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v. 2, n. 8, ago. 2024
Patrimônio em discussão: desafios para o século XXI, por Giulia Crippa

Patrimônio em discussão: desafios para o século XXI, por Giulia Crippa

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Patrimônio em discussão: desafios para o século XXI

Giulia Crippa

giulia.crippa69@gmail.com

Desde minha infância, ainda sem percebê-lo, encontrei-me envolvida nas histórias dos povoados da minha cidade e de seus arredores: Fornovo, pequena cidade a 20 km de Parma, foi o lugar onde Carlos Magno encontrou Alcuíno, o monge destinado a tornar-se famoso por sua atuação na unificação cultural do Sagrado Império Romano, e qualquer história sobre escrita, livros e bibliotecas não deixa de nomeá-lo.Ao lado da majestosa edificação do Batistério de Parma, encontra-se um palacete com uma placa, lembrando que naquele lugar nasceu, no século XIII, o maior cronista da cidade, Frei Salimbene de Adam, um franciscano que, ao longo de sua vida, conheceu o imperador Frederico II e o rei de França, o futuro São Luís dos Franceses, durante uma viagem à Terra Santa. Ele deixou uma obra, parcialmente mutilada, a Chronaca, em que relata seus tempos e costumes. Salimbene era alguém que encontrava, na esquina de casa, o canteiro da construção da catedral do Mestre Antelami, e dessa história eu mesma participo ainda hoje, transitando pelas ruelas do centro. De certa maneira, meu cotidiano se sobrepõe ao deles.

Eram as últimas décadas do século XX, ainda não tinha acabado a Guerra Fria, as tecnologias eram analógicas e o telefone tinha cabos. O turismo era ainda limitado às cidades mais conhecidas, como Roma, Veneza, Florença, enquanto as menores, como a minha, por quanto ricas em passado, eram bastante longe dos mapas das visitações.

Assim, o que era designado como patrimônio pertencia, de fato, ao cotidiano dos moradores das muitas cidadezinhas, burgos e vilarejos, sem que tivessem, muitas vezes, indicações ou placas ou, como aconteceu, com a virada do milênio cada vez mais, bilhetes a serem pagos para visitá-lo. Visitar os lugares da história era possível sem grandes ônus financeiros: o que era necessário era fornecer às pessoas as ferramentas para se apropriar delas. Por quanto o patrimônio fosse um reflexo de uma parte de sociedade — que ditava sua hegemonia cultural — havia a percepção de que se tratava de memória comum, pública, coletiva. Nessa perspectiva, por quanto implicasse lutas para o reconhecimento de outras culturas até então marginalizadas, havia a possibilidade de desenvolver dialéticas que levassem à inclusão de novos bens culturais ou que destacassem a parcialidade das narrativas que sustentavam as modalidades de se falar de tais bens.

O patrimônio, entendido como elaboração conceitual, era algo a que se dedicavam principalmente arquitetos e historiadores da arte, que dirigiam suas atenções principalmente para a preservação de edificações, monumentos e objetos — por eles escolhidos e chamados patrimônios históricos e culturais. Ainda que sua valorização fosse considerada, principalmente no quadro da educação, não havia, de fato, uma discussão ampla sobre esse tema. Nas últimas décadas do século XX, a preocupação com a disseminação desses patrimônios, que apareciam definidos e estáveis em sua constituição, começa a despontar como questão central, na medida em que cada vez mais pessoas adquirem a mobilidade que lhes permite visitar lugares históricos, museus e monumentos, graças ao incremento do fenômeno do turismo de massa. Em função disso, abriu-se um caminho de verdadeira “multiplicação” dos sítios considerados patrimônio no mundo inteiro e, ainda, definiu-se uma nova tipologia, o chamado patrimônio imaterial.

No Brasil começa-se a falar em patrimônio em termos concretos com os modernistas (Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, entre outros) que, acompanhados por Blaise Cendrars, visitaram as paisagens históricas de Minas: algo pouco interessante, para eles, que as viam como uma mera imitação sem valor do que era feito na Europa. O valor “simbólico” atribuído a estes lugares era escasso ou nulo. É consenso histórico que foi o olhar do estrangeiro, Cendrars, que estimulou os intelectuais brasileiros a refletir de forma renovada sobre estes lugares, edificações e artefatos e, a partir de então, observa-se com clareza uma trajetória que busca modelizar os patrimônios brasileiros.

Ao lado das discussões sobre preservação do patrimônio, na virada para o século XXI, observa-se como o papel por ele desempenhado se torna cada vez mais central em relação ao turismo, cuja indústria impulsionou o desenvolvimento de patrimonialização de cada vez mais lugares e objetos  por parte das instituições.

A adoção da “Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural”, de 1972, revela já seu entrelaçamento com o incremento do fenômeno do turismo de massa. É claro que, funcionando como atestado de “garantia da autenticidade” de um lugar, de um monumento e, em tempos mais recentes de práticas imateriais, o rótulo propiciado pelas instituições entra em sinergia com a indústria turística, que pode assim lucrar com o “valor de mercado” da autenticidade, como também é óbvio que o rótulo de patrimônio não é causa do turismo: trata-se, porém, de uma certificação de legitimação que vai de encontro às necessidades simbólicas dos viajantes. 

