• contato@labci.online
  • revista.divulgaci@gmail.com
  • Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
v. 2, n. 8, ago. 2024
Patrimônio Cultural sem Fronteiras: desafios e oportunidades para a ampliação do conhecimento e da preservação, por Priscilla Queiroz

Patrimônio Cultural sem Fronteiras: desafios e oportunidades para a ampliação do conhecimento e da preservação, por Priscilla Queiroz

Abrir versão para impressão

Patrimônio Cultural sem Fronteiras: desafios e oportunidades para a ampliação do conhecimento e da preservação

Priscilla Régis Cunha de Queiroz

priscilla.queiroz@ufca.edu.br

Pedro Paulo Funari e Sandra Pelegrini (2006) nos convidam ao debate sobre nossas percepções sobre o patrimônio no didático livro “Patrimônio  histórico e cultural”. Como explicam os autores, o termo “patrimônio” deriva do latim “patrimonium”, originado na Roma antiga, significando tudo o que pertence ao pai e é transmitido como herança aos filhos. Na sociedade romana, esse conceito era aristocrático, patriarcal, elitista e privativo. O que podemos dizer sobre ele hoje? 

Seguindo as trilhas deixadas pelos autores, perguntamos: Quais são as primeiras imagens que vêm à sua mente quando falamos sobre patrimônio histórico? Igrejas barrocas, palácios e casarões? E os livros e os documentos, eles seriam suas primeiras escolhas para falar sobre patrimônio cultural? E quanto aos elementos da cultura indígena e africana, e a simplicidade dos modos de criar e fazer próprios da vida cotidiana?

Neste momento, e cada vez mais, comunidades em várias partes do Brasil e do mundo estão se mobilizando para preservar e valorizar aquilo que consideram seu patrimônio cultural. Estas demandas reforçam a necessidade de desconstruir a comum impressão de que o patrimônio cultural é algo distante, alheio e antigo, que se resume à “Pedra e cal”.

O conceito de patrimônio se transformou ao longo da história. Na Idade Média, com o cristianismo, ganhou caráter coletivo e simbólico. A Revolução Francesa expandiu a ideia para além da arte e do passado, incluindo a herança nacional. No pós-Segunda Guerra Mundial, o patrimônio incorporou a dimensão natural, abrangendo o meio ambiente.

Em 1972, a UNESCO unificou as dimensões culturais e naturais, reconhecendo a cultura em sua amplitude. Na década de 1980, as manifestações populares, tanto materiais quanto imateriais, ganharam destaque. Essa mudança reflete a valorização das diferenças e a busca pela preservação da identidade local em um mundo globalizado. 

O Brasil, desde o início do século XX, demonstra crescente interesse na preservação de sua história e cultura por meio da sucessiva criação de marcos legais que visam proteger o patrimônio nacional. Em 1937, o Decreto-Lei 25/1937 representou um marco histórico na legislação brasileira do patrimônio cultural, definindo o patrimônio histórico e artístico nacional como “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.

Essa definição abrangente é considerada inovadora por reconhecer a importância de proteger não apenas monumentos históricos e obras de arte, mas também bens culturais de diversas naturezas, como sítios arqueológicos, documentos históricos e manifestações culturais populares.

O primeiro Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), criado a partir desse decreto, tornou-se o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura,  responsável pela identificação, tombamento e inscrição e proteção desses bens patrimoniais, desempenhando um papel fundamental na preservação da memória e da identidade cultural brasileira. O órgão dispõe de vasta produção técnica, teórica e educativa a respeito do patrimônio disponível em seu site, vale a pena conferir.

Desde o SPHAN e o Decreto-Lei 25, o Brasil avançou na legislação do patrimônio cultural. Leis e decretos posteriores complementam e aprimoram o marco legal inicial. A Constituição Federal de 1988 foi uma baliza importante, elevando o patrimônio cultural à categoria de bem cultural da Nação e estabelecendo a responsabilidade do Estado e da sociedade em sua proteção.

A Lei Federal 9.605/1998 (Lei do Patrimônio Cultural) consolidou a legislação federal sobre o patrimônio cultural, definindo princípios, instrumentos e mecanismos para sua proteção. Os esforços de preservação abarcam o patrimônio cultural que se compõe de bens tangíveis (monumentos, documentos, obras de arte) e intangíveis (saberes tradicionais, danças, culinária), os quais traduzem a identidade, a ação e a memória da sociedade.

Em 2000, o Decreto 3.551 reconheceu a importância da cultura viva no Brasil, criando o registro de bens imateriais em quatro livros de registro (lugares, celebrações, saberes e formas de expressão). Com isso, o patrimônio imaterial ganha visibilidade e proteção.

A valorização da diversidade do patrimônio cultural contribui para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos os grupos se sintam representados e respeitados.

Entre 2015 e 2017, na cidade de Icó, no interior do Ceará, o Professor Jucieldo Ferreira Alexandre e eu coordenamos uma iniciativa de educação patrimonial chamada “Entre as páginas da história do Icó: oficinas sobre fontes históricas e educação patrimonial”, aprovada nos editais da Pró-reitoria de Extensão da UFCA. Icó tem seu conjunto arquitetônico e urbanístico tombado pelo IPHAN, em 1988.

O projeto buscou aproximar professores e alunos do Ensino Básico de manuscritos dos séculos XVIII e XIX, promovendo a valorização do patrimônio documental local e seu potencial como ferramenta pedagógica. Na oportunidade, tratamos a noção de Patrimônio documental como “conjunto de manifestações intelectuais, científicas ou artísticas [da nação, localidade ou grupo social], oriundas da atividade intelectual de seus cidadãos, materializadas através dos mais diversos suportes de registro do conhecimento humano” (Rodrigues, 2016, p. 117).

