• contato@labci.online
  • revista.divulgaci@gmail.com
  • Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
v. 2, n. 11, nov. 2024
Entrevista com Amanda Ganimo sobre sua pesquisa que discutiu a oralidade como fonte de informação dentro de quilombos urbanos

Entrevista com Amanda Ganimo sobre sua pesquisa que discutiu a oralidade como fonte de informação dentro de quilombos urbanos

Abrir versão para impressão

Entrevista com Amanda Ganimo sobre sua pesquisa que discutiu a oralidade como fonte de informação dentro de quilombos urbanos

Amanda Carla Ganimo do Nascimento

amanda.ganimo@ufpe.br

Sobre a entrevistada

A bibliotecária e recém mestre Amanda Carla Ganimo do Nascimento defendeu, em 2023, sua dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco, sob orientação da Profª Drª Leilah Santiago Bufrem.

Natural de Pernambuco, Amanda tem como hobbies ir à praia e viajar. No âmbito profissional, atua como bibliotecária na Universidade Federal de Pernambuco, onde também se graduou em Biblioteconomia.

Sua dissertação, intitulada “A nossa história contada em primeira pessoa: a oralidade como fonte de informação para continuidade da memória e produção de conhecimento dentro de quilombos urbanos” discorre sobre o privilégio epistêmico ocidental europeu, revela o epistemicídio sofrido pelos descendentes da diáspora africana e o apagamento das suas construções e contribuições. Dessa forma, analisa a contribuição da oralidade para a construção do conhecimento e a continuidade da memória coletiva dentro de quilombos urbanos resultantes da diáspora africana. Para tanto, foram realizadas entrevistas nos quilombos: Centro Cultural Quilombo do Catucá – Camaragibe/PE, Maracatu Leão Coroado – Olinda/PE e Mestre Naná de Santana – Recife/PE.

Convidamos Amanda para nos relatar sua experiência no mestrado, seus planos para o futuro.

Divulga-CI (DC): O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação?

Amanda Ganimo (AG): Eu sempre alimentei a ideia, transmitida pela minha família, de que a educação é uma base fundamental para o nosso desenvolvimento. A continuidade na vida acadêmica sempre foi importante para mim, mas, após a graduação, o trabalho se tornou uma prioridade, especialmente para nós, que viemos de famílias negras de baixa renda. Trabalhei na minha área e fui aprovada como bibliotecária na UFPE. Com essa conquista, os antigos sonhos de fazer um mestrado ressurgiram. No entanto, fiquei em dúvida sobre o tema, já que estava afastada da academia há algum tempo. Para me reconectar, cursei uma disciplina como aluna especial, o que ampliou minha perspectiva, mas foi o meu envolvimento com os coletivos culturais negros e o movimento social negro que me inspirou de verdade. Os quilombos e suas histórias me mostraram o caminho. Uma lembrança marcante foi a Loa cantada por Mãe Elaine e Moa dos Anjos, do Quilombo do Catucá, que me ajudou a definir minha dissertação: “De cabeça em cabeça, antes que a matéria vire pó, eu vou passar para outra cabeça o que aprendi com a minha vó.” Isso me fez perceber que eu deveria levar essa inspiração para a Ciência da Informação.

DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?

AG: Acredito que os principais beneficiários dos resultados alcançados serão a sociedade em geral. Especialmente, espero que esse trabalho influencie futuras discussões e promova avanços sociais, políticos, econômicos e informacionais, beneficiando tanto a comunidade acadêmica, pesquisadores em CI, quanto a população em geral. Contudo, gostaria de enfatizar que, por ser inspirado pela população negra, este trabalho busca alcançar principalmente essa comunidade, em especial aquelas presentes em quilombos, que estão sempre lutando pelo fortalecimento da nossa identidade, cultura e memória. De certo modo, espero que o resultado dessa pesquisa beneficie principalmente essas pessoas. Uma forma de ampliar esses resultados foi a produção de um documentário baseado nesse estudo, chamado “A nossa história contada e cantada em primeira pessoa“, que está disponível gratuitamente no YouTube.

DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade? 

AG: As principais contribuições da minha dissertação para a ciência, tecnologia e sociedade estão na valorização dos saberes tradicionais e na ampliação do conceito de conhecimento científico. Um dos pontos mais relevantes é a luta pela “descolonização do conhecimento”. Ao explorar a oralidade e as práticas culturais das comunidades quilombolas, proponho uma visão mais inclusiva de ciência e tecnologia, desafiando a perspectiva eurocêntrica dominante. Minha pesquisa mostra que os saberes ancestrais, transmitidos oralmente, são formas legítimas e ricas de conhecimento científico, com relevância prática. Para a sociedade, o impacto está na valorização da diversidade cultural e na memória de grupos marginalizados, fortalecendo suas identidades e lutas por reconhecimento. Isso também incentiva o respeito por diferentes formas de conhecimento, essenciais para o desenvolvimento de soluções mais sustentáveis e adaptadas às realidades locais.

DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós Graduação? Por quê?

