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Questões de gênero e os desafios na representação do conhecimento, por Nathália Romeiro
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Questões de gênero e os desafios na representação do conhecimento
Nathália Lima Romeiro
ntromeiro91@gmail.com
A palavra “gênero”, gramaticalmente, indica um tipo de classificação, uma forma de estabelecer um lugar, nomear e agrupar por similaridade ou diferença. Extrapolando a dimensão da linguagem, gênero torna-se, em uma perspectiva sociológica, um termo guarda-chuva: uma categoria para a análise de diversas questões que afetam as relações sociais, tanto na esfera íntima quanto na coletiva.
Isso envolve corpo, prazer, relacionamentos, diferenças sexuais, identidades, práticas sexuais, performances, tecnologias, relações de poder, empoderamento, controle e subversão, entre outras possibilidades discursivas. Mas o que, de fato, é gênero e o que mobiliza na prática? De que maneira os Estudos de Gênero podem iluminar as nuances do tratamento e da conceituação de gênero na representação da linguagem?
Encontrar respostas para essas perguntas pode ser uma das tarefas mais complexas para quem pesquisa o assunto na Biblioteconomia e Ciência da Informação.
Uma das principais preocupações desse campo envolve a organização do conhecimento, que consiste em designar um lugar para cada coisa, conceituar e classificar de forma a tornar o objeto ou conhecimento recuperável, promovendo mais representatividade e acessibilidade. Não é por acaso que uma das primeiras ideias que inspiraram minha pesquisa de tese foi categorizar as temáticas que mobilizam o gênero, com a certeza de que isso era maior do que uma análise sobre as diferenças sexuais e o espectro da sexualidade.
Contudo, quanto mais eu tentava criar e agrupar categorias relacionadas a identidades de gênero, sexualidade, práticas sexuais e movimentos sociais, mais percebia que essas categorias poderiam limitar a compreensão desejada. No contexto brasileiro, as questões de gênero são atravessadas por questões de colonialidade, que nomeio na pesquisa como colonialidade dos corpos e dos afetos.
Sob o entendimento de que toda classificação é, por natureza, arbitrária e hierárquica, observar as questões de gênero pela via da organização do conhecimento tende a identificar alguns assuntos como mais abrangentes ou específicos que outros. Essa hierarquização, por sua vez, segue uma ordem social que pode estar enviesada e não representativa. Essa situação nos leva a refletir sobre a relação entre gênero e organização do conhecimento, especialmente através do conceito de Organização Social e Crítica do Conhecimento, conforme proposto por Trivelato (2022). Esse enfoque busca lançar luz sobre temáticas e sujeitos anteriormente subalternizados em sistemas de organização do conhecimento.
Para aprofundar essa análise, Raewyn Connell (2016) nos ajuda a compreender a diversidade de temáticas relacionadas às questões de gênero, ao caracterizá-las como uma experiência cotidiana, constantemente disputada nas micro e macroestruturas sociais. As pesquisas sobre gênero, por muito tempo, focaram na distinção entre aspectos biológicos (sexo) e processos de socialização (gênero).
Esses estudos ganharam destaque com o movimento feminista, que, embora não exclusivo, se tornou uma via crítica à opressão de gênero, lutando por direitos civis como o voto e o acesso à educação. A “primeira onda” do feminismo abordou essas questões iniciais, enquanto a “segunda onda” ampliou a discussão para os direitos reprodutivos, contestando a visão tradicional das mulheres como responsáveis pela procriação. Com a chegada da “terceira onda”, as reivindicações se ampliaram para incluir identidades além da dicotomia cisgênero, enriquecendo assim o diálogo sobre gênero.
Autoras como Joan Scott (2012), Geni Núñez (2023) e Judith Butler (2024) explicam que o termo “gênero” foi adotado academicamente por feministas como uma estratégia política para abordar a organização social da relação entre indivíduos de diferentes características sexuais, sendo, à época, considerado um termo menos controverso que feminismo. Isso permitiu um alargamento da compreensão do conceito, diversificando as questões de gênero a partir de outros movimentos sociais, como o LGBTQIAPN+, que visam alcançar mais liberdade de expressão de suas identidades, incluindo seus corpos e afetos.
Assim, o conceito de gênero também se expandiu para incluir dimensões étnico-raciais e estudos queer, destacando a interseccionalidade como uma lente teórica que evidencia o protagonismo de indivíduos anteriormente marginalizados.
