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v. 3, n. 4, abr. 2025
Editorial: Do território Paiterey Karah para o mundo, por Gasodá Suruí

Editorial: Do território Paiterey Karah para o mundo, por Gasodá Suruí

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Do território Paiterey Karah para o mundo

Gasodá Suruí

gasods9@gmail.com

Moro na aldeia Paiter Linha 09, a terceira maior do território indígena Paiter, fundada pelos meus tios, irmãos da minha mãe: Raimundo Nahêga e Ubajara Suruí, grandes guerreiros e conhecedores da cultura Paiter. Eles foram os grandes professores da cultura e do conhecimento Paiter em minha vida, pela qual expresso grande e profunda admiração, pelo apoio e incentivo na ausência do meu pai, que me deixou muito cedo.

Sou filho de Ikon Suruí (in memoriam), guerreiro Paiter do clã Gãmeb (marimbondo preto), e de D. Manganogan Suruí, do clã Kaban (fruta mirindiba). Sou o segundo de cinco irmãos: Luís Mopilabaten Suruí, o mais velho; Gasodá Suruí (eu); Yab-lor Suruí; Andreia Holotaba Suruí; e Gabriela Suruí.

Sou casado com Maria Leonice Tupari, indígena do povo Tupari, e pai de Mapid Eitxa Elewa Gãmeb Suruí, nome dado a ela por sua avó Manganogan Suruí, e de Oya-Pagawaron Gãmeb Suruí, nome dado ao meu filho por meu tio Ubajara Suruí (in memoriam). Eles são as maiores razões do meu viver, e sou sempre grato ao Palob por existirem em minha vida. Culturalmente, os filhos sempre seguem o grupo clânico ao qual pertence seu pai; portanto, a nossa cultura é patrilinear.

Um povo recém-contatado, como é o caso dos Paiter Suruí, para se integrar à sociedade não indígena, precisava aprender a ler e escrever para acompanhar e atualizar constantemente seus conhecimentos. Nesse sentido, em 1988, aos sete anos de idade, iniciei, pela primeira vez, minha trajetória como estudante indígena, quando fui estudar em uma escola localizada na zona rural da Linha 09, próxima à Aldeia Paiter.

Na época, não havia nenhuma escola criada no território indígena Paiter, por isso fui matriculado para começar a estudar fora da Terra Indígena. Depois disso, não parei mais; sempre quis, cada vez mais, alcançar novas etapas dos meus estudos. Assim, concluí o ensino primário, depois o ensino fundamental, médio, graduação e, posteriormente, a pós-graduação em mestrado e doutorado.

Os conhecimentos e as experiências adquiridas durante a minha caminhada me fortaleceram cada vez mais e me permitiram compreender o quanto é difícil ser indígena no Brasil hoje. Isso me motivou a perceber que é preciso aprender cada vez mais, buscar coisas novas e inovadoras, que possam se tornar ferramentas aliadas e importantíssimas na luta e na defesa pela garantia dos nossos direitos, associados à natureza.

Sempre aliei os conhecimentos ancestrais como uma ferramenta de construção, diálogo e conquista de espaços para o fortalecimento da luta pela defesa e garantia dos direitos do meu povo.

Os Paiter Suruí, assim como muitos povos indígenas de Rondônia e do Brasil, também lutaram e reivindicaram muito, por meio de suas lideranças, pela retomada e demarcação de seu território, que foi invadido logo após o primeiro contato com a colonização. E, graças à força de vontade, conseguiram demarcar e homologar o pouco que restou de seu território, onde, até hoje, continuam lutando pelo seu povo, dando continuidade aos legados de seus ancestrais.

Sou sempre grato ao Palob por ter o privilégio de ser Paiter e fazer parte deste povo guerreiro, que lutou bravamente pela demarcação de seu território e que, até hoje, luta pela valorização e preservação de sua terra e de sua cultura. Sem dúvida, essa história precisa ser reconhecida e lembrada por todas as gerações.

Após concluir minha graduação em 2009, retornar para trabalhar junto ao meu povo, integrando a diretoria da Associação Metareilá do Povo Indígena Paiter Suruí, foi um momento muito importante na minha vida. Tive a oportunidade de conhecer muitas coisas que me proporcionaram aprendizado e experiências, por meio do contato com diferentes lugares, culturas e modos de vida, em várias partes do Brasil e do mundo, sempre levando comigo a cultura do meu povo.

Assim como contribui muito com a implementação de algumas atividades importantes para o povo Paiter Suruí, destaco a elaboração do “Plano de Gestão Etnoambiental da Terra Indígena Sete de Setembro”. Trata-se de um documento valioso que apresenta diretrizes e ações para a gestão territorial e ambiental dessa Terra Indígena.

O plano apresenta medidas para a proteção da biodiversidade, o manejo de recursos naturais, a preservação de áreas sagradas e a valorização da cultura e dos saberes tradicionais dos povos indígenas. Além disso, prevê ações de articulação com outras instâncias governamentais e não governamentais, com o objetivo de implementar políticas públicas necessárias para a efetivação dos seus objetivos.

