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v. 2, n. 10, out. 2024
Editorial: Arquivos Comunitários, entre vulnerabilidades e protagonismos, por Ana Flávia Magalhães Pinto e Marcelo Nogueira de Siqueira

Editorial: Arquivos Comunitários, entre vulnerabilidades e protagonismos, por Ana Flávia Magalhães Pinto e Marcelo Nogueira de Siqueira

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Arquivos Comunitários, entre vulnerabilidades e protagonismos

Ana Flávia Magalhães Pinto | Marcelo Nogueira de Siqueira

anaflaviahist@gmail.com | marcelosiqueira@gestao.an.gov.br

Há décadas, arquivos comunitários têm sido criados e mantidos não apenas no Brasil por agentes sociais insatisfeitos com jogos de memória e esquecimento que prejudicam até mesmo a viabilidade do exercício pleno da cidadania a amplos segmentos da sociedade. 

 Sem serem reconhecidos por matrizes conceituais hegemônicas e faltando-lhes até mesmo o incentivo a se autodeterminarem como arquivos, traçam trajetórias marcadas por experiências potentes que guardam semelhança com o que já é central a áreas de conhecimento como a museologia social. Tais iniciativas representam, assim, uma realidade concreta que não pode seguir sendo subdimensionada ou até mesmo silenciada. 

 Este ensaio expressa um processo de aprendizagem que tem sido facultado por arquivos comunitários protagonizados por movimentos sociais, grupos identificados por pertencimento territorial no campo e na cidade, populações negras, povos indígenas, pessoas LGBTQIAPN+, mulheres, entre outros. Apontamos para a urgência de reflexões sobre a importância dessas instituições para a promoção de um salto de qualidade das políticas nacionais de arquivos e dos campos científicos e profissionais implicados nessa agenda.  

 Os perigos do arquivo único 

A palavra arquivo, embora seja imediatamente entendida como algo ligado aos documentos ou informações, é polissêmica, está associada a vários significados. Arquivo pode ser entendido como uma instituição que preserva documentos, como um conjunto de documentos, um móvel de guarda de documentos e como um conjunto de dados informáticos que formam uma unidade de informação.

A despeito dessas múltiplas possibilidades de sentido, outras tantas ainda nos escapam. Isso porque arquivo pode também ser objeto, equipamento ou território de disputas de matrizes epistemológicas que expressam modos diferentes de lidar com o vivido e o devir. Nesse sentido, torna-se insuficiente pensar que o modelo mais bem acabado de arquivo seja o de instituição pública ou privada pautada em legislação de proteção ao patrimônio documental, como algo muito circunscrito, com regras consolidadas e pretensamente válidas a todo e qualquer contexto.  

Sabemos que não é por acaso que a imagem mais convencional que temos dos arquivos como instituição expressa a força de uma tradição que os associa à preservação da memória de indivíduos e grupos concentradores de poder e riqueza. A possibilidade de ir além e vinculá-los à promoção de cidadania e direitos humanos, reconhecendo até mesmo a agência de usuários/as, é uma conquista recente e em curso. Evidencia os riscos do arquivo único – perigo próximo ao da história única, como observado por Chimamanda Adichie – e merece, portanto, a nossa atenção. 

Há nessa instabilidade uma série de lacunas a serem superadas, muitas das quais explicitam o quão importante é aproximar os arquivos, em sua diversidade, do combate às desigualdades e do amadurecimento da democracia. É justamente aí que os arquivos comunitários e seus agentes se destacam, apontando caminhos de adensamento de políticas e sistemas nacionais de arquivos, como tem sido buscado em países como a Colômbia em anos recentes. Eles também iluminam práticas insurgentes de definição e preservação de patrimônios coletivos, que vão além da dicotomia público ou privado. 

Marcelo Nogueira de Siqueira Arquivista do Arquivo Nacional e, atualmente, Coordenador de Articulação de Projetos Institucionais

Protagonistas e não figurantes  

As lutas por reconhecimento e direitos de grupos politicamente minorizados têm produzido mecanismos para a preservação de suas memórias e existências, sendo isso essencial ao sucesso das próprias lutas. Os arquivos comunitários são uma valiosa expressão dessa dinâmica, figurando como espaços de resistência e sustentação coletiva.  