Na minha pesquisa de tese, a problematização sobre gênero abrange questões que atravessam a vida cotidiana. Gênero faz parte da vida de qualquer pessoa, desde antes do nascimento até após a morte, pois estamos imersos em um sistema sexo/gênero, onde o gênero se constrói em um processo de socialização. Nessa via argumentativa, o enfoque era desvendar como “gênero” e assuntos correlatos são definidos em tesauros especializados, integrando as perspectivas dos Estudos de Gênero e da Organização do Conhecimento.
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Para isso, gênero foi contextualizado para além das rígidas categorias de binaridade e heteronormatividade. Ou seja, a partir dos tesauros — instrumentos de organização do conhecimento cujo objetivo é conceituar e hierarquizar termos — investigou-se se as definições de gênero ressoam com as abordagens de Decolonialidade e Interseccionalidade, reconhecidas como importantes lentes teóricas para a compreensão das questões de gênero em um contexto colonizado (Romeiro, 2024).
Com uma abordagem qualitativa, a pesquisa utilizou métodos bibliográficos e de análise de conteúdo para explorar o material coletado. Nesse sentido, as lentes teóricas da Decolonialidade e da Interseccionalidade foram cruciais para interpretar os dados, permitindo uma análise crítica da hierarquização das questões de gênero nos tesauros.
Os resultados revelaram uma realidade instigante: embora alguns tesauros adotem uma perspectiva interseccional, a crítica decolonial ainda é incipiente. Isso evidencia a urgência de atualizar ou criar novos tesauros que incorporem essas abordagens teóricas, enriquecendo a representação de gênero e promovendo uma compreensão mais inclusiva nas discussões acadêmicas e sociais.
A decolonialidade, por sua vez, é uma perspectiva que permite questionar as estruturas de poder que moldam a produção e a organização do conhecimento, destacando a influência de contextos históricos e sociais coloniais. Ao aplicar a decolonialidade, a pesquisa revelou que muitos tesauros ainda refletem uma visão hegemônica e eurocêntrica, limitando a representação de identidades de gênero e sexualidade que não se enquadram nas normas tradicionais.
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A análise crítica possibilitou identificar lacunas e preconceitos nas definições de gênero, apontando para a necessidade de uma atualização que inclua vozes e experiências marginalizadas, como as de comunidades não brancas (negras, indígenas e amarelas) e da população LGBTQIAPN+. Além disso, o estudo suscitou uma reflexão sobre a linguagem utilizada nos tesauros, evidenciando como ela pode perpetuar estigmas e reforçar hierarquias sociais.
Por fim, a pesquisa é apresentada não apenas como uma contribuição para a Biblioteconomia e a Ciência da Informação, mas também como um convite à reflexão sobre a representação e organização do conhecimento sobre questões de gênero. Destaca-se a importância de revisitar e reestruturar as categorias de conhecimento existentes, impulsionando tanto a comunidade acadêmica quanto a sociedade em geral a construir e expandir esse diálogo. Essa abordagem é fundamental para transformar a forma como entendemos e abordamos questões de gênero em um mundo que cada vez mais busca meios para alcançar a justiça social.
Referências:
BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero?. São Paulo: Boitempo, 2024.
CONNELL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: InVersos, 2016.
NÚÑEZ, Geni. Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar. São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
ROMEIRO, Nathália Lima. Conceituação e hierarquização das questões de gênero em tesauros: um estudo ancorado na organização social e crítica do conhecimento em diálogo com a interseccionalidade e decolonialidade. 2019. 303 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/75958 . Acesso em: 15 dez. 2024
SCOTT, Joan. Os usos e abusos do gênero. Projeto História, São Paulo, v. 3, n. 45, p. 327-351, 2012.
TRIVELATO, Rosana Matos da Silva. A luta das mulheres tem muitos nomes: os sistemas de organização do conhecimento frente a uma emergência conceitual. 2022. 234 f. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Escola de Ciência da Informação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022. Disponível em: http://hdl.handle.net/1843/55619 . Acesso em: 15 dez. 2024.
Sobre a autora:
Professora do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Integra o grupo de pesquisa: Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Recursos, Serviços e Práxis Informacionais (NERSI) da Universidade Federal de Minas Gerais.
Doutora em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Licenciada em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Redação e Foto: Nathália Lima Romeiro
Diagramação: Jônatas Silva dos Santos