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Relatos de uma experiência vivida à frente da Biblioteca Pública e Arquivo Histórico Nacional do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa na Guiné-Bissau, por Iaguba Djaló
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Relatos de uma experiência vivida à frente da Biblioteca Pública e Arquivo Histórico Nacional do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa na Guiné-Bissau
Iaguba Djaló
idjalo@gmail.com
O presente artigo visa compartilhar minha experiência à frente da Biblioteca Pública e Arquivo Histórico do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) e demonstrar como a resiliência transformou os desafios em oportunidades. O propósito é de revelar de que maneira tenho acompanhado ao longo de várias décadas, a história dos acervos documentais em diferentes fases da História da Guiné-Bissau. Ainda existem muitos clichês sobre a minha vida e experiência profissional, que não posso revelar em pouco espaço de tempo. Mas, acredito que a minha colaboração com a Revista de Divulgação Científica em Ciência da Informação da Universidade Federal de Rondônia em parceria com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, vai continuar onde terei a oportunidade de completar a história agora iniciada.
É difícil transmitir as emoções vividas ao longo de quase três décadas de vínculo afetivo com a Biblioteca Pública Nacional e os Arquivos Históricos sob a tutela do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP). A minha vivência nestas duas instituições de memória foi interrompida, formalmente, apenas por um período durante o qual assumi compromisso de carreira junto à uma outra instituição internacional (Nações Unidas) em 2004, o meu regresso à casa em 2015 compreendeu igualmente a minha recondução à frente da Biblioteca Pública Nacional e do Arquivo Histórico Nacional através de um despacho do então Ministro da Educação Nacional, Ensino Superior e Investigação em 2018.
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Ingressei-me à Biblioteca Pública do INEP em Março de 1996, tendo ocupado vários cargos técnicos até chegar à posição de Diretor através de um concurso público. Foi ali, que a vida me colocou vários desafios que moldaram a minha vida profissional, foi ali também que ousei fazer da minha paixão minha profissão ao me tornar Bibliotecário/Arquivista, foi a profissão que me abriu portas ao mundo e ampliou meu horizonte profissional. É realmente uma atividade emocionante querer alcançar cada vez mais pessoas e ajudar a levar a cultura a todos os lugares ao seu redor.
Mas, sobretudo uma profissão pouco conhecida e pouco reconhecida, tanto pelos atores do campo literário, até mesmo do campo político, mas também seus usuários no contexto de um país como a Guiné-Bissau.
O espírito de sacrifício, o não saber tudo mas procurar aprender, o trabalho de equipe, capacidade de adaptação e o “descomplexo” de assumir condição de um profissional Bibliotecário/Arquivista, em ambientes angustiantes e de desmotivação, foram valores que me incutiram durante a minha vida profissional frente às maiores instituições de Memória na Guiné-Bissau.
Em 1998, a Guiné-Bissau foi sacudida por uma sangrenta guerra que devastou o país e atingiu de forma demolidora o complexo que abriga o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) e suas dependências – Arquivo Histórico Nacional e a Biblioteca Pública. Foi uma guerra que durou cerca de 11 meses que reduziu aos escombros as coleções e os acervos documentais das duas instituições que concentram o essencial do patrimônio histórico-documental da Guiné-Bissau.
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Depois da guerra, portanto, as instituições da memória enfrentaram sérios problemas: instalações precárias ou destruídas, acervos danificados, vandalizados ou destruídos, falta de pessoal treinado para lidar com a situação, constituindo um grande obstáculo ao progresso social e ao desenvolvimento econômico e cultural da Guiné-Bissau. Nessa ordem de ideia é importante considerar que:
“A salvaguarda da memória é fundamental para a construção do Estado da Guiné-Bissau. Quando falamos de memória, estamos a falar de tudo o que é [um] documento, história e memória. O Estado não se constrói sem memória. Não podemos promover o diálogo social, a democracia e a coesão social sem a preservação da memória” (ONU, 2023, p. 20).
Perante a situação, o governo ficou impotente para fazer face aos desafios de restauração da memória nacional. E, eu na qualidade de Diretor da Biblioteca Pública e Arquivo Histórico Nacional e presidente da Associação Guineense de Documentalistas, Arquivistas e Bibliotecários (AGDAB) não tinha outra escolha senão, lançar mão à obra para a reconstrução em apoio ao governo com a ajuda dos parceiros.
O grande desafio posto nessa altura, era definir o que conservar, onde guardar, como fazer para bem guardar os bens culturais e porque guardá-los. Por outro lado, questionava-se também como adquirir meios para salvaguardar obras, documentos e demais bens de valor histórico, artístico, bibliográfico, arquivístico, cartográfico e arqueológico que constituem fontes históricas da herança colonial e pós-independência para o desenvolvimento nacional, na perspectiva de estes serem imprescindíveis à reconstrução da história nacional, não só cronológica, mas também crítica e científica.
