
Os usos e abusos da expressão “liberdade de expressão” pela extrema direita brasileira – Entrevista com Joseli Machado

Os usos e abusos da expressão “liberdade de expressão” pela extrema direita brasileira – Entrevista com Joseli Machado
Joseli Machado da Silva
joseli.machado@hotmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2024, Joseli Machado da Silva concluiu o mestrado em Linguística pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), sob a orientação da Profa. Dra. Luzmara Curcino.
Paranaense de Paranaguá (PR), Joseli atua como professora na Rede Estadual de Ensino do Paraná. Nas horas livres, assiste a comédias românticas e valoriza os momentos ao lado da família e dos amigos.
Sua dissertação, intitulada “Liberdade de expressão: uma análise discursiva dos usos e abusos desse enunciado pela extrema direita brasileira”, analisa e descreve os usos e o funcionamento discursivo do enunciado “liberdade de expressão” pela extrema direita brasileira nos últimos anos. O estudo analisa especificamente os usos e sentidos atribuídos à expressão “liberdade de expressão” no vídeo “Os donos da verdade”, do “Brasil Paralelo”. Os principais achados revelam um esforço calculado para esvaziar e relativizar o sentido do termo, contrastando com o juízo formado de maneira filosófica, histórica e jurídica sobre seu significado, sua extensão e seus limites. A pesquisa demonstra, assim, uma operação de subversão semântica que procura legitimar determinadas posições ideológicas sob o discurso de defesa da liberdade de expressão.
Na entrevista, Joseli compartilha os desafios ao longo de sua trajetória, suas motivações e os aprendizados.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação
JM: Fui caloura (32) e mestranda grisalha (46) hahaha… O ensino superior não era uma opção possível para a minha realidade, na minha juventude, quiçá pós-graduação. Na década de 80, na pequena cidade em que morava (Morretes-Pr), faculdade era privilégio somente dos filhos das poucas famílias abastadas da cidade. No meu círculo de amigos e família não lembro de alguém que tivesse ensino superior. Me imaginar mestre seria loucura. Isso só mudou aos 32 anos, quando retomei os estudos e ingressei no ensino superior (UNESPAR – Campus Paranaguá-Pr). No primeiro ano, tive uma professora espetacular, chamada Luzmara Curcino, que me fez não só me apaixonar pela linguagem, pelos estudos linguísticos, como pensar pela primeira vez em mestrado como algo possível para mim. Desde então coloquei como meta. Fui tão estimulada e abençoada na graduação por professoras tão maravilhosas como a Luzmara, que a Joseli sonhadora, pesquisadora, estudiosa, amante das letras e do conhecimento que estava soterrada pela imposição do sistema social desigual em que nasci emergisse. Então, o desejo de me aprofundar mais nos estudos linguísticos despertados na graduação, sobretudo em análise do discurso francesa, me levou a fazer mestrado.
A inspiração pelo tema “liberdade de expressão” nasceu principalmente de três sentimentos: indignação, preocupação e desejo. Indignação pelo uso irresponsável, estratégico, sem compromisso social e jurídico de um direito tão caro à nossa sociedade – o da liberdade de expressão – pela extrema direita brasileira. Preocupação pelo sucesso da adesão de boa parte dos brasileiros a esses usos e interpretações. Desejo de contribuir com a verdade mostrando cientificamente que tais usos tem como compromisso de fomentar a crença de que a liberdade de expressão é um direito sem limites, desprovido de quaisquer freios ou fronteiras para transformá-lo em um instrumento de proteção a práticas antidemocráticas, abusivas, de desinformação, calúnia etc. para garantir benefícios nada nobres desse grupo político, como vimos em nossa história recente. Mostrar à sociedade que essa interpretação defendida pela extrema direita brasileira é criminosa, pois significa que ultrapassar os limites legais da liberdade de expressão não é crime, ao contrário, é um direito, transformando-o em um direito absoluto, genérico e sem restrições. Assim a redefinição do conceito de liberdade de expressão se revela um instrumento exemplar de como o discurso é perigoso e tem poder de subverter e transformar verdades consensuadas.
DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?
JM: A sociedade, a ciência, a Democracia, os pesquisadores e estudantes das áreas de Linguística, Ciências Sociais e Comunicação que se dedicam aos estudos da linguagem.
DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade?
JM: Para a ciência e tecnologia, contribuiu com inúmeras análises e conceitos discursivos riquíssimos fundamentados em um extenso arcabouço teórico metodológico dos principais teóricos ancorados na Análise do Discurso de orientação foucaultiana. Para a sociedade, contribuiu para a compreensão dos mecanismos discursivos utilizados para legitimar práticas antidemocráticas, combatendo dessa forma a desinformação, fortalecendo a democracia ao desnaturalizar os discursos hegemônicos sobre liberdade de expressão, sob o véu da legalidade e da liberdade, promovem discursos de ódio, ataques a minorias, a classes sociais específicas, às instituições e a democracia. Meu trabalho contribuiu para o debate público sobre os limites e responsabilidades do discurso, especialmente em contextos de crise democrática.
DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós-graduação? Por quê?
JM: Minha dissertação está inserida na linha de pesquisa “linguagem e discurso”. Esta linha fornece com solidez as ferramentas das quais precisávamos para a execução do nosso trabalho, pois busca compreender e analisar, de forma descritiva e interpretativa, como os discursos se constituem historicamente, considerando sua organização linguística, os sentidos, os gêneros a que pertencem e os meios pelos quais os enunciados são veiculados em diferentes contextos sociais.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua dissertação? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
JM: As produções da minha orientadora profa. Dra. Luzmara Curcino e de seu esposo, o Prof. Dr. Carlos Piovezani foram determinantes para a minha dissertação, dentre elas o artigo de Piovezani “Discursos da extrema-direita no Brasil: uma análise de pronunciamentos de Jair Bolsonaro” publicado na Revista RALED.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
JM: Os passos foram os seguintes: definição do tema e suas delimitações, escolha do arcabouço teórico e do corpus, definição dos capítulos e de seus títulos, seleção das sequências discursivas para análise e escrita.
DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?
JM: Como a vida não para para a gente fazer mestrado, a minha ainda resolveu virar de ponta cabeça. Durante todo o período do mestrado, eu, meu esposo e nosso filho vivemos uma situação adversa muito grande e grave que demandava todo o nosso tempo, força e energia e eu não consegui administrar bem essa situação com a dissertação. Sentava para escrever e travava, minha mente bloqueava. Foi desafiador, por várias vezes achei de verdade que não iria conseguir. Precisei de ajuda profissional para manter a saúde mental e muito incentivo da professora Luzmara. Por esta razão, a maior dificuldade foi focar na dissertação.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a dissertação?
JM: Acredito que 40% e 60% transpiração. Eu tinha muita inspiração, porém quando me sentava para escrever ela evaporava. A minha mente e atenção estavam em constante disputa com a situação que eu estava imersa. Isso me trouxe muito sofrimento, mas o importante é que consegui. Conclui com sucesso, muito esforço e comprometimento esse importante ciclo.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da dissertação?
JM: Eu só tenho gratidão por viver essa experiência terrivilhosa (terrível e maravilhosa hahaha) em uma universidade como a UFSCar, composta de profissionais que fazem ciências de forma muito humanizada e inspiradora, que tem compromisso com o que ensinam e com seus orientandos. Compreendem que a vida não é linear e cada pesquisador orientando é um ser humano, um sujeito histórico, alguém que carrega saberes, dores e vivencias. Gratidão especial a minha orientadora, a professora dra. Luzmara Curcino, que teve participação incrível no resultado do meu trabalho. 70% da minha rede de apoio veio dela. A fé que depositava em mim durante todo percurso foi o combustível que garantiu a minha permanência e conclusão do mestrado. Minhas maiores dificuldades não vieram da academia.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?
JM: Foi de parceria e compreensão.
DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
JM: Recomendo que aprofundem os estudos das relações entre o discurso e ação, a relação entre discurso e poder. Para tanto, indico duas obras: “A ordem do discurso” de Michel Foucault cujo autor aponta os perigos e o poder do discurso, nas primeiras páginas da obra nos interroga: “Mas, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde afinal, está o perigo?” (Foucault, 2014, p. 8). A segunda obra é “A Linguagem Fascista” de Carlos Piovezani e Emílio Gentile. Nessa obra o foco está na relação entre verbo e ação, ou seja: a palavra, o verbo, a linguagem é ação.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
JM: Participei de vários grupos de pesquisa, entre eles o Laboratório de estudos da leitura – UFSCar (Lire), participei de muitos eventos em várias categorias: apresentando pesquisas, como ouvinte, na coordenação, como parecerista etc. Também publiquei um artigo com minha orientadora intitulado: “Liberdade de expressão” como álibi: Uma análise discursiva de seus usos e abusos pela extrema direita brasileira”, publicado na obra “Discursos e desigualdades: cartografar com Foucault”, organizada por dois grandes pesquisadores, os professores Dra. Amanda Braga e Dr. Israel de Sá.
DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?
JM: Tenho participado de eventos da área, inclusive em fevereiro apresentei os resultados da dissertação na “Jornada Internacional de estudos Discursivos: A América latina em diálogo”, em Paris. Foi uma experiência enriquecedora.
DC: Pretende fazer doutorado? Será na mesma área do mestrado?
JM: Certamente, em Linguística, com ênfase em Análise do Discurso foucaultiana. Pretendo participar do próximo processo seletivo do PPGL UFSCar.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
JM: Teria organizado com mais rigor meu tempo, meu cronograma de leitura e escrita, para lidar melhor com os prazos. Teria me importado menos com os problemas externos e buscado mais cedo a aproximação com outros pesquisadores que investigam temas semelhantes, o que poderia ter ampliado ainda mais o escopo das discussões e considerações.
DC: O que o Programa de Pós-graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de mestrado?
JM: O PPGL da UFSCar me proporcionou uma formação teórica sólida, um ambiente intelectual estimulante e oportunidades de pesquisa e publicação. Em contrapartida, participei de eventos, publiquei artigo derivado da pesquisa e atuei ativamente nos grupos de pesquisa, contribuindo com o fortalecimento das atividades acadêmicas do programa.
DC: Você por você:
JM: Sou uma mulher apaixonada pela vida, pela família, por Deus, pela linguagem, pelo conhecimento. Nasci em berço de amor e cuidado. Por isso sou amor, sou amada, resolutiva, sensível, resiliente. Rio, choro. Também tenho vontade de desistir algumas vezes, mas contínuo. Levanto mesmo quando a vontade é de permanecer prostrada. Sou vulnerável, sou humana. Me posiciono diante da vida e não tenho costume de esperar que me tragam flores, mas planto e rego o meu jardim todos os dias. Luto diariamente para continuar no jogo da vida com a cabeça erguida e olhar adiante para tornar esse nosso mundo melhor.
Entrevistada: Joseli Machado da Silva
Entrevista concedida em: 14 de Maio de 2025
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Pedro Ivo Silveira Andretta
Fotografia: Raquel Machado
Diagramação: Naiara Raíssa da Silva Passos









