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v. 3, n. 8, ago. 2025
Editorial: Mulher – memória do mundo, por Luciana Nabuco

Editorial: Mulher – memória do mundo, por Luciana Nabuco

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Mulher: memória do mundo

Luciana Nabuco

luocuban@gmail.com

“Luciana, o Candomblé é das mulheres”, e seu sorriso se abria como o abebé de Oxum, o leque ritualístico das Mães ancestrais, que muitas vezes comporta um espelho.

Mãe Martha de Oxoguian era o nome iniciático de minha Iyalorixá, mulher negra, historiadora, assistente social, guardiã de saberes e memória oral, mulher que combateu sempre o racismo, desigualdades, filha da tradição keto, oriunda da Casa Branca de Salvador.

Mãe Martha se encantou há 3 anos. E, durante o período de Axexê, dos ritos fúnebres e até o presente momento, percebo que o saber transmitido não se apaga. 

Assim como a cultura é um fluxo vivo, em movimento espiralado como o Okotó, caracol representativo de Exu. Cada ser que morre em uma comunidade permanece em outra forma nessa comunidade, ainda que ela seja dissolvida. 

Caminhamos nesta terra ancestral indígena brasileira em memórias e vestígios de inúmeros seres. Caminhamos em suas memórias.

A colonização tentou de todas as formas subtrair dos povos originários suas memórias, assim como tentou aniquilar as memórias dos povos oriundos de África. 

Porém, cada ser morto revive em seu descendente. Existe uma noção de continuidade nos povos bambara que permite entender que dentro de nós há muitas outras vidas. Eu percebo essa terra como um imenso assentamento tupi banto e que, em sua imensa generosidade, ainda transmutou o colono luso e suas tradições judaico-cristãs na mística da Encantaria dos terreiros.

Aqui tudo é absorvido em metamorfose e reimplantado como as princesas turcas na lenda do naufrágio de uma nau, que depois de mortas baixam nos terreiros no Maranhão. Jarina, Mariana e Herondina, mulheres estrangeiras que de certo modo encontram um renascimento, e já não sabemos onde inicia ou termina a lenda.

Aprendi com os terreiros de candomblé que a porta deve estar sempre aberta para todos. Essa é uma ideia perigosa em um sistema neoliberal em que se vende um projeto de sucesso individual à custa do esmagamento de outras pessoas. Não se abre as portas no capitalismo. Mantemos apenas uma falsa sugestão de que ela será aberta.

E abrir uma porta significa inserir o ser humano no coletivo, no caso dos terreiros é ouvir a dor e a alegria do outro, não pedir que se transforme para ser aceito pela sociedade, mas alimentar e curar as fissuras, dar esperança, responsabilidade, confiar.

Ao entrar em um terreiro como pessoa simpatizante, se observa que nesse espaço há sempre muita coisa para se fazer, muitas tarefas, e tudo é importante, desde varrer uma escada, passar uma saia, cortar quiabos, ajeitar o mariwo do quarto de Ogum, ou lavar uma caneca. Tudo tem sua importância. E dentro desse coletivo, cada energia, ou pequeno gesto é um elo na imensa força do Axé. Do coletivo. Se alguma pessoa está triste precisa ser cuidada.

O Xirê, que é o momento do encontro entre deuses e seres humanos, o momento de celebração onde o som dos tambores igualmente é vestígio de memória coletiva, o xirê significa brincar. Deuses que se encantam e brincam, e transmitem através de seus gestos e energia força e movimento de viver. Esse acontecimento é um fazer cultural, é dizer que se está vivo.

Precisamos entender de que forma caminharemos sobre todas essas outras vidas na terra, seus ossos, suas moléculas que foram absorvidas, suas memórias que podem ser despertadas. De que modo pisaremos nessa terra mãe, símbolo do feminino.

Em muitas culturas acredita-se que, ao morrer, voltaremos para a casa de nossa mãe. Ao entregar nosso corpo na terra, voltamos ao útero primordial, e seremos banhados novamente nas águas do inconsciente feminino, líquido amniótico que nos envolve. Fomos seres aquáticos na nossa gênese. 

E a água é o fluxo de uma memória coletiva da humanidade, fonte de narrativas de histórias, elemento adaptável a diversos ambientes, alimento para inúmeros seres vivos. A água é a mulher.

Ao longo da história as mulheres sempre escreveram, de algum modo, suas memórias. Esses escritos iniciais foram realizados com a terra e o pigmento ocre. As narrativas foram se construindo em rituais de encantamento em cavernas, verdadeiros úteros terrestres, onde o silêncio era rompido pela respiração, murmúrios e fricções nas pedras. 

