Editorial: As formas dos textos e o ofício dos bibliotecários, por Roger Chartier
As formas dos textos e o ofício dos bibliotecários
Roger Chartier
chartier@history.upenn.edu
O meu último livro publicado pela Editora Unesp, “Mapas e ficções”1 é uma contribuição para reflexão dedicada aos efeitos produzidos pelas modalidades da inscrição dos textos. “As formas efetuam o significado” (Forms effect meaning), escreveu D. F. McKenzie2 para enfatizar o papel essencial desempenhado pelos “elementos não verbais” do livro na produção do significado do texto para os leitores, para os editores e para os próprios autores. Nos livros impressos, essa materialidade é composta por diferentes elementos. Em primeiro lugar, o formato, como demonstra de forma espetacular na Inglaterra o contraste entre a primeira publicação de peças de teatro ou poemas nos modestos e frágeis pamphlets3 in-quarto, não encadernados, e a canonização de certas obras, tal como as peças de Shakespeare em 1623, no imponente formato fólio, o da Bíblia, das crônicas e dos clássicos.
Outro elemento não verbal importante é a escolha do tipo de letra. Nada mostra isso melhor do que as edições bilíngues ou multilíngues. As edições das traduções do “Libro del Cortegiano”, a francesa em 1580 e a inglesa em 1588, adotaram o mesmo layout de três colunas, com o texto italiano em itálico, o texto francês em romano e o texto inglês em gótico, a black letter que “nacionalizou” os textos impressos.
A disposição dos textos na página também modifica o processo de construção de seu significado. Henri-Jean Martin4, por exemplo, enfatizou os efeitos produzidos pela introdução de parágrafos nos livros franceses do século XVII, o que tornou visível uma lógica da palavra impressa que era diferente do fluxo ininterrupto, semelhante ao da fala, das páginas sem espaços em branco.
As diferenças na pontuação fazem parte dessa mesma mudança, quando as exigências da gramática modificam a pontuação que transcrevia ou orientava a voz do leitor. Em um magnífico ensaio, Yves Bonnefoy fez uma distinção clara entre esses dois tipos de pontuação: “aquela que é exigida pela sintaxe e que, portanto, tende a coincidir com as estruturas do pensamento, e aquela que entende as necessidades da voz ou para destacar ritmos e sons; em suma, não para pensar, mas para seduzir”5. As sucessivas modernizações gramaticais e sintáticas da pontuação de textos dos séculos XVI e XVII apagaram as marcas de oralidade ou musicalidade de suas primeiras edições, tanto pela duração das pausas quanto pela intensidade das palavras (por exemplo, o uso de letras maiúsculas para indicar palavras que deveriam ser acentuadas).
As práticas das bibliotecas, amiúde, apagaram outra modalidade da materialidade das obras: sua coexistência com outros textos na mesma encadernação. Como Armando Petrucci demonstrou, as miscelâneas, que reuniam vários textos em um único códice, eram a forma dominante de conservação e circulação de obras em língua vulgar na era do livro manuscrito, sendo o “libro unitário” próprio das obras canônicas, clássicas ou jurídicas. Essa prática persistiu durante os tempos modernos. Assim, as peças ou poemas shakespearianos in-quarto estavam encadernados com as obras de outros escritores em livros cujo princípio unificador não era o nome do autor, mas um tema comum (a vida e a morte de reis), um gênero (por exemplo, a tragicomédia) ou uma estética (por exemplo, uma inspiração ovidiana). Essas proximidades produziam uma verdadeira intertextualidade material e davam a cada um dos textos significados que foram apagados quando os bibliófilos ou bibliotecários desvincularam as miscelâneas e separaram os vizinhos de encadernação.Nas minhas recentes investigações, recopiladas no livro “Editar e traduzir”6, a atenção sobre as mutações do sentido das obras produzidas pelas transformações de sua materialidade não pode se separar da análise das outras razões que explicam a mobilidade dos textos ou a pluralidade dos textos para uma “mesma” obra: assim, o regime de atribuição dos escritos, entre nome de autor e anonimato, ou as variantes textuais, introduzidas pelo próprio autor ou os editores, ou migrações das obras entre gêneros ou entre linguagens.
Os estudos que dediquei às peças de Shakespeare, a Don Quixote, a Gracián, Las Casas ou Castiglione são todos inspirados pela tensão entre, para citar David Scott Kastan7, uma concepção “platônica” das obras, que supostamente transcendem todas suas possíveis encarnações, e a realidade “pragmática” que descreve a estreita relação que existe entre a construção do significado das obras e as formas de sua publicação e recepção. Daí a importância decisiva das tarefas e dos trabalhos dos bibliotecários e bibliotecárias que protegem os textos nas suas formas sucessivas, que descrevem sua materialidade e que permitem o encontro dos pesquisadores com os textos do passado nas formas em que foram lidos (e que não eram a tela de um computador).
Notas dos Editores
[1] Chartier, R. Mapas e ficções: séculos XVI e XVII. São Paulo: Unesp, 2024. Disponível em: https://editoraunesp.com.br/catalogo/9786557112380,mapas-e-ficcoes . Acesso em: 01 jul. 2024.
[2] Donald McKenzie (1931-1999) foi um historiador e bibliógrafo da Nova Zelândia, conhecido por sua abordagem sociológica da bibliografia, que considera os livros como objetos materiais em contextos sociais. Ele lecionou na University of Oxford.
[3] “Panfletos”, em português-brasileiro.
[4] Henri-Jean Martin (1924-2007) foi um historiador francês que estudou a história do livro e da imprensa, co-autor de “L’Apparition du Livre“. Trabalhou na Bibliothèque Nationale de France e lecionou na École Nationale des Chartes.
[5] Ver também:
BONNEFOY, Yves. Traduire la poésie. In: BONNEFOY, Yves (Ed.) Entretiens sur la poésie. Paris: Mercure de France, 1990.
[6] CHARTIER, R. Editar e traduzir: mobilidade e materialidade dos textos (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Unesp, 2022. Disponível em: https://editoraunesp.com.br/catalogo/9786557111451,editar-e-traduzir . Acesso em: 01 jul. 2024.
[7] David Scott Kastan é professor na Yale University e contribuiu com edições e comentários críticos das obras de Shakespeare.
Sobre o autor
Professor emérito do Collège de France, titular da disciplina “Écrit et cultures dans l’Europe moderne” (2007-2016). Professor catedrático da École des hautes études en sciences sociales. Dirigiu com Henri-Jean Martin a Histoire de l’édition française, em quatro volumes. Autor das obras: “A aventura do livro – do leitor ao navegador” (Unesp, 1998); “Práticas de leitura” (Liberdade, 2001”); “Os desafios da escrita” (Unesp, 2002); “Leituras e leitores na França do Antigo Regime” (Unesp, 2004); “Inscrever & apagar” (Unesp, 2007); “A mão do autor e a mente do editor” (Unesp, 2014) e “Editar e traduzir” (Unesp, 2022).
Formado em Educação na École normale supérieure de Saint-Cloud. Licenciado e Mestre em História pela Sorbonne University.
Foto: Cecília Bastos/USP Imagens e Internet Archive
Revisão, Diagramação e Notas: Alex Sandro Lourenço da Silva e Pedro Ivo Silveira Andretta