O Plano de Gestão da Terra Indígena Sete de Setembro foi um dos primeiros planos de gestão de um território indígena elaborados na Amazônia, e serviu de exemplo para outras terras indígenas no Brasil. Ele inclusive contempla o decreto da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental das Terras Indígenas – PNGATI.

Também destaco que a elaboração do Plano de Turismo Paiter da Terra Indígena Sete de Setembro, teve como objetivo levantar o potencial e a viabilidade do desenvolvimento da atividade turística no território Paiter, sempre visando ao fortalecimento da cultura, à preservação do território e à geração de renda para a comunidade indígena Paiter.

O Plano de Turismo Paiter foi desenvolvido pelo Consórcio Gãrah Itxah, que, em Tupi-Mondé, significa “unidos com a floresta”. Esse programa contou com a participação de várias instituições ambientalistas, como a Associação de Defesa Etnoambiental – Kanindé, a Equipe de Conservação da Amazônia – ECAM, o Instituto de Educação do Brasil – IEB, a Conservação Estratégica (Conservation Strategy Fund) e a Associação Metareilá do Povo Indígena Suruí. Essas instituições se uniram para elaborar projetos, buscar recursos e apoio para a implantação de diversos planos de ação junto aos povos indígenas de Rondônia e do sul do Amazonas. Esse trabalho foi financiado pela USAID – Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. As atividades da elaboração do Plano de Turismo da Terra Indígena Sete de Setembro foram desenvolvidas por meio de pesquisas, levantamentos, inventários e visitas in loco às aldeias, além da realização de oficinas e reuniões junto às comunidades, com a participação direta de homens, mulheres, jovens e lideranças.

Outra importante atividade pensada no âmbito do desenvolvimento sustentável foi o Projeto Carbono Florestal Paiter, realizado por meio da Associação Metareilá do Povo Indígena Paiter Suruí. O projeto visa combater o desmatamento na região amazônica, preservar a floresta e promover o desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas.

A iniciativa é pioneira em terras indígenas, sendo uma das primeiras a receber certificação internacional de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+). Essa certificação atesta que as emissões de gases de efeito estufa, geradas pelo desmatamento e degradação da floresta, são reduzidas por meio de práticas sustentáveis.

Durante esse trabalho, senti a necessidade de me capacitar e me qualificar cada vez mais. Sendo assim, no final do ano de 2015, precisei me afastar da Associação Metareilá para me inscrever no edital do processo seletivo de 2016 do Mestrado em Geografia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Tive a felicidade de ser classificado entre os cinco primeiros colocados em um processo de ampla concorrência, entrando para a história como o primeiro Paiter Suruí a ingressar em um Programa de Mestrado da Universidade Federal de Rondônia, o qual concluí no ano de 2018.

Minha defesa da dissertação de mestrado, intitulada: “Paiterey Karah: A terra onde os Paiterey se organizam e realizam a Gestão Coletiva do seu Território”, aconteceu na Aldeia Paiter Linha 09 – Terra Indígena Sete de Setembro, exatamente no dia 7 de setembro de 2018. Essa data foi escolhida porque marca o primeiro contato do povo Paiter com a sociedade não indígena, ocorrido em 7 de setembro de 1969. Trata-se de uma data histórica e simbólica, que traz várias recordações, sejam boas ou ruins, e que fortalece o povo até os dias atuais.

Minha pesquisa de mestrado resultou na criação do Centro Cultural Indígena Paiter Wagôh Pakob, com sede na Aldeia Paiter Linha 09, na Terra Indígena Sete de Setembro. Trata-se de uma iniciativa indígena, idealizada por mim juntamente com a comunidade da aldeia, com o objetivo de trabalhar o fortalecimento da cultura e dos conhecimentos tradicionais do povo Paiter, associados à natureza, por meio da transmissão de saberes dos mais velhos para os mais jovens da aldeia. O Centro também tem como missão a valorização, preservação e proteção do nosso território, o Paiterey Karah.

O compromisso de continuar contribuindo na luta dos povos indígenas, em especial do povo Paiter, como detentores de seus próprios conhecimentos tradicionais, do direito à terra e da cultura usados há milhares de anos – muito antes do contato com a sociedade não indígena – me motivou a buscar ainda mais qualificação e capacitação. Por isso, me inscrevi no processo seletivo do doutorado em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Rondônia, no ano de 2019.

Após concluir algumas disciplinas da parte teórica da minha pesquisa, esforcei-me ao máximo para entender e compreender a linguagem portuguesa, especialmente os termos técnicos e científicos. Embora tenha enfrentado dificuldades, tentei superá-las com o uso do dicionário, pesquisas na internet, no Google Earth, e com o apoio e incentivo do meu orientador, tanto nas pesquisas teóricas quanto práticas. Esses fatores contribuíram muito para vencer os obstáculos ao longo da pesquisa.

