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v. 2, n. 4, abr. 2024
Biblioteconomia Indígena: saberes da terra, encantos da vida, por Vinícios Menezes

Biblioteconomia Indígena: saberes da terra, encantos da vida, por Vinícios Menezes

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Biblioteconomia Indígena: saberes da terra, encantos da vida

Vinícios Souza de Menezes 

menezes.vinicios@gmail.com

O texto “Biblioteconomia indígena: tramas encantadas pela terra viva” publicado em 2023 tem como pretensão anunciar outras biblioteconomias possíveis. 

Esse exercício foi praticado por duas disciplinas que não tiveram muito êxito no Brasil: a Biblioteconomia Comparada e a Biblioteconomia Internacional. Essas duas disciplinas tinham por hábito apresentar, a partir de demarcações geopolíticas, os diferentes modos de cooperação e prática bibliotecária no mundo das nações – quase sempre ocidentais. 

Minha intenção foi agregar à determinação geográfica, os elementos linguístico-territoriais e étnico-raciais dos povos indígenas, historicamente maculados e invisibilizados pelo saber tecnicista estadunidense e humanístico europeu da biblioteconomia hegemônica. 

Neste sentido, Biblioteconomia indígena: tramas encantadas pela terra viva é uma resposta decolonial ao diagnóstico traçado por mim, neste mesmo dossiê especial do periódico Encontros Bibli, por meio do texto Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação: redes coloniais de desencantamento.

A biblioteconomia indígena provoca um deslocamento no campo do saber bibliotecário, pois parte de outros pressupostos para a composição dos seus saberes tradicionais.

Isto não se limita a uma questão formal de transmissão como, por exemplo, oralidade versus escrita, mas, sobretudo, porque os saberes bibliotecários indígenas são cosmologicamente orientados por um mundo todo vivo e animado pelos “seres-terra” – humanos e extra-humanos (animais, vegetais, minerais, espíritos, mortos – tudo aquilo que não desencantou). 

Diferente da biblioteconomia tecnicista, humanista ou tecno-humanista do Ocidente, a biblioteconomia indígena é uma biblioteconomia terrana, profundamente conectada e tecida em alianças com os diferentes seres que coabitam e partilham suas existências com as teias dos múltiplos povos. Sob esta perspectiva, início o texto com o relato de Ingrid Parent, então presidenta da Federação Internacional de Associações e Instituições Bibliotecárias (IFLA), no Encontro Internacional de Conhecimentos Tradicionais ocorrido em 2012, quando ao final da sua fala foi interpelada por um jovem bibliotecário da comunidade Nuxalk, localizada na Colúmbia Britânia canadense, que lhe disse de modo direto e conciso: a terra é a nossa biblioteca.

Por meio do pressuposto que a terra é a instituição portadora por excelência dos múltiplos saberes, a Organização do Conhecimento Indígena (OCI) parte do princípio que: i) a terra é a fonte originária e ancestral dos saberes do mundo, e, ii) as questões referentes aos seres, aos saberes e suas diferentes sociabilidades estão enraizadas na terra.

Primeira página do artigo publicado na revista “Encontros Bibli”.

Diferente do modo desencantado e objetivo dos povos da mercadoria, a terra para os indígenas porta um conhecimento vivo e ancestral, e faz parte da educação indígena saber ler a palavramundo, ouvir os sussurros do vento, tocar a nervura das folhas, sentir o odor das paisagens e provar o sabor das alteridades, a lei do antropófago cultural. 

Sensível demais aos desígnios que o entorna, o indígena é um alguém que de uma desapropriada maneira encanta de vida os saberes que a terra lhe provê. Para os povos originários Kuna, por exemplo, o que os europeus denominaram de América, era chamada de Abya Yala, a Terra Viva. 

Deste modo, a biblioteconomia indígena é uma composição tecida pelos saberes encantados pela vivacidade da terra e está conectada com os fluxos de conhecimento, de experiência e com a vitalidade das relações que lhes são constitutivas.

