
Não é só exposição! Museus, Ciências, DescolonizAÇÃO e o desmonte do pensamento único, por Sue Costa

Não é só exposição! Museus, Ciências, DescolonizAÇÃO e o desmonte do pensamento único
Sue Costa
sue.costa@gmail.com
No Brasil, desde o século XIX que instituições museológicas no modelo Museu de História Natural e Etnográfico, ou como chamamos no senso comum, Museus de Ciências, surgem como tentativas institucionais de construção da narrativa de como as “coisas são” ou como “devem ser”, é a celebração da tão aclamada realidade. Porém, é importante frisar que, no século XIX, no Brasil, isso significava uma sociedade racista, escravocrata e consequentemente normalizadora da desigualdade (Shwarcz, 1993).
Partindo da suposta neutralidade da ciência, escondem-se camadas de escolhas narrativas, exclusões epistemológicas e heranças coloniais que moldaram, e ainda moldam, o que é e como é mostrado, e quem tem o direito de contar a história. Neste contexto, afirmar que um museu “não é só exposição” é reconhecer que o que se exibe é parte de uma disputa maior: a disputa narrativa sobre o que é ciência, quem e como a produz e quais saberes são legitimados.
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre os museus de ciência como espaços políticos e culturais, e não apenas como lugares de preservação do patrimônio natural/cultural e divulgação do conhecimento científico. Ao trazer a descolonização como lente de análise, proponho como esses espaços podem e devem ser transformados em arenas plurais, onde epistemologias marginalizadas sejam não apenas incluídas, mas reconhecidas como constituintes legítimas da construção do saber. Nesse processo, não se trata apenas de adicionar vozes ao discurso dominante, mas de desmantelar o pensamento único que sustenta a ideia de ciência como neutra, universal e desvinculada de contextos históricos.
Portanto, parto de um princípio básico: museus são espaços de diálogos e construções, vitrine dos discursos vitoriosos. As confluências necessárias para a culminância de uma exposição, iniciando com a escolha do acervo e passando pelos direcionamentos da pesquisa, são resultados de escolhas de pessoas. Quem são essas pessoas? Quais bases culturais e éticas as permeiam? (Brulon, 2020).
Por exemplo, em tempos atuais de crise climática, e, consequentemente, de racismo ambiental, podemos apresentar a mesma situação/realidade como um “desastre”, normal dentro do esperado em grande projetos desenvolvimentistas, com direito a imagens heroicas de salvamento de fauna e reconstrução de flora, ou apresentar a situação como resultado de um projeto em curso, desde a invasão do Brasil, de precarização e aniquilamento da vida de pessoas não brancas, sejam elas indígenas ou negras.
Essa lógica de que a ciência é responsável por organizar um pensamento único, algumas vezes confundido com verdade — herdeira do projeto colonial moderno — se manifesta na forma como o conhecimento é validado, no tipo de linguagem que se considera científica e nas ausências sistemáticas de outras formas de saber nos espaços expositivos. Ao silenciar cosmologias, tecnologias e visões de mundo que não se encaixam na matriz eurocentrada da ciência ocidental, os museus de ciência acabam por reforçar uma hierarquia epistêmica que ainda exclui corpos, territórios e modos de vida não hegemônicos.
Descolonizar esses espaços exige, portanto, mais do que incluir novas narrativas dentro das vitrines já existentes. Trata-se de repensar o próprio conceito de ciência, questionando suas fundações, seus métodos e seus limites, a partir de outras racionalidades.
As epistemologias indígenas e afrocentradas, por exemplo, trazem consigo compreensões interdependentes entre natureza e cultura, entre espiritualidade e técnica, entre oralidade e prática cotidiana. Elas desafiam a separação cartesiana entre sujeito e objeto, observador e observado, que molda o olhar científico moderno.
Ao incorporar essas epistemologias como centrais, e não periféricas ou expressões exóticas de culturas que estagnaram no tempo, os museus de ciência têm a oportunidade de se reconfigurar como territórios de diálogo intercultural, capazes de articular múltiplas formas de existir e conhecer. Isso implica não só abrir espaço para novas vozes, mas também escutar com outras disposições: com humildade epistêmica, com disposição para o conflito produtivo e com compromisso ético com as lutas por justiça coletiva.
