
Leitura como ninho de afeto, por Helder Guastti

Leitura como ninho de afeto
Helder Guastti
helderguastti@hotmail.com
Ao longo de minha jornada confabulatória, fui compreendendo que há livros que se abrem como asas. Outros, como ninhos: espaços de acolhida, de calor e de repouso. Entre páginas e silêncios, nasce a possibilidade de um encontro que ultrapassa o ato da leitura e se torna gesto de cuidado: com o outro e consigo mesmo.
Sempre fui uma criança predisposta à introspecção. Apesar de ter tido uma infância vibrante, cheia de brincadeiras com os primos e joelhos ralados, eu possuía uma característica que não compreendia muito bem, um misto de timidez e reclusão. Um deslocamento para com o mundo à minha volta.
A partir de minhas vivências leitoras, de exploração dos livros da Biblioteca Pública Municipal e da apropriação das inúmeras palavras que as narrativas lidas me oportunizaram, fui compreendendo que está tudo bem sentir-se de certa maneira deslocado do mundo, pois, a literatura nos apresenta infinitos mundos novos que nos possibilitam o reconhecimento e o pertencimento real.
Com o passar do tempo, enquanto me reconhecia e desenvolvia enquanto educador, passei a compreender ainda mais que escolher um livro para partilhar vai muito além do ato de oferecer uma narrativa: é criar um abrigo onde memórias, sonhos e perguntas podem pousar. É uma forma de dizer: “aqui você pode descansar, imaginar, ser escutado”.Nesse espaço íntimo e coletivo ao mesmo tempo, a leitura se converte em vínculo, em presença, em confiança.
A mediação de leitura, nesse sentido, deixa de ser apenas uma técnica, tornando-se uma prática profundamente humana. É acreditar que cada leitor tem seu próprio ritmo, sua própria respiração e sua própria maneira de se deixar tocar por uma história. Como nos lembra Cecília Bajour, a formação leitora acontece não apenas pela força dos livros, mas pela intensidade do afeto que os acompanha: pelo olhar atento, pela escuta generosa, pela disponibilidade de estar junto.
Mediação de leitura é, sobretudo, presença: é perceber o brilho nos olhos de uma criança ao reconhecer-se em uma personagem; é notar o gesto tímido que denuncia surpresa,encantamento ou espanto; é permitir que o silêncio também fale, que cada pausa seja respeitada. Nessa prática, o livro deixa de ser um objeto estático e torna-se terreno de experiência, lugar de construção de significado e emoção. O mediador, por sua vez,torna-se jardineiro de afetos, regando, com paciência e escuta, o florescimento da imaginação e da sensibilidade. Cada mediação de leitura se transforma, assim, em ritual delicado de cuidado e atenção, onde o afeto não é acessório, mas condição essencial para que a palavra tenha peso e a história, morada.
Bajour (2012, p. 45) nos convida a refletir que
“Em experiências de leitura compartilhada, os mediadores que aprendem a ouvir nas entrelinhas constroem pontes e acreditam que as vozes, os gestos e os silêncios dos leitores merecem ser escutados. Se assim for, quando é assim, ler se parece com escutar.”
Ouvir nas entrelinhas exige atenção ao que não é dito, sensibilidade para perceber hesitações e emoção nas pausas. É um ato de humildade e entrega: o mediador se dispõe a aprender com o leitor tanto quanto este aprende com o livro. Nesse movimento,cada história compartilhada torna-se uma conversa silenciosa entre corações, uma dança sutil de olhares, gestos e palavras. Ler deixa de ser um ato solitário ou mecânico e se transforma em experiência de presença, de conexão e de intimidade: uma troca onde cada silêncio também carrega significado e cada risada, descoberta.
Comumente, ao tratarmos sobre formação de leitores, encontramos pessoas que perguntam “Mas como fazer?”, “Qual é a prática ideal?”, “Como formar leitores?”. Não existem respostas para esses questionamentos, assim como existem inúmeras respostas possíveis.
Nenhum profissional pode afirmar que tem a fórmula mágica para formar leitores. Mas, o que se pode fazer é refletir sobre as práticas de leitura propostas e ressignificá-las de maneira que, assim, elas consigam atender e abarcar toda a complexidade da diversidade dos sujeitos que a compõem. Para isso, faz-se necessário o olhar sensível e manso para com os livros, as crianças e si mesmo.
Esse olhar sensível não é apenas um recurso pedagógico; é uma postura de vida. Envolve paciência, atenção às nuances de cada comportamento e disposição para acolher o inesperado. É perceber que o ato de ler pode ser silencioso, explosivo, interrogativo ou imaginativo, e que todas essas formas são válidas. Respeitar o tempo e o espaço do outro significa permitir que cada criança descubra seu ritmo e se sinta segura para mergulhar nas histórias. O livro, nesse contexto, deixa de ser apenas objeto ou ferramenta; torna-se companheiro, confidente e, muitas vezes, um espelho que devolve ao leitor fragmentos de sua própria existência.
Bajour (2012, p. 111) reflete que
“Nem sempre as escolhas têm que ver com uma causa letrada, profissional ou escolar. Às vezes a pessoa escolhe um livro porque uma palavra, uma imagem ou um aroma ressoam como um bálsamo ou como uma tormenta na evocação de sua própria vida.”
Escolher um livro é, muitas vezes, um gesto íntimo, guiado por sentimentos que nem sempre conseguimos nomear. Há títulos que confortam, oferecendo acolhimento silencioso em momentos de dúvida ou tristeza, e outros que provocam, instigam inquietações ou despertam memórias há muito esquecidas. O mediador atento percebe essas sutilezas e reconhece que cada escolha revela uma relação profunda com a própria vida: um livro pode ser abraço, farol ou espelho. E, ao permitir que o leitor siga essa intimidade com a obra, abrimos espaço para que ele se reconheça, se questione e se transforme, tornando a leitura uma experiência viva, pessoal e inesquecível.
A partir do momento que você consegue olhar para dentro de si mesmo, enxergar e abraçar sua sensibilidade, tomar suas inquietações como propulsoras para sua evolução pessoal e profissional, você consegue se permitir tocar pelas obras as quais tem contato e,desta maneira, tocar e sensibilizar as pessoas que lhe escutam.
Ler e viver entre os livros é se permitir dançar a melodia de uma batida diferente. É seguir por estradas e caminhos menos percorridos. É lançar-se ao alto, de olhos fechados e braços abertos. Se cada mediação é um convite a adentrar o ninho da palavra, cabe a nós, educadores e mediadores, perguntar:
Que histórias têm aquecido os silêncios das crianças?
Que sementes temos deixado repousar em suas mãos?
E como temos tecido, dia após dia, esse ninho de afeto capaz de sustentar voos?
Referência
BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. Tradução: Alexandre Morales. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
Sobre o autor
Educador e professor apaixonado pela Educação, por Literatura e, principalmente, por seus alunos.
Graduado em Pedagogia, há 17 anos dedica-se à Educação, atuando em espaços formais e não-formais.
Eleito Educador do Ano pelo Prêmio Educador Nota 10 – Edição 2024 e Top 50 do Global Teacher Prize 2025.
Produz conteúdo sobre leituras, livros e infâncias em suas redes sociais, além de atuar como mediador de leitura no “Espaço de Leitura – Confabulando”, projeto social que desenvolve em sua comunidade.
Redação: Helder Guastti
Fotografia: Helder Guastti
Diagramação: Iasmim Farias Campos Lima