No entanto, as necessidades iam crescendo a todos os níveis, acompanhado de aspirações básicas das pessoas, os meios para as satisfazer dependia de recursos financeiros. Neste contexto, e face às persistentes instabilidades políticas e sociais relacionadas ao peso das dificuldades financeiras, senti na obrigação de agir com maior urgência.
Assim, nasceu o interesse em conhecer o real impacto da guerra ao patrimônio documental exposto às intempéries. Abordar a situação a partir da observação dos danos causados às coleções e fundos documentais pelas bombas que caíram diretamente sobre os edifícios implica um convite e ao mesmo tempo um desafio à reconstrução.
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O espírito de colaboração de todos os meus colegas bibliotecários e arquivistas reforçou a minha determinação em avançar com um inventário exaustivo que resultou num primeiro artigo intitulado “O conflito político-militar na Guiné-Bissau e os desafios da reconstrução e da Restauração da Memória e da Identidade Nacional” publicado na Revista de Estudos Científicos Guineenses “SORONDA” nova série Nº 8 em julho de 2004. A partir desse momento o assunto começou a despertar interesse e atenção, o que me levou a uma imersão ainda maior para escrever um livro sob título “Os desafios da Preservação do Patrimônio Histórico Documental na Guiné-Bissau”.
É nesse sentido, que a AGDAB, enquanto parceiro do governo neste setor, resolveu intervir através de um projeto intitulado “Salvaguardar e preservar o patrimônio histórico e documental da Guiné-Bissau” em torno do qual, vários jovens voluntários e funcionários da Biblioteca e do Arquivo Histórico Nacional se mobilizaram para resgatar o patrimônio documental fortemente ameaçado de desaparecimento. O projeto visava salvar da ruína as infraestruturas de memória nacional.
Para a implementação do projeto, foram mobilizados vários atores e parceiros nacionais e internacionais, incluindo o governo, líderes da sociedade civil e organizações internacionais como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). O projeto foi lançado em 2020 e a primeira fase terminou em dezembro de 2022. As 4 principais áreas de atuação do projeto foram: a reabilitação das infraestruturas da Biblioteca e do Arquivo Nacional, a aquisição de equipamentos, a capacitação do pessoal, reformas do enquadramento legal e o arranque do processo de informatização e digitalização.
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Detalhe da capa do livro “Os desafios da preservação e conservação do patrimônio histórico-documental da Guiné-Bissau”
O PNUD e a UNESCO, através do fundo de consolidação da Paz na Guiné-Bissau, reconhecendo o papel da memória no processo de desenvolvimento econômico, social e cultural, disponibilizaram recursos financeiros que permitiram realizar importantes ações tais como: aquisição de vários equipamentos materiais e informática capacitação do pessoal, reformas legislativas no setor das bibliotecas e arquivos¹.
Ao tomar parte do ato da entrega dos equipamentos o Representante Residente do PNUD Tjark Egenhoff, enfatizou que “Testemunhar a organização e a modernização desta Biblioteca é algo que, a todos nós tem de encher de orgulho“.
Além do PNUD e UNESCO, o processo de relance e recuperação do Arquivo Histórico Nacional e da Biblioteca pós-conflito, contou com apoio da Cooperação Portuguesa e Brasileira destacando também outros parceiros tais como: 1) CPLP financiou reapetrechamento dos edifícios do Arquivo Histórico Nacional e a Biblioteca Pública, tendo sido feitas algumas obras de reabilitação da estrutura externa garantido desta forma a segurança dos acervos e do pessoal; 2) Cooperação Francesa, disponibilizou em 2000, meios financeiros para a capacitação de técnicos e aquisição de um fundo documental importante em língua francesa que serviu para apoio à investigação, 3) Cooperação Alemã financiou aquisição de equipamentos mobiliários; 4) Prince Claus Fund for Culture and Development apoiou a aquisição de alguns materiais de proteção e de higienização dos acervos; 5) Max Planck Institute for Legal history and Theory, financiou a catalogação e descrição de cerca de 10 mil documentos do século passado e aquisição de materiais.
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Hoje, graças a esta parceria, jovens estudantes, investigadores e público em geral têm acesso à memória e à Internet de banda larga há 3 anos, algo que era impensável. Antes da implementação do projeto, o país não tinha uma legislação específica no setor de Arquivos e Bibliotecas nem quadro orgânico que regulasse a organização e o funcionamento dos serviços nacionais de arquivos e bibliotecas. Em geral, a estrutura normativa foi construída a partir de pouco ou nada. Hoje, a Biblioteca e Arquivo Histórico Nacional beneficiam de legislações adaptadas ao contexto atual.