Proponho pensar o museu como um espaço em disputa: onde se tensionam saberes, se desestabilizam certezas e se (re)imaginam futuros. E se a exposição científica, antes considerada neutra e objetiva, for entendida como um território narrativo em disputa, onde o que está em jogo não é apenas o conhecimento produzido pela ciência, mas os horizontes que ela projeta para o futuro?
E como este museu entende que será o futuro quando diferentes ciências, sejam elas eurocêntricas ou indígenas, apontam para o mesmo lado, que é: se continuarmos a normalizar as práticas de consumo capitalista, não haverá bom futuro para a sobrevivência das espécies atuais, incluindo seres humanos. Este museu ainda apostará nas dicotomias ser humano X natureza? Pensamento X sentimento? Preservação ambiental X desenvolvimento tecnológico? Ainda apostará em narrativas que validam a tecnologia como a celebração da manipulação da natureza para fins de aceleramento da vida?
Descolonizar os museus de ciência não é tarefa simples, nem imediata. Exige coragem institucional, abertura epistêmica e uma revisão profunda de práticas, linguagens e alianças. Trata-se de romper com a ilusão de neutralidade científica e de reconhecer que toda exposição é também uma escolha narrativa e, portanto, política. É nessa perspectiva que os museus devem se reposicionar: não como lugares de autoridade absoluta sobre o saber, mas como espaços vivos de encontro, escuta e reconstrução coletiva.
A natureza, por exemplo, não precisa ser apresentada como um conjunto de elementos isolados, categorizados e controlados, como se impôs pela lógica ocidental. Nas cosmologias indígenas, a natureza é território, é corpo, é ancestralidade. É rede interligada onde humanos, rios, bichos e espíritos coexistem e se comunicam (Krenak, 2019). Ao abrir espaço para essa visão relacional, os museus têm a chance de oferecer experiências que despertam sentidos de pertencimento e responsabilidade com o planeta.
Da mesma forma, o tempo não precisa seguir uma linha reta em direção ao progresso. As epistemologias afrocentradas nos ensinam que o tempo pode ser espiralado, circular, atravessado pela memória, pela presença dos ancestrais e pela potência dos ciclos (Bispo, 2023).
Incorporar essa perspectiva é também desafiar a narrativa de uma ciência que sempre avança em direção a um futuro único, esquecendo os passados múltiplos que ainda vivem nos corpos, nas práticas e nas resistências do presente.
Por fim, mais do que inserir elementos simbólicos de culturas marginalizadas, é urgente que os museus de ciência se comprometam com uma transformação social concreta, ancorada no diálogo entre os conhecimentos que formam a base da sociedade brasileira, uma sociedade pluridiversa, marcada por desigualdades históricas, mas também por saberes potentes e formas plurais de existir. Essa transformação só será possível se os museus forem capazes de abrir suas estruturas, revisar suas metodologias e reconhecer que há muitas ciências, muitos modos de saber e muitos mundos a serem contados.
DescolonizAÇÃO, portanto, é (re)imaginar. E (re)imaginar os museus de ciência é fazer deles não apenas espaços de exposição, mas territórios de disputa, criação e esperanças.
Referências
BISPO, Antônio dos Santos. A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023. 112 p.
BRULON, Bruno. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. Anais do Museu Paulista, vol. 28, 2020, pp. 21-26.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Sobre a autora:
Professora da Universidade Federal do Pará, nos cursos de Museologia e Pós-Graduação em Ciências do Patrimônio Cultural. Atualmente é Coordenadora de Comunicação e Extensão do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Doutora em Geologia e Geoquímica pela Universidade Federal do Pará. Mestre em Zoologia pela Universidade Federal do Pará. Bacharela em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pará.
Redação: Sue Costa
Foto: Sue Costa
Revisão: Herta Maria de Açucena do N. Soeiro
Diagramação: Herta Maria de Açucena do N. Soeiro