A importância dos arquivos nesses contextos vai além da documentação, ou melhor, ampliam o alcance dessa, pois oportunizam práticas de autorreconhecimento e autodeterminação. Ao favorecer que as comunidades retenham, preservem e compartilhem suas histórias, esses arquivos contribuem para a construção de um senso de pertencimento. Além disso, funcionam como ferramentas de resistência contra a opressão e o apagamento histórico, garantindo que vozes marginalizadas sejam ouvidas e valorizadas. 

Com diferentes nomes, tipologias e modelos de gestão documental, os arquivos comunitários produzem e preservam coleções de suportes de memória que refletem a vida e a cultura de coletividades que existem em suas especificidades e em articulação. Diferentemente dos arquivos convencionais, cujos limites são dados pela natureza das instituições estatais ou corporativas aos quais estão vinculados, os arquivos comunitários são geridos pelas próprias comunidades a partir de suas necessidades, ensejando abordagens participativas e inovadoras, porque não dependentes de instrumentos preestabelecidos. 

Há em tudo isso características mais do que suficientes nos incentivando a pensar os arquivos comunitários livres do enquadramento simplificador da vulnerabilidade. Embora as desvantagens sejam inegáveis, os resultados obtidos por meio do protagonismo dessas coletividades organizadas demandam sua presença em espaços de reflexão ampliada não apenas como objetos, mas sobretudo como formuladores de conhecimento arquivístico.  

Afinal, experiências como o Cultne, maior acervo de audiovisual de cultura e luta negras da América Latina, iniciado há mais de quarenta anos, têm não apenas assegurado a manutenção de um repertório imagético positivo desse segmento social para indivíduos e grupos étnico-raciais diversos, mas também permitido a compreensão sistemática do papel transformador de esforços pela superação do racismo. As casas de reza, mantidas por povos originários, operam para a preservação de tradições orais, das línguas, histórias e práticas culturais, estratégicas para confrontar projetos de apagamento e genocídio. 

Quando nos atentamos para os acervos dedicados ao reconhecimento das presenças femininas e da população LGBTQIAPN+, os arquivos comunitários se revelam como espaço de formação e enfrentamento às opressões de gênero. Os documentos ali mobilizados auxiliam na demonstração do quanto os corpos, os afetos e as sexualidades têm significados política e historicamente definidos e que estão passíveis de disputa e afirmação.  

Fatos incontornáveis 

Os arquivos comunitários são transdisciplinares por natureza e multidimensionais em seus aspectos constituintes. Mais do que meros repositórios de documentos, possuem características e objetivos próprios que os diferenciam de outros tipos de arquivos, e devem ser assim reconhecidos.  

As possibilidades de suas existências são vastas e potencializadas pela crescente afirmação de grupos historicamente marginalizados e pelo acesso às tecnologias digitais. Iniciativas colaborativas entre associações, universidades, ONGs e comunidades locais podem fortalecer essas instituições arquivísticas. Por meio da preservação da memória e da promoção do direito à informação, essas instituições desempenham um papel crucial para o fortalecimento do campo arquivístico como um todo. 

Sobre os autores

Ana Flávia Magalhães Pinto

Professora do Departamento de História e Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Arquivos Comunitários da Associação Latino-americana de Arquivos. Diretora-Geral do Arquivo Nacional desde 2023. 

Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas, mestre em História pela Universidade de Brasília; bacharela em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília; e licenciada em História pela Universidade Paulista.

Marcelo Nogueira de Siqueira

Arquivista do Arquivo Nacional e atual Coordenador de Articulação de Projetos Institucionais. Secretário Técnico do Grupo de Trabalho sobre Arquivos Comunitários da Associação Latino-americana de Arquivos. Professor do Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 

Doutor em Ciência da Informação pela Universidade de Coimbra. Mestre em História Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel em Arquivologia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.


Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

Foto: Ana Flávia Magalhães Pinto e Marcelo Nogueira de Siqueira

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