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v. 2, n. 5, maio 2024
A Salvaguarda das Coleções Arqueológicas de Rondônia, por Gilcimar Barbosa e  Carlos Alberto Costa

A Salvaguarda das Coleções Arqueológicas de Rondônia, por Gilcimar Barbosa e  Carlos Alberto Costa

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A Salvaguarda das Coleções Arqueológicas de Rondônia

Gilcimar Costa Barbosa e  Carlos Alberto Santos Costa

costab@unir.br | carloscosta@ufrb.edu.br

No Brasil, sobretudo a partir dos anos 2000, ocorreu um grande crescimento das coleções arqueológicas. Essa realidade sem precedentes se formou, especialmente, pela conjunção de dois fatores: a) o aumento do número de obras de infraestrutura de médio e grande porte, como a construção de rodovias, ferrovias, hidrelétricas e linhas de transmissão de energia elétrica, distribuídas por todas as regiões do país; e b) a implementação dos projetos de Arqueologia Preventiva¹, realizados como condição legal e normativa para a aprovação e execução dessas obras. A materialidade resultante desses estudos foi encaminhada para os museus e instituições de guarda e pesquisa do patrimônio arqueológico, que em razão de não estarem preparados para as fortes demandas que receberam, hoje, estão saturados e com a execução dos seus processos internos prejudicados.

Esse cenário, e mais precisamente o contexto de Rondônia, nos serviu de base para uma pesquisa de mestrado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia e Patrimônio Cultural (PPGap) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Utilizamos a Musealização da Arqueologia² como campo horizonte de percepção da realidade e o Estudo de Caso como base fática para a sua apreensão, quando procuramos perceber se os museus e as instituições de guarda e pesquisa atendiam as premissas que justificam os esforços para a preservação do patrimônio arqueológico, fomentando os valores científicos e promovendo o status de símbolos capazes de evidenciar as noções de identidade, memória e pertencimento. Em última análise, queríamos entender se os trabalhos de Arqueologia Preventiva e os esforços de salvaguarda permitiam a conversão do patrimônio arqueológico em herança social.

A pesquisa propriamente dita implicou, primeiro, na discussão sobre os dados das entrevistas realizadas com representantes de instituições que salvaguardam acervos formados em Rondônia; no segundo momento, procedemos ao levantamento de portarias de pesquisa³, com a finalidade de compreender e classificar o volume de projetos de Arqueologia; finalmente, apresentamos experiências no exterior e no Brasil, nas quais a forma de atuar substitui a lógica do modelo clássico do museu tradicional – em que as equipes elaboram as exposições distante das comunidades representadas –, por abordagens colaborativas pautadas pelo estreitamento da relação entre museus, acervos arqueológicos e comunidades.

Primeira página do artigo “Patrimônio Arqueológico em Rondônia”, publicada na revista Museologia e Interdisciplinaridade

Na primeira parte da investigação, foram convidadas a participar das entrevistas representantes de instituições que mais realizaram a guarda legal de acervos arqueológicos ao longo das duas últimas décadas. A referida guarda legal é conhecida como “endosso”, que corresponde ao ato de avalizar trabalhos arqueológicos, garantindo que os acervos coletados tenham a adequada destinação de salvaguarda. De um total de dezoito espaços de salvaguarda, selecionamos onze para a pesquisa; entretanto, conseguimos retorno de cinco instituições.

No Museu Regional de Arqueologia de Rondônia, a interlocutora foi a historiadora e arqueóloga Maria Coimbra. Lá, os aspectos destacados referem-se ao fato de o museu sofrer com as ingerências praticadas pelos gestores municipais. A ausência de funcionários estritamente designados a atuarem no museu é outra questão de difícil manejo, além da baixa frequência com a qual os acervos são retroalimentados por pesquisas e ações de comunicação.

A professora Juliana Santi foi a interlocutora junto a Reserva Técnica (RT) do Departamento de Arqueologia (DARQ) da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). O espaço conta com boa infraestrutura, tendo potencial para se tornar uma das boas referências de salvaguarda de acervos arqueológicos no plano nacional. O prédio tem a dimensão de 2.127,38 m² de área construída e conta com boa cobertura de mobiliário e equipamentos. As coleções são retroalimentadas por pesquisas