Essas primeiras narrativas são a expressão que os seres humanos oferecem ao mundo como modo de continuidade de ser e sonhar, o legado da transmissão da eternidade.

O corpo feminino é outro imenso elo com a memória. O útero que acolhe o ser que virá a ser é como a caverna do Neolítico. A mãe gera igualmente memórias e seu leite não contém apenas nutrientes orgânicos, mas também histórias imemoriais, marcas do passado, sentimentos e sonhos. A mãe que morre nos deixa sua marca indelével, simbolicamente na cicatriz do centro do nosso eixo corpo, como a dizer: “você esteve ligado em mim”.

Ilustração feita por Luciana para a obra Macabéa: Flor de Mulungu de Conceição Evaristo

As mulheres pintaram suas histórias, fizeram cerâmicas, foram as iniciadoras da agricultura, cultivando o solo e sementes, cobriram os corpos gelados pelo frio tecendo têxteis, domesticando os animais, foram as parteiras que amparavam outras vidas, curadoras de sociedades tribais, educadoras que transmitiam códigos, ensinamentos. Sacerdotisas e guardiãs de saberes ritualísticos e segredos da ordem harmônica da natureza. Mantenedoras de vida e o colo do retorno ao final da existência.

As águas maternas, nossa primeira experiência de ser, a inundação que nos forma em murmúrios de dores e alegrias sentidas pelas arcaicas linhagens que trazemos como carrego são as imagens absorvidas além da formação biológica e orgânica do nosso corpo. Juana Elbein escreve em seu livro Os Nàgô e a morte: “O Ser humano, como todos os seres, é constituído de elementos coletivos, representações deslocadas das entidades genitoras, míticas ou divinas e ancestrais dos antepassados (de linhagem ou família) e por uma combinação de elementos que constituem sua especificidade, ou seja, sua unidade individual” (2012, p. 233).

Carregamos em nossos corpos os outros dos outros, a multiplicidade familiar dos ancestrais.

Segundo Emanuele Coccia, “nossa existência – dormindo e em vigília- é um mergulho ininterrupto no sensível. São os sensíveis – as imagens das quais não deixamos de nos nutrir e que não param de alimentar nossa experiência diurna ou onírica – que definem a realidade e o sentido de todo nosso movimento” (2012, p. 37).

Na tradição iorubana nagô, na qual fui iniciada em 2013 pelas mãos de Mãe Martha de Oxoguian, nada pode ocorrer sem a oferta, invocação e derramamento na terra do Omi, da água. A água propicia toda oferenda, elemento de troca e restituição do Axé genitor. A água uterina é o veículo sensível contido dentro da cabaça mãe, a Ìyá Igbá. Segundo Elbein (2012, p. 85), “deitar água é iniciar e propiciar um ciclo”. Somos gestados nas águas e quando nossa mãe “deita as águas” é sinal que é tempo de vir ao mundo.

Como mulheres, estamos em diuturna luta e conquista de espaços e posições que nos foram negados por uma consciência patriarcal que mutila o psiquismo feminino.

Segundo Raíssa Cavalcanti (1993, p. 131), “essa marca psíquica é produto sedimentado através dos séculos, da imposição de um estigma de inferioridade imputado à mulher por uma consciência patriarcal, que nega o feminino e lhe atribui uma qualidade negativa”. Além disso, “Para o patriarcado, a natureza é torpe e suja; por isso precisa ser submetida aos padrões pedagógicos da civilização, representada pelo masculino. A relação da mulher com a natureza é também alvo de ataque dessa consciência, que precisa alienar a mulher do seu substrato psíquico, fazer uma cirurgia de assepsia na sua alma. Arrancadas as suas raízes psíquicas, a mulher perde toda sua identidade como ser feminino; ela não pode mais se guiar por suas leis internas, mas pelos padrões externos ditados pela consciência patriarcal” (1993, p. 121).

Ilustração feita por Luciana para a obra Macabéa: Flor de Mulungu de Conceição Evaristo

Os espaços de criação foram, por muitos séculos, negados para nós. Ao feminino atribuía-se um papel marginalizado e inferior. Quem realmente poderia nos ouvir? E apesar desse sistema de alienação e controle construímos práticas, saberes e códigos de sobrevivência onde nossa verdadeira dimensão criativa supera os mecanismos de opressão.

Ao nos voltarmos para a natureza mítica das Grandes Mães, forças lunares de vida e morte, retornamos nas profundezas das cavernas possuidoras do fogo e desenhamos a memória em nossos corpos e rochas.