AG: Minha dissertação se insere na linha de pesquisa “Memória da Informação Científica e Tecnológica”, o que me permitiu valorizar a memória de comunidades cujos conhecimentos e práticas são frequentemente ignorados pela academia tradicional. Essa linha me ajudou a explorar a oralidade e os saberes ancestrais como fontes legítimas de conhecimento, fundamentais para a preservação e transmissão de informações. Ao investigar tradições orais em quilombos e outras comunidades, meu trabalho amplia a visão da memória como um processo social dinâmico, valorizando práticas informacionais fora dos padrões científicos convencionais e questionando noções tradicionais de “ciência” e “tecnologia.”

DC: Citaria algum trabalho (artigo, dissertação, tese) ou ação decisiva para sua dissertação? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido? 

AG: Gostaria de destacar as iniciativas que ocorrem fora do ambiente acadêmico. É fundamental reconhecer que a ciência não se restringe às instituições acadêmicas. Como diz um canto da Jurema: “Jurema, és um pau encantado, és um pau de ciência”. Nos terreiros, quilombos e comunidades indígenas, há estudos, métodos e práticas que a sociedade precisa conhecer e valorizar. Podemos citar, por exemplo, publicações importantes oriundas de quilombolas, como “A Terra Dá, A Terra Quer”, de Antônio Bispo dos Santos, e de indígenas, como os livros de Ailton Krenak. A oralidade, que ocupa um lugar central no meu trabalho, também é uma forma rica e poderosa de transmissão de conhecimento. Nesse sentido, gostaria de destacar Amadou Hampâté Bâ, escritor e estudioso nascido no Mali (África). Em seu livro “Amkoullel, o Menino Fula”, ele nos mostra como, por meio das tradições e da valorização da oralidade, muitas comunidades africanas representam suas culturas e memórias, mantendo um vasto patrimônio de saberes. Hampâté Bâ nos lembra que “na África, cada ancião que morre é uma biblioteca que se queima”, um lembrete poderoso da importância de conhecer, de preservar os saberes tradicionais e oral das comunidades. Gostaria também de citar a historiadora Beatriz Nascimento e sua valiosa obra sobre os quilombos e a história do povo negro. Por fim, mas não menos importante, menciono dois autores da nossa área da Ciência da Informação (CI), Erinaldo Valério Dias e Franciele Carneiro Garcês-da-Silva, que têm contribuições marcantes para o estudo das relações étnico-raciais na CI. A Franciele com seu livro “Biblioteconomia Negra: das epistemologias negro-africanas à teoria crítica racial” e Erinaldo com diversos artigos sobre a temática, como por exemplo: Informação antirracista que circula no movimento social negro, da revista conhecimento em ação (2021).

DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?

AG: Os passos que definiram minha metodologia foram baseados nos objetivos do meu trabalho. Iniciei com uma revisão bibliográfica para entender os conceitos de memória, oralidade e identidade cultural, principalmente em quilombos e comunidades tradicionais. Optei por uma abordagem qualitativa, com pesquisa de campo, para vivenciar os espaços culturais e dialogar com os sujeitos. Usei entrevistas semi-estruturadas e observação participante, o que me permitiu captar histórias e participar de eventos comunitários. A análise de conteúdo ajudou a interpretar esses dados, valorizando as narrativas orais e práticas informacionais das comunidades.

DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?

AG: O tempo foi um grande desafio durante o mestrado, especialmente com meus sujeitos de pesquisa dispersos em diferentes locais, o que exigiu interações variadas para compreender o uso da oralidade. A pandemia também trouxe limitações, tornando alguns lugares e pessoas inacessíveis. Isso me levou a redirecionar a pesquisa para quilombos urbanos mais próximos. A partir daí, comecei a trabalhar com quilombos urbanos, reconhecidos como tal pela perspectiva da historiadora Beatriz Nascimento. Ela destacava que espaços como maracatus, escolas de samba e outras manifestações da cultura e identidade negra também são quilombos. E foi através dessa perspectiva, que consegui encontrar e focar nos sujeitos de pesquisa, que contribuíram fortemente para o desenvolvimento da pesquisa

DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a dissertação? 

AG: Minha dissertação foi composta de cerca de 30% inspiração e 70% transpiração. A inspiração veio das ideias centrais, como a valorização da oralidade e o conceito de quilombos urbanos, além das contribuições de autores e figuras importantes como Beatriz Nascimento, Amadou Hampâté Bâ, Mestre Naná, Mãe Elaine, Moa e o Maracatu Leão Coroado. Porém, a maior parte do processo foi dedicada ao esforço prático, com desafios como a coleta de dados durante a pandemia e a organização da dissertação, que exigiram dedicação e constantes ajustes.

DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da dissertação?

AG: O que eu posso dizer é: escreva e pesquise sobre aquilo que desperte sua paixão. Mesmo que os desafios sejam grandes, ao fazer sua escolha, comprometa-se com o que acredita. Ainda vivemos em uma sociedade profundamente marcada pelo pensamento colonial, algo que se reflete de forma intensa na academia. Por isso, é essencial desafiá-la constantemente, para que a mudança seja real e significativa. Tenho muito orgulho de representar o meu povo neste trabalho, e me sinto extremamente feliz com a forma como ele foi construído, não apenas por mim, mas por uma coletividade de sujeitos que contribuíram para sua realização.

DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?

AG: Acho que não mudou muito. Os ritmos familiares não sofreram muitas alterações com o mestrado. Conseguimos administrar bem. Vamos ver agora no doutorado! rs.

DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?

AG: Recentemente, fui convidada para uma banca de TCC de uma aluna de biblioteconomia, que me disse que meu trabalho a inspirou a desenvolver sua pesquisa sobre os griôs, guardiões da oralidade. Fiquei muito feliz com isso e, para quem tomar meu trabalho como referência, convido a caminhar juntos por uma Ciência da Informação mais decolonial e inclusiva. Acredito que o verdadeiro propósito de estudar a informação é entender a diversidade e a complexidade dos sujeitos informacionais, expandindo as fronteiras do conhecimento e valorizando saberes plurais.

DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado (projetos, artigos, trabalhos em eventos, participação em laboratórios e grupos de pesquisa)? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?

AG: Como falei anteriormente, o tempo foi meu maior desafio no mestrado, isso dificultou na presença de eventos e nas publicações. No entanto, faço parte de grupos de pesquisa como o LABERER e do Alaye, além de ser bolsista do CNPq com o projeto “Mulheres Migrantes Negras em Diásporas no Brasil: Cartografia das Opressões”, com publicações previstas para breve. Embora a academia exija produção constante, o que pode ser exaustivo, confio no meu ritmo e acredito que grandes ações virão. Por agora, convido a todos a assistir ao documentário que escrevi e dirigi “A Nossa História Contada e Cantada em Primeira Pessoa“, baseado na minha pesquisa de mestrado, disponível no YouTube.

DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?

AG: Venho me dedicando a novas pesquisas, mas sem sair do meu eixo. O estudo da memória e da informação dentro do contexto da população negra. É isso que me inspira a continuar estudando e espero poder contribuir ainda mais para a CI e para a sociedade como um todo.

DC: Pretende fazer doutorado? Será na mesma área do mestrado?

AG:  Já estou no doutorado e na mesma área de memória. Meu foco agora está nas mulheres negras ganhadeiras da região metropolitana do Recife e de Luanda, Angola. Logo, será um trabalho que eu pretendo também construir no território africano. Será um grande desafio, mas espero conseguir realizar.

DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?

AG: Ao reler meu trabalho, percebi que mudaria alguns aspectos, como o uso do termo “objeto de pesquisa” para me referir aos participantes. Embora amplamente utilizado, esse termo pode sugerir uma posição passiva, enquanto “sujeitos de pesquisa” reconhece a participação ativa e o protagonismo dos indivíduos. A relação entre pesquisador e pesquisado deve ser colaborativa, e percebo que minha metodologia poderia refletir melhor essa abordagem. No futuro, vou enfatizar mais a construção conjunta do conhecimento, garantindo que as vozes dos sujeitos sejam respeitadas em todas as fases do estudo. No doutorado, já estou seguindo essa nova perspectiva com meu orientador, prof. Dr. Erinaldo Dias Valério, docente do PPGCI da UFPe.

DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de mestrado?

AG: O Programa de Pós-Graduação me ofereceu uma base sólida, com suporte teórico, metodológico e acesso a uma rede de professores e colegas que enriqueceram minha pesquisa. Proporcionou um espaço para amadurecer academicamente e participar de projetos que ampliaram meus horizontes. Ao mesmo tempo, contribui ao trazer novas discussões decoloniais para a Ciência da Informação, destacando a importância dos saberes tradicionais e questionando os modelos convencionais de ciência e informação com minha pesquisa sobre as práticas informacionais e de memória em comunidades quilombolas.

DC: Você por você:

AG: Eu me considero uma pessoa profundamente sensível ao que acontece ao meu redor. Talvez essa sensibilidade venha também do fato de eu ser artista, o que me proporciona uma visão mais ampla e uma conexão mais íntima com o mundo. Por isso, vejo minha presença na academia como uma conquista política, fruto de uma trajetória que meus ancestrais começaram a traçar desde a África. Estar aqui hoje é, para mim, uma extensão dessa luta, e sinto que tenho o dever de continuar batalhando pela melhoria das condições daqueles que compartilham o meu tempo, assim como dos que ainda virão. Não faria ciência se não fosse para contribuir com a transformação da nossa realidade e combater a discriminação que ainda afeta profundamente a população negra. Para mim, ocupar esse espaço na academia é muito mais do que uma realização pessoal. É um compromisso com a mudança de perspectiva e com a construção de um futuro melhor. Estar aqui hoje é um ato de resistência e um passo em direção ao legado que quero deixar. E falo resistência, porque não é fácil para negras e negros chegarem e pior ainda permanecerem em espaços acadêmicos. 


Entrevistada: Amanda Carla Ganimo do Nascimento

Entrevista concedida em: 14 de outubro de 2024 aos Editores.

Formato de entrevista: Escrita 

Redação da Apresentação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

Fotografia: Amanda Carla Ganimo do Nascimento

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »
Pular para o conteúdo