
Editorial: A arte indígena como conhecimento: vozes femininas em resistência, por Sandra Benites

A arte indígena como conhecimento: vozes femininas em resistência
Sandra Benites
sandraarabenites@gmail.com
A imposição de modelos escolares ocidentais sobre os processos de transmissão de saberes dos povos indígenas, em especial do povo Guarani, revela não apenas um choque cultural, mas uma tentativa histórica de silenciamento. Quando as estruturas educativas desconsideram as epistemologias próprias dos povos originários, negam também as suas formas de ver, sentir e habitar o mundo. A arte, nesse contexto, não é um produto, mas uma prática viva de conhecimento, profundamente ligada à coletividade, aos rituais, à natureza e à espiritualidade.
Na Funarte, a presença de uma curadoria indígena, sensível a essas camadas de significado, torna-se um ato político. Ao propor políticas públicas voltadas à arte indígena, não basta abrir espaços expositivos; é preciso ouvir, dialogar e compreender a complexidade dos processos de criação que emergem dessas comunidades. Como levar a política cultural até as aldeias sem que ela se perca no caminho? Como garantir que ela respeite os ritmos, os ritos, os modos de vida que sustentam a produção artística indígena? Essas são perguntas urgentes, que demandam escuta atenta e respeito aos saberes coletivos.
No universo Guarani, criar uma obra não é apenas esculpir um objeto ou pintar uma tela. É realizar um ritual, pedir permissão aos espíritos da floresta, observar os ciclos da lua, agradecer à árvore que cede sua madeira. Cada gesto carrega memória, cada traço inscreve um ensinamento ancestral. O objeto artístico, para o não indígena, pode ser visto como expressão individual da criatividade. Mas, para os povos indígenas, ele é continuidade de uma história, de um povo, de uma cosmovisão. Não se separa o conhecimento da arte, nem a arte da vida.
Essa percepção se amplia quando olhamos para a centralidade feminina nas narrativas e práticas culturais. A figura de Nhandesy ‘Ete, tão presente na cosmologia Guarani, carrega uma potência que vai além do mito: ela representa a memória das mulheres que narram, que cuidam, que educam, que tecem os fios da comunidade. No entanto, ao longo do tempo, muitas dessas vozes foram silenciadas pela invasão colonial, de forma brutal. O processo de violência e apagamento foi imposto a partir da lógica patriarcal, que negou às mulheres não só o direito à palavra, mas também o reconhecimento de seus modos de ser e existir enquanto mulheres, mães, educadoras, curadoras e artistas.
Desde a invasão colonial, não houve, em nenhum momento, uma estrutura institucional voltada à valorização do ser mulher nas culturas originárias. Práticas fundamentais, como o período de reclusão menstrual — visto pelos Guarani como tempo de cuidado e introspecção — foram ignoradas ou deslegitimadas. Esse momento é essencial para o equilíbrio da mulher e da coletividade. Enquanto as mulheres se resguardam, os homens têm a função complementar de buscar remédios, preparar chás e cuidar do corpo e da mente feminina. Isso também é parte da estética masculina: o cuidado como valor cosmológico e relacional.
Resgatar essas narrativas femininas é, portanto, um ato de resistência. É devolver às mulheres indígenas o direito de contar, de interpretar, de transmitir os saberes a partir de suas próprias experiências e sensibilidades. A história de Nhandesy, contada pela avó, pela tia, pela mãe, não fala apenas de uma personagem mítica. Fala da solidão das mulheres, da necessidade de cuidado, da importância de acolher, proteger e respeitar aquelas que geram a vida. Fala, também, da força poética que brota da dor, da memória e da esperança. Entretanto, por muitos séculos, as versões masculinas prevaleceram nas narrativas contadas, inclusive aos não indígenas. A maioria dos intelectuais e pesquisadores também eram homens — o que perpetuou o silenciamento das mulheres indígenas. Só recentemente, com a presença de pesquisadoras mulheres, indígenas ou não, tem sido possível ouvir essas vozes. Muitas mulheres indígenas se sentem mais à vontade para compartilhar suas vivências com outras mulheres. Isso tem fortalecido sua autonomia e permitido que demandas específicas — como a maternidade, o resguardo, a saúde mental, o papel na comunidade — venham à tona com mais clareza.
Promover o protagonismo das mulheres indígenas nas artes visuais vai além de criar espaços expositivos. É reconhecer que sua arte não está apenas no objeto final, mas na prática cotidiana: no canto, no preparo da comida, no cuidado com a terra, no aconselhamento, na parteira que acolhe a gestante, na anciã que narra as histórias da origem. Cada ato, cada gesto, cada palavra carrega uma estética própria, uma filosofia de vida que desafia as lógicas hegemônicas do mundo ocidental.
Diante desse panorama, as políticas públicas para a arte indígena precisam se reconfigurar. Precisam partir do diálogo, da escuta, do respeito aos tempos e modos de ser de cada povo. Precisam entender que arte, conhecimento, espiritualidade e vida são inseparáveis. E que a voz das mulheres indígenas, tantas vezes calada, deve agora ecoar com força, guiando caminhos de cura, criação e resistência.
Por isso, não se pode falar de arte indígena brasileira sem falar da violência da invasão colonial. Essa violência não foi apenas territorial ou cultural, mas também epistemológica e de gênero. O Brasil, enquanto construção colonial, nega até hoje a pluralidade das formas de existir e criar dos povos originários. A arte indígena resiste porque está viva — nos corpos, nas florestas, nos cantos, nas memórias. E é a partir dessa resistência, sobretudo feminina, que novas possibilidades de futuro se tecem, com beleza, coragem e ancestralidade.
Mais do que abrir espaço para a arte indígena, é tempo de devolver os espaços que sempre lhes pertenceram.
Redação: Sandra Benites
Foto: Revista Dasartes
Revisão: Pedro Ivo Silveira Andretta
Diagramação: Naiara Raíssa da Silva Passos