As mulheres dos povos originários do Brasil são imensas artistas e mantenedoras de memória. Baniwas, Makuxis, Kuikuros, Asurinis, Karajás, Xicrins, Apinayés, tantas etnias que apesar do genocídio promovido pela invasão de colonizadores, continuaram transmitindo seus valores culturais através de histórias impressas nos corpos, cerâmicas, saberes milenares como os das mulheres Kadiwéu onde Darcy Ribeiro destaca em seu belo livro Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza: “Os antigos ideais da cultura Kadiwéu que honraram no homem a coragem, o herói, e na mulher o virtuosismo, a artista, continuam vivos apenas para elas. Não é de se estranhar, portanto, que a mulher seja a artista criadora por excelência; um ou outro homem pode ter aptidões e virtuosismos reconhecidos por todos, mas os verdadeiros artistas são sempre as mulheres. E a expectativa geral é de que a emulação por obras cada vez mais perfeitas se faça sobretudo entre elas” (2016, p. 216).

Portanto, somos criadoras de memórias ancestrais, alimentadas pelas veias placentárias, onde nosso Axé, força primordial é ligado ao dos descendentes. A velha não existe sem a criança, e o útero é o vazio criativo que acolhe vida, morte e renascimento.

Nesse cruzo do projeto Umbigo Mãe, saúdo aos grãos matrilineares, sobretudo às mulheres indígenas, negras, mestiças ribeirinhas e nordestinas da minha família e dessa terra avermelhada, tingida de sangue e ocre. 

Terra que se refez em um imenso assentamento tupi africano, de uma mãe terra que precisamos restituir, honrar e alimentar com uma criação amorosa. Saúdo nossas velhas que são o elo com nossas histórias, com os vestígios que precisam ser revolvidos para que o nosso próprio eu continue.

“A pele da mãe é o filtro semântico e sensorial da relação da criança com o mundo” (Le Breton, 2021, p. 229). Volto ao início, ao sorriso generoso e belo de Mãe Martha ao dizer que “o candomblé é das mulheres”. 

Penso que esse é o momento de ouvir mais a mulher, a terra, de entender cultura como fluxo, de perceber outra cosmovisão, no dizer de Ailton Krenak, “cultura é um movimento dinâmico, vivo”.

O terreiro do mundo é coletivo.

Referências

CAVALCANTI, Raíssa. O casamento do sol com a lua: uma visão simbólica do masculino e do feminino. 9. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.

COCCIA, Emanuele. A vida sensível. [s.l]: Cultura e Barbárie, 2012.

LE BRETON, David. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2021.

RIBEIRO, Darcy. Kadiwéu: ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza. São Paulo: Global Editora, 2016.

SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte: Pade, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

Sobre a autora:

Luciana Nabuco

Jornalista, tradutora, escritora, artista visual, nasceu no Acre e desde 2003 trabalha com a temática afro-indígena brasileira. Em 2012 escreveu e dirigiu o documentário “Mãos feitas de Fé sobre rituais do candomblé que foi exibido no

Benin. Realizou diversas exposições de suas pinturas no Brasil e na França. Em

2013 é iniciada no terreiro de matriz africana Casa de Oxalá e Oxum, com muito amor pelas mãos de Mãe Martha de Oxoguian, o terreiro é oriundo da Casa branca de Salvador.

Autora e ilustradora de livros infantis e juvenis como “Okan, a casa de todos nós” sobre memória iorubá publicado pela editora Quase Oito. Ilustrou outros títulos como “Nuang, caminhos da liberdade” (Editora Piraporiando), “Mila, a gata preta” escrito por Marcelo Moutinho (Editora Oficina Raquel), “Orikis, histórias de terreiro”, escrito por Luis Antonio Simas (Editora Hedra/ selo Tulipa), “Macabéa, flor de mulungu”, escrito por Conceição Evaristo (Editora Oficina Raquel).

Como escritora publicou o livro de poesias “Imigram meus Pássaros” e o livro de contos “Nossas almas murmuram na sombra” (Editora Litteralux). Em 2024 junto com Pedro Ivo Frota idealizou o espetáculo “Alegrai” em cartaz na Unicirco Marcos Frota, realizando a dramaturgia, roteiro, figurinos e cenário. Em 2025 lançou na Bienal do Rio a antologia “Nossos passos vem de longe” (Editora Nova Fronteira) junto com as autoras Conceição Evaristo, Eliana Alvez Cruz, Cidinha da Silva, Ana Paula Lisboa.


Redação: Luciana Nabuco

Foto: Miguel Bepkukenhti

Ilustração: Luciana Nabuco

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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