Nunca imaginei que viria pela frente um dos maiores desastres enfrentados pela humanidade: a pandemia da Covid-19. Eu estava me preparando para iniciar a pesquisa de campo nas aldeias Paiterey quando essa doença maldita e invisível apareceu, impactando o mundo inteiro e tirando a vida de milhares de pessoas.

Esse foi um momento de muita reflexão para mim, como ser humano. Busquei explicações e procurei entender o sentido da vida e por que o mundo estava passando por um momento tão difícil e assustador. Para se proteger da doença, as pessoas tiveram que adotar métodos de isolamento, sem poder ter contato com outras pessoas, visitar familiares em suas casas, outras aldeias ou até mesmo se deslocar até as cidades.

Fiquei isolado em minha casa, na aldeia, juntamente com minha esposa e meus dois filhos, sem sair do lugar. Para mim, esse tempo foi muito assustador, e quase não consegui aproveitar nada para desenvolver minha pesquisa. Quando a Covid-19 chegou à nossa comunidade, tivemos que sair da aldeia e nos isolar por seis meses no Centro Cultural Wagôh Pakob, no meio da floresta, no território Paiter.

Mesmo em isolamento, isso não impediu que os Paiter adoecessem. Muitos foram infectados; algumas pessoas resistiram, enquanto outras perderam a vida para a doença. Nem mesmo esse momento difícil fez com que ficássemos parados no tempo. Graças ao avanço das tecnologias modernas nas aldeias, também tive conquistas importantes nesse período desafiador, que me ajudaram a manter a motivação e a me fortalecer ainda mais.

Fui convidado pelo cientista brasileiro Carlos Nobre para participar do grupo de pesquisa “Painel Científico para a Amazônia” (SPA – sigla em inglês para Science Panel for the Amazon), uma iniciativa global das Nações Unidas em parceria com a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável (SDSN) e a Academia Brasileira de Ciências. O SPA é formado por mais de 240 cientistas e pesquisadores renomados dos oito países amazônicos. A ideia do Fórum teve início em uma reunião realizada em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, em setembro de 2019, com a participação de 40 pesquisadores do Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Guiana Francesa e outros países da região amazônica.

Como indígena e pesquisador, membro do PPGG/UNIR, consegui contribuir para a produção científica por meio da participação em vários encontros, seminários, workshops e congressos em níveis regional, nacional e internacional. Também colaborei com a publicação de artigos em anais de eventos e participei da publicação de livros na área de Geografia Humana e Cultural.

Em abril de 2024, finalmente defendi minha tese de doutorado, intitulada: GÃRAH ETER ESA DENA PAITER EWE ITXAWE ESAME ALAIR TIGÃ KABI XIWEY TXAWA IN ANI É – “A natureza como representação simbólica no modo de vida Paiter e suas interações na territorialidade”. Tenho certeza de que minha pesquisa de doutorado em Geografia será de grande importância tanto para o meu povo Paiter Suruí quanto para a academia científica em geral, especialmente para as pessoas que desejam entender e aprender mais sobre os povos indígenas, em especial o povo Paiter Suruí. Que a compreensão das espacialidades, territorialidades e, acima de tudo, da relação dos povos indígenas com a Mãe Natureza, por meio da sabedoria e do conhecimento ancestral Paiter, seja herdada de geração em geração, como sempre foi em todos os momentos da nossa história.

No ano de 2024, tive mais uma conquista importante em minha vida — e inédita para a história dos povos indígenas de Rondônia — quando fui chamado, em janeiro, e nomeado no dia 2 de abril como o primeiro Superintendente da Superintendência Estadual dos Povos Indígenas no Governo do Estado de Rondônia, pelo nosso governador Coronel Marcos Rocha.

A Superintendência Indígena foi criada no início do segundo mandato do governador com a finalidade de cooperar, dar assistência, intermediar, implementar e desenvolver políticas voltadas aos povos indígenas em Rondônia. Suas atribuições incluem a elaboração e execução de políticas governamentais para promover programas e projetos de integração dessas populações, incentivando a participação da sociedade civil por meio de diálogo contínuo, respeitando suas práticas, identidades e diversidades.

Nossos anciãos e conhecedores dos saberes tradicionais já nos diziam que nada nesta vida é fácil. Tudo o que nós, seres humanos, conseguimos alcançar e conquistar deve ser com base na luta, coragem e determinação — mas, acima de tudo, mantendo sempre a nossa fé no grande Palob.

Assim tem sido o sentido da minha vida: acreditar sempre. Nunca desistir. Pois a luta é grande.

Sobre o autor:

Gasodá Suruí

Indígena do povo Paiter, conhecido como os Suruí de Rondônia. Superintendente da Superintendência Estadual dos Povos Indígenas de Rondônia. Fundador do Centro Cultural Paiter. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Geografia, Natureza e Territorialidades Humanas (GENTEH) da Universidade Federal de Rondônia.

Mestre e doutor em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia. Bacharel em Turismo pela Faculdade São Lucas de Porto Velho. 


Redação: Gasodá Suruí

Foto: Gasodá Suruí

Revisão: Pedro Ivo Silveira Andretta

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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