Em meu trabalho como docente dos cursos de graduação e mestrado em Biblioteconomia da UFCA, tenho tentado expandir as oportunidades de ensino, pesquisa, extensão e cultura relacionadas à salvaguarda do patrimônio e à criação e disponibilização de acervos para pesquisadores, comunidades e interessados em geral.

Em 2022, após ministrar uma disciplina optativa chamada “Cultura e Gestão da Memória Social”, frequentada por alunos dos cursos de Biblioteconomia e Administração Pública da UFCA, tive a oportunidade de refletir sobre a possibilidade de reunir jovens pesquisadores de diferentes cursos em torno de uma problemática comum.

Como resultado das trocas e debates realizados no âmbito da disciplina, foi traçada uma estratégia de pesquisa com foco em atender às demandas de uma comunidade remanescente quilombola da cidade de Jardim, no sul do Ceará, no Nordeste brasileiro.

Na época, com o objetivo de promover a curricularização da cultura, a UFCA, por meio das ações da Pró-Reitoria de Cultura, lançou um edital para fomentar atividades culturais promovidas por seus discentes e docentes. A partir do escopo do edital, que privilegiava a relação entre as mais diversas áreas do conhecimento e a cultura da Região do Cariri cearense, submetemos uma proposta de atividade que versava sobre cultura, patrimônio, memória e identidade; assim nasceu o projeto de cultura “Quilombo Mulatos: narrativas quilombolas, tradição oral, memória e patrimônio cultural”.

O Projeto Quilombo Mulatos, sob minha coordenação, buscou registrar as memórias da comunidade da Serra do Boca, no Ceará, para construir um acervo sobre a cultura quilombola na Região do Cariri.

Composto por alunos de Biblioteconomia e Administração Pública, o projeto mapeou as expressões materiais e imateriais da cultura quilombola local, utilizando a História Oral como metodologia para promover uma formação acadêmica interdisciplinar e engajada na valorização da memória social e do patrimônio cultural.

O projeto contribuiu para a construção da identidade da comunidade quilombola da Serra dos Mulatos, reconhecida como área quilombola autodeclarada pela Fundação Cultural Palmares em 2021. A iniciativa demonstra o valor da pesquisa e da extensão universitária na preservação da memória e da cultura afro-brasileira. Para dar conta da problemática interdisciplinar, foi necessário pensar coletivamente sobre os conceitos de patrimônio cultural e memória.

No âmbito dos trabalhos do projeto de cultura na comunidade Mulatos, buscamos abordar os conceitos utilizados na pesquisa de forma a não limitar suas definições. Em vez disso, eles se transformam em ferramentas dinâmicas, moldadas pelo diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento. Essa fluidez conceitual permite a construção de novas compreensões. No percurso, nos preocupamos com métodos e instrumentos em convergência.

Em 2023 e 2024, o esforço do projeto Quilombo Mulatos se desdobrou em outros dois projetos, buscando apoiar a construção do museu comunitário da comunidade Mulatos. Um dos discentes envolvidos no Projeto, proveniente do curso de  administração pública, ingressou no Mestrado profissional em Biblioteconomia com a proposta de criação de museu virtual para a comunidade remanescente quilombola de Jardim.

Nesse sentido, destaco a potência de iniciativas de pesquisa interdisciplinares e transdisciplinares envolvendo informação, patrimônio e memória com foco na garantia do direito à memória, na problematização e salvaguarda do patrimônio cultural, abordando os desafios das organizações da sociedade civil na gestão da memória coletiva.

O Mestrado Profissional em Biblioteconomia da UFCA se destaca pela interdisciplinaridade, abordando questões históricas, conceituais, políticas, institucionais e práticas da área. O programa oferece duas linhas de pesquisa:  Informação, Cultura e Memória e Produção, Comunicação e Uso da Informação. A primeira linha, da qual faço parte, explora a intersecção entre informação, cultura e memória, com foco na preservação da memória social e na valorização da diversidade cultural.

As universidades brasileiras têm um papel importante na construção e implementação de ações em prol da gestão da memória social, buscando a aproximação com grupos, organizações públicas e privadas, e pessoas interessadas na valorização da memória e da história dessas comunidades.

Referências:

FUNARI, P. P.; PELEGRINI, S. C. A. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

RODRIGUES, M. C. Patrimônio documental nacional: conceitos e definições. Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, v. 14, n. 1, jan./abr. 2016, p. 110-125. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rdbci/article/view/8641846/pdf . Acesso em: 24 mai. 2024.

SANTANA, F. W. S. F.; QUEIROZ, P. R. C. Memória social dos quilombos do Cariri: um acervo virtual em construção. Páginas A&B: arquivos e bibliotecas, Porto, p. 280–292, 2023. Disponível em: https://ojs.letras.up.pt/index.php/paginasaeb/article/view/13146 . Acesso em: 24 mai. 2024.

Sobre o autor:

Priscilla Régis Cunha de Queiroz

É professora no Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Cariri. Professora do Programa de Pós-Graduação em Biblioteconomia da Universidade Federal do Cariri. Membra do grupo de pesquisa GRUPO MAPA – Memória, Acervos e Patrimônio da Universidade Federal do Cariri.

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Mestra em História Social pela Universidade Federal do Ceará. Licenciada em História pela Universidade Federal do Ceará.


Redação e Foto: Priscilla Régis Cunha de Queiroz

Diagramação: Jônatas Silva dos Santos

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »
Pular para o conteúdo