; VITORINO, E. V. ¿Quiénes piensan que son? Reflexiones sobre la vulnerabilidad informacional en personas en situación de calle desde la perspectiva de la Competencia en Información. Biblios, Lima, n. 86, p. 1–19, 2024. Disponível em: http://biblios.pitt.edu/ojs/biblios/article/view/1095 . Acesso em: 27 jul. 2024.
Sobre a autora
Professora do Curso de graduação em Biblioteconomia e no Programa de Pós-Graduação de Gestão da Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Competência em Informação da Universidade Federal de Santa Catarina e do Grupo de Pesquisa em Informação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Coordenadora do Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão em Biblioteconomia e Ciência da Informação vinculado à Universidade do Estado de Santa Catarina.
Doutora e Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Gestão de Unidades de Informação pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Santa Catarina.
Redação: Daniela Spudeit
Fotos: Daniela Spudeit
Diagramação: Larissa Alves