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v. 3, n. 11, nov. 2025
Editorial: Escrevivências: escrever sobre o que vivo e viver o que escrevo, por Rosangela Hilário

Editorial: Escrevivências: escrever sobre o que vivo e viver o que escrevo, por Rosangela Hilário

Escrevivências: escrever sobre o que vivo e viver o que escrevo

Rosangela Hilário
rosangela.hilario@unir.br

A Doutora Conceição Evaristo escreveu que nossas histórias, canções e sentimentos não são para ninar a casa grande acomodada em seus privilégios, mas para acalmar nossos pesadelos constituídos por ausências, invisibilidade e apagamentos.

Tornar-me uma Mulher Preta, e fora dos padrões eurocentradas, não foi uma decisão que eu tenha tomado: fui percebendo que a despeito de minhas credenciais acadêmicas, condição social e saberes, minha cor sempre chegou antes de eu ter chance de usufruir as oportunidades. Antes das minhas apresentações na escola, antes da escolha dos times de vôlei e da escolha dos parceiros de dança. Mas, o feminismo negro materializado em uma avó muito à frente de seu tempo me preparou e me fortaleceu a ser ponta de lança a abrir caminhos para que outras como eu tivessem um pouco mais de oportunidades. Me preparei toda a vida para usar meu corpo político para fortalecer e inspirar a trajetória de outras pessoas.

Por outro lado, os saberes desenvolvido e produzido no processo de resistência da juventude pobre, preta e periférica têm estado em pauta destacada entre a elite econômica branca que se julga liberal, descolada e sem preconceitos. Entretanto, temos nos questionado sobre a forma como esta mesma elite tem se utilizado desse conhecimento produzido pela juventude que chegou à Universidade Pública ao longo dos últimos vinte anos?  Como é o acesso a história, a autoimagem, a cultura e memória do povo preto nos espaços de representatividade e poder? Como as meninas negras se veem a partir dos textos, gravuras e uma proposta de educação que não contempla a contribuição da cultura de sua ancestralidade na formação da cultura do povo brasileiro? 

Pela análise de conjuntura possível, a combinação de um governo de extrema direita que ao longo dos quatro anos em que permaneceu flertou com a necropolítica e casou com a destruição social e epistêmica para destruição da democratização do acesso à ciência como estratégia de emancipação, articulada a uma militância estrelada que não pisa nos lugares periféricos e um feminismo de mulheres negras distante do matriarcado africano e referenciado pelo narcisismo da branquitude acadêmica,  não têm produzido resultados que possam ser sentidos na graduação e nos pós-graduação das Universidades Públicas mais ou menos reconhecidas. 

Como consequência, a cultura, a estética, a maneira de estar sendo no mundo das pessoas negras, como tão bem escreveu Paulo Freire, continua causando estranhamento em suas manifestações de negritude: os cabelos armados, as tranças coloridas, uma estética percebida com espanto e distanciamento. Urge dar concretude ao inédito viável.

Assim como as crianças negras aprendem muito mais sobre suas histórias, cultura e memória em espaços coletivos de resistência negra como escolas de samba, grupos de capoeira, terreiros, cafés da tarde com as avós, clubes, bailes e festas religiosas e familiares, as mulheres negras aprendem mais sobre si, as estratégias e os movimentos necessários para avançar em processos emancipatórios de formação em sindicatos, associações, fábricas, clubes e encontros fora da academia. 

Para além de um conceito abstrato o Feminismo Negro, tendo como referência a primeira matriarca com a qual convivi (minha avó Djanira), era/é estratégia para resistência e encorajamento: por meio da leitura das feministas negras minha adolescência, juventude e vida adulta sempre foi transbordada de autoestima e argumentos. 

O Feminismo Negro orientou a minha trajetória na Universidade e a formação do Grupo de Pesquisa a que tenho me dedicado ao longo de minha trajetória de professora/ativista na universidade brasileira: formalizei em outubro de 2019 o Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde junto ao Conselho de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico/CNPQ, e iniciei a apresentação formal de conceitos, teóricas e intelectuais negras no processo de formação dos pesquisadores e pesquisadoras que trazem marcado na pele os fenômenos e temas a que se dedicam.  Desde então, as pessoas pesquisadoras têm movimentado os espaços acadêmicos pautando temáticas e produzindo artigos, notas técnicas, participando de congressos e debates. 

No exato momento em que escrevo essas linhas o GEPEA Audre Lorde celebra a ascensão de uma de suas pesquisadoras (Mestra Sâmia Valéria)  a Consultora da UNICEF para o combate ao genocídio da juventude negra nos territórios do Norte, a partir de um projeto fortalecido coletivamente de utilizar epistemologias negras na organização dos saberes e produção de conhecimento. Então, o trabalho que desenvolvemos tem cor (preta) , tem cheiro (do sangue derramado que sustentou e fortaleceu as bases econômicas deste país) e tem dor (do silenciamento e da negativa a nossa humanidade). Negando a objetividade que mantém privilégios, incomoda e é constantemente desqualificado por quem não deseja estender direitos, mas, manter privilégios.

Então, quando meus colegas me pedem para escrever sobre minha trajetória para abrir uma edição da Revista, não poderia fazê-lo sem reconhecer que cada uma das pessoas com que interagi ao longo dos anos foi essencial para que eu me tornasse a professora que me orgulho de ser: as mais velhas abriram as portas e as mais novas que me presenteiam com sua confiança. E, eu nunca saí daqui e aqui estarei enquanto puder ser chave que abre portas e não cadeado que as tranca; as minhas mais novas que esperançam mundos possíveis em que possamos fazer escolhas.

Sobre a autora

Rosangela Hilário

Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Rondônia. Líder do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde. Coordenadora da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Coordenadora da Comissão de Combate às Desigualdades da Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República.

Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. Pós-Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Bacharela em Jornalismo pela  Universidade de Mogi das Cruzes e Licenciatura em Letras pela Universidade Anhembi Morumbi.


Redação: Rosangela Hilário

Fotografia: Ministério Público de Rondônia

Diagramação: Marcos Leandro Freitas Hübner

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