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v. 3, n. 7, jul. 2025
A biblioclastia: compreendê-la para enfrentá-la. O Coletivo Basta Biblioclastia e o Vocabulário sobre biblioclastia, por Mela Bosch

A biblioclastia: compreendê-la para enfrentá-la. O Coletivo Basta Biblioclastia e o Vocabulário sobre biblioclastia, por Mela Bosch

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A biblioclastia: compreendê-la para enfrentá-la. O Coletivo Basta Biblioclastia e o Vocabulário sobre biblioclastia

Mela Bosch
bastabiblioclastia@gmail.com

A biblioclastia, que indica a destruição intencional de livros, é uma palavra que vem ampliando seus significados. Inicialmente, os atos biblioclásticos eram vistos como ações de indivíduos que, por perversão ou dogmatismo, destruíam suportes do conhecimento. Depois, passaram a incluir ações autocráticas ou surtos de obscurantismo social, como queimas de livros e destruição de bibliotecas — da Biblioteca de Alexandria às fogueiras de livros promovidas pelos nazistas. No século XX, seu escopo foi aprofundado, passando a incluir ações premeditadas de apagamento cultural em contextos de guerra, bem como práticas de obstrução ao acesso equitativo ao conhecimento durante períodos coloniais e regimes ditatoriais. Tais práticas envolviam não apenas a destruição e a censura, mas também a perseguição a bibliotecários, autores e leitores. No século XXI, essas situações persistem e se ampliam, afetando não apenas livros, bibliotecas e arquivos em formato físico, mas também os suportes digitais.

Compreender os alcances da biblioclastia na atualidade é fundamental, pois as palavras não são apenas palavras — elas têm o poder de configurar e antecipar ações. Em alguns casos, uma nova expressão serve para nomear um tipo de acontecimento que já existia, mas que ainda não havia sido conceituado. Um exemplo é o termo feminicídio, que trouxe uma ferramenta essencial para a prevenção e punição de crimes cometidos contra mulheres por sua condição de gênero.

No caso da biblioclastia, trata-se de um conjunto amplo de ações que convergem para um mesmo objetivo: impedir ou dificultar o uso equitativo de recursos informacionais, negando às pessoas a possibilidade de acessar o conhecimento que esses recursos carregam, comprometendo a convivência e a diversidade. Entre as consequências, está o apagamento ou a destruição do legado cultural de determinados setores da sociedade.

Para alcançar esse fim, são colocadas em prática formas variadas e complexas: negar ou desvalorizar o direito à leitura ou ao acesso a suportes de conhecimento a meninas, mulheres ou coletivos sociais como os povos originários; ou ainda, recorrer a normas e procedimentos obscurantistas e autocráticos que justificam a censura ou destruição de obras, bibliotecas, arquivos — incluindo a perseguição das pessoas envolvidas no cuidado e na mediação desses recursos. Não se trata apenas de violência explícita. Existem formas sutis e implícitas de destruir ou dificultar o acesso ao legado cultural de certos grupos sociais, mesmo em contextos democráticos.

A falta de compreensão da profundidade desses acontecimentos fez com que, até hoje, não exista nenhuma lei que previna, repare ou puna os atos biblioclásticos, nem que responsabilize seus autores — sejam eles atuantes nos âmbitos educacional, comunitário ou governamental.O Colectivo Basta Biblioclastiaa, surgido em 2020, propôs-se a avançar no essencial: difundir a compreensão de que todos e todas, em algum momento de nossas vidas, já nos deparamos com atos biblioclásticos. Em períodos coloniais, em contextos de guerra ou ditaduras, com censura e destruição de recursos, assim como prisões e até desaparecimentos de pessoas que atuam nesses campos — mas não somente nesses casos. Mesmo em contextos democráticos, isso atinge da comunidade bibliotecária e arquivista, que veem seus recursos de serviço cada vez mais restritos e sufocados; atinge também docentes e leitores, que sofrem com esses cortes ou até com fechamentos inexplicáveis no meio digital.

Logomarca do “Colectivo Basta Biblioclastia”

O trabalho foi desenvolvido por meio de diversas modalidades de difusão: seminários, encontros virtuais, palestras, conferências e um Encontro Internacional sobre o tema, que resultou em uma publicação anual — o Anuário Basta Biblioclastia. Em 2024, foi instituída uma cátedra livre sobre biblioclastia, com periodicidade anual, coordenada por Juan Pablo Gorostiga na Escola de Biblioteconomia da Universidade Nacional de Córdoba.