Turismo e patrimônio institucionalizado constituem um mecanismo de reforço recíproco, em que o rótulo de patrimônio confere ao turismo os títulos de autenticidade, consagrando a transição de um lugar, de um monumento, de uma paisagem, da maneira como se encontra, para as futuras gerações e, ao mesmo tempo, em nome da preservação, consente a exploração devastadora produzida pela própria indústria turística. Ainda que nunca tenha havido uma antítese entre preservação e lucro, entre cultura e turismo, o que esse fenômeno provoca é a legitimação cultural da indústria do turismo, quando promove a preservação daqueles monumentos e lugares que ela própria está destruindo. 

O rótulo de patrimônio universal, conferido pela Unesco como estágio último e que bem sintetiza este processo, abriu, para a indústria turística, novos “territórios” a serem explorados: cidades e sítios monumentais que estão à espera de se tornar parques temáticos, danças e comidas à espera dos visitantes curiosos, práticas populares cada mais à venda em pacotes com preços mais ou menos acessíveis.

Se, de um lado, o turismo pode beneficiar novos setores sociais e comunidades até pouco tempo atrás excluídas dos processos econômicos da globalização, é bom lembrar que essa associação entre business e cultura pode levar a novos problemas, como o chamado overtourism[1] ou, ainda, onde somente essa economia é incentivada, a uma forma de monocultura turística, que revela sua fragilidade em tempos de crise — como se observou durante a pandemia de COVID-19, quando a cadeia de suprimentos entrou em crise devido aos lockdowns.

Outra questão que deve ser considerada perante o uso do patrimônio em função da indústria do turismo é o próprio “relato” do bem cultural oferecido para essa tipologia de visitação. De fato, vender aos turistas aquilo que, em termos de definição clássica, constitui a identidade de um povo, de uma nação, de uma comunidade, implica transformar os próprios princípios identitários em mercadorias. Isso obriga a discutir de maneira renovada os elementos que eram considerados a base da memória coletiva. De fato, se o acesso aos bens culturais é possível, em muitos lugares do mundo, somente através do pagamento de um bilhete de entrada, sua função de colante social se esvai, reconfigurando os valores que atribuímos ao próprio patrimônio.

Vale lembrar, também, que os fluxos turísticos, para serem mantidos, devem satisfazer as expectativas de pessoas que provêm dos lugares mais diversos. Isso significa que possuem capitais culturais e expectativas diferentes, que devem ser satisfeitas, para que a indústria continue produtiva. Isso tende a produzir uma certa homogeneização na produção das narrativas, seguindo frequentemente muito mais as diretrizes do marketing do que aquelas que, de fato, se preocupam com a multiplicidade de olhares oriundos das diferenças de classe, gênero, etnia e orientação sexual. Se, aparentemente, o interesse do turismo é de uma inclusão cada vez maior (de consumidores), de fato o uso do storytelling[2] apaga as necessidades de narrativas múltiplas, escondendo muitas vezes as histórias de lutas e/ou de sofrimento atrás de relatos pacificadores, que retiram os conflitos que existem, sempre, na base dos patrimônios, em favor de sua estetização. Como já percebia Walter Benjamin [3], porém, a estetização dos monumentos leva à passividade e, com esse ato que favorece o consumo do que é proposto como memória (com todas as suas contradições, portanto viva, em constante movimento), o Mercado nos desapropria, paradoxalmente enaltecendo-os, daqueles lugares e artefatos na base dos quais nos reconheciam como membros de uma comunidade, ou de um povo, ou de uma nação.

É à luz de tais considerações que estudar o patrimônio existente e o patrimônio em formação para o futuro, hoje, torna-se particularmente interessante, enquanto palco de novas disputas sociais e simbólicas bastante relevantes.

Notas dos editores:

[1] “Turismo em excesso”, em tradução livre.

[2] “Narração de histórias”, em tradução livre. Consiste na atividade de contar ou narrar histórias a fim de promover algo ou alguém, utilizando-se de recursos e técnicas mistas, como o audiovisual.

[3] BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1986.

Sobre a autora

Giulia Crippa

Professora do Dipartimento di Beni Culturali da Università di Bologna (Itália). Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de São Paulo. Líder do Grupo de Pesquisa do BIBLIOTHECA DISCIPLINATA, dedicado aos estudos de Bibliografia Histórica.

Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Livre Docente em Ciência da Informação pela Universidade de São Paulo. Bacharela em Lettere Moderne pela Universitá degli Studi di Bologna. Especialista em Archivistica Paleografia e Diplomatica pelo Archivio di Stato di Parma. 


Redação e foto: Giulia Crippa

Revisão e diagramação: Alex Sandro Lourenço da Silva

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