A terra é a biblioteca indígena. O corpo, seu modo de informar-se. A língua, uma maneira de documentar as estórias das humanidades das múltiplas espécies. Sandra Benites, indígena e antropóloga Guarani, narra do seguinte modo: “Nós do povo Guarani estamos dentro das palavras, para que vivas façam com que arandu (conhecimento tradicional) permaneça”, visto que, “vivemos dentro da escrita viva, pois para o ‘bem viver futuramente’ (teko porã rã) nosso modo de ser precisa falar o que vivemos e vivemos dentro das palavras e sentimos as palavras que falamos”.

As distâncias demarcadas pelas fronteiras do modo de pensar ocidental encontram-se diluídas perante o pensamento indígena. A linguagem, o corpo, a vida, o conhecimento habitam um mesmo lugar: a terra.

O livro, objeto por excelência da biblioteconomia clássica, quando perspectivado pela biblioteconomia indígena é transformado. O livro é vivo – Huna Hiwea, Livro Vivo –, como disse o pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru do povo Huni Kuĩ, e a pessoa bibliotecária terrana, para o povo Nahua mesoameríndio “en sí mismo es como un libro de pinturas”. Deus provedor da cultura e primeiro bibliotecário, Quetzalcoatl era chamado de Doador de Vida entre os Nahua, que diziam: “Tu sombreia aos que hão de viver na terra. \ Só em teu livro de pintura vivemos, \ aqui sobre a terra.” 

Em um mundo habitado por diferentes espécies de sujeitos, dotados de pontos de vista distintos, o livro não deixa de ter lugar. O que lhe ocorre é que este deixa de ser um objeto dessubjetivado para afetar-se pela alteridade radical: a vida. O que há é uma variação na natureza do livro provocada pelas transformações indígenas. O livro deixa de ser uma coisa cultural, um objeto existencialmente destacado da natureza – uma técnica cultural, diria Suzanne Briet –, para tornar-se naturalmente um corpo dotado de pessoalidade (um sujeito), que varia conforme os usos dos seus desenhos, das suas pinturas, das suas escritas grafadas nas peles e superfícies do mundo.

Por fim, para encerrar este texto, feito os modos indígenas de primazia do outro ao eu, deixo como as derradeiras palavras, um poema nahuatl pré-hispânico, escrito por uma pessoa bibliotecária forjadora de cantos, que ancestralmente nos legou uma mensagem que acredito ser muito expressiva de uma biblioteconomia indígena que reside sob as ruínas da história da colonização. Um reencontro com este saber é um dos objetivos dessa outra biblioteconomia possível que se abre para nós sob o olhar oblíquo dos povos indígenas.

O Doador da Vida é um tlahcuilo (pintor-escriba), um poeta que declara que tudo o que existe na Terra está pintado e inscrito em um amoxtli (livro) que se encontra nas mãos de quem também é Tloque Nahuaque (Dono da Cercania e da Proximidade). Em seu papel de criador, o Tloque Nahuaque é um tlahcuilo. O mundo está pintado e só existe em seu portentoso livro. Flores e cantos lhe dão vida. Mais tarde quando a vida se conclui, sua página se fecha no livro.

Acesse o artigo completo em:

MENEZES, Vinícios Souza de. Biblioteconomia Indígena: tramas encantadas pela Terra Viva. Encontros Bibli, Florianópolis, v. 28, n. Dossiê Especial, p. 1–24, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.5007/1518-2924.2023.e92861 . Acesso em: 06 mar. 2024

Sobre o autor

Vinícios Souza de Menezes

Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Sergipe. Coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Sergipe. Coordenador do Comitê de Área dos Programas de Pós-graduação das Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal de Sergipe. Pesquisador da Rede BRASOC: Sistemas de Organização do Conhecimento no Brasil.

Doutor em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia em convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estágio pós-doutoral pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) em convênio com a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal da Bahia.


Redação: Vinícios Souza de Menezes

Foto: Vinícios Souza de Menezes

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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