Os grandes resultados já alcançados pelo projeto foi graças ao trabalho árduo e notável de uma equipe de técnicos servidores de Arquivos Históricos Nacionais, a Biblioteca Pública Nacional e voluntários que, diariamente, sem remuneração, trabalharam na execução das atividades do projeto:
- Reestruturação e reabilitação do espaço físico da Biblioteca.
- Aquisição de equipamentos de conservação e preservação, equipamentos informáticos e scanners para digitalização.
- Cerca de 30 voluntários, entre estudantes e público em geral, parceiros e amigos da biblioteca, receberam formação em triagem, seleção, limpeza, reorganização e inventariação e conservação de acervos.
- Os 48 técnicos de Arquivos de instituições públicas receberam formação em técnicas de gestão de arquivo, ministrada por 5 (cinco) especialistas portugueses e brasileiros que lhes permitiram adquirir mais conhecimentos e competências na preparação, intervenção e recuperação de acervos documentais destruídos e danificados durante a guerra.
- O projeto permitiu que o Arquivo Histórico e a Biblioteca Pública Nacional, como instituições de memória, tivessem políticas e estratégias eficazes para preservar o patrimônio documental e também lhes deu a oportunidade de adotar um papel proactivo na gestão da memória.
- Com a reforma e reestruturação do quadro legal, a Biblioteca e o Arquivo Histórico passam a ter estatutos que lhes conferem competências em matéria de preservação e conservação da memória nacional, através da criação de legislação sobre o regime jurídico do Arquivo Nacional, a lei relativa aos arquivos e documentos administrativos públicos e privados e ao regime de depósito legal. Todos são aprovados, promulgados e publicados no 3º Suplemento nº 22 do Boletim Oficial de 1º de junho de 2023.
Além de disponibilizar recursos materiais, equipamentos para a recuperação de patrimônio ameaçado, temos conseguido realizar reformas legislativas no sector das bibliotecas e arquivos. Hoje, graças a esta parceria, jovens estudantes, investigadores e público em geral têm acesso à memória.
Referências:
DJALÓ, I. O conflito político-militar na Guiné-Bissau e os desafios da reconstrução e recuperação da memória e da identidade nacional. Soronda: Revista de Estudos Guineenses, Bissau, v. 8, n. 2, p. 97-108. Disponível em: https://www.africabib.org/rec.php?RID=A00005896 . Acesso em: 06 jul. 2024.
DJALÓ, I. Os desafios da preservação e conservação do patrimônio histórico-documental da Guiné-Bissau. Portela ; São Paulo : Lisbon, 2022. Disponível em: https://www.amazon.com.br/PRESERVA%C3%87%C3%83O-CONSERVA%C3%87%C3%83O-PATRIM%C3%93NIO-HIST%C3%93RICO-DOCUMENTAL-GUINE-BISSAU/dp/9893741041 . Acesso em: 06 jul. 2024.
ONU. O futuro que vemos hoje – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Guiné-Bissau: relatório anual 2022. Bissau: PNUD, 2023. Disponível em: https://www.undp.org/sites/g/files/zskgke326/files/2023-08/23225_undp_future-report_pt_v01_rc_003.pdf . Acesso em: 06 de jul. 2024.
Notas do Autor:
[1] Ato solene de cedência de equipamentos de alta tecnologia para salvaguarda e preservação do patrimônio documental e história da nacional pelas Nações Unidas.
Leia mais em:
PRESERVAÇÃO da Memória Nacional para a Paz Sustentável na Guiné-Bissau. Na Nô Mon. 17 nov. 2020. Disponível em: https://nanomon.org/noticias/preservacao-da-memoria-nacional-para-paz-sustentavel-na-guine-bissau-0 . Acesso em 06 jul. 2024.
Nota dos Editores:
O texto foi revisado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.
Sobre o autor:
Iaguba Djaló
Ex-Diretor da Biblioteca do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) da Guiné-Bissau. Presidente da Associação Guineense de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas – seção Africana da Federação Internacional de Bibliotecas e Instituições de Informação (IFLA). Membro de Conselho de Administração da Associação Africana de Bibliotecas e Instituições da Informação (AFLIA). Consultor na área de patrimônio documental. Professor de Comunicação Empresarial na Universidade Amílcar Cabral.
Mestre em Gestão da Informação e Bibliotecas Escolares pela Universidade Aberta de Lisboa.
Redação e Foto: Iaguba Djaló
Diagramação e revisão: Larissa Alves