Para viabilizar todas essas ações, foi necessário resgatar um importante repertório técnico e profissional — como a reunião de bibliografia sobre biblioclastia, especialmente em língua espanhola; a construção de um repositório de publicações sobre o tema; um formulário para o registro de atos biblioclásticos; e, de forma especial, a continuidade do desenvolvimento do Vocabulário sobre Biblioclastia.

Página inicial do site: “Basta Bibliocastia”

Esse vocabulário possui uma estrutura de tesauro — ou seja, apresenta breves definições por meio de notas de escopo e estabelece relações entre termos gerais, específicos e correlatos, permitindo compreender o sentido de cada palavra a partir de suas conexões com outras.

O projeto foi iniciado por Mela Bosch e Tatiana Carsen em 2015, no CAICYT, o instituto de informação e comunicação científica do CONICET, agência científica nacional da Argentina. Contamos com o respaldo de bibliotecários internos e externos para a busca de bibliografia, assim como com o suporte do inovador servidor semântico do CAICYT. É nesse ambiente que o Vocabulário permanece hospedado até hoje — e cuja visita recomendamos — agora ampliado com recursos gráficos inteligentes.

O desenvolvimento do vocabulário foi interrompido em 2017, tendo sua continuidade retomada em 2023, como parte dos Projetos Participativos do Coletivo Basta Biblioclastia.

A importância e a originalidade desse vocabulário residem, além de ser o primeiro dedicado ao tema, na rica coleta terminológica, baseada inicialmente em uma estrutura fundamentada nas relações entre poder e saber, conforme propostas pelos filósofos Michel Foucault e Gilles Deleuze. À medida que avançávamos na coleta de dados, percebemos que a biblioclastia surgia como um crime sem vítimas visíveis, exceto pela perda do acesso ao conhecimento. Assim, passamos a propor uma apresentação das relações terminológicas com alcances sócio-históricos.

Página inicial do site “Vocabulario controlado sobre Biblioclastia”

Essa mudança de perspectiva foi trazida por uma das organizações que sempre impulsionaram o Coletivo Basta Biblioclastia: a Comissão de Homenagem Permanente aos Trabalhadores de Bibliotecas Desaparecidos e Assassinados pelo Terrorismo de Estado, cujos representantes são Silvia Fois, em Córdoba, e Marcel Bertolesi, em Buenos Aires, Argentina.

Assim, graças ao importante trabalho de recuperação documental dessa Comissão — somado à contribuição dos estudantes e participantes da cátedra livre, do Encontro Internacional, entre outros eventos —, ampliaram-se as possibilidades de compreender e apresentar os alcances da biblioclastia, especialmente no século XXI.

Neste momento, tanto no Vocabulário sobre Biblioclastia quanto nas atividades do Coletivo Basta Biblioclastia, tornamos evidente que os atos biblioclásticos, por parte de seus perpetradores, não são, em contextos de guerra, um efeito colateral, nem, em regimes democráticos, simples ajustes orçamentários. A biblioclastia diz respeito a todas e todos nós: seus atos obscurantistas — explícitos ou implícitos — constituem uma arma para o apagamento cultural, uma metodologia para restringir presenças, invisibilizar ou distorcer a percepção social de grupos considerados indesejáveis por projetos autocráticos, regimes dogmáticos ou tendências políticas ultradireitistas. Entre esses grupos estão: mulheres empoderadas, infâncias, pessoas com deficiência, diversidades sexuais, povos originários, comunidades locais, entre outros. Esses ataques e apagamentos abrem caminho para a concretização de formas extremas de violência, como o genocídio — e, em especial, o genocídio cultural. O desafio que se impõe hoje é enfrentá-los a partir da vida cotidiana, com conhecimento, reflexão e, sem dúvida, também com ações solidárias, resistentes e resilientes.

Sobre a autora:

Mela Bosch

Consultora independente em Linguística e Gestão Documental, sediada em Milão. Ex-diretora do Centro de Información Científica y Tecnológica (CAICYT-CONICET), Argentina. Professora aposentada do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Nacional de La Plata, Argentina.

Licenciada em Letras com especialização em Linguística pela Universidade Nacional do Nordeste (Argentina), com formação complementar em Engenharia de Software (Argentina), E-learning (Milão) e Gestão Documental (Barcelona).


Redação e Fotografia: Mela Bosch

Tradução: Pedro Ivo Silveira Andretta

Diagramação: Ana Júlia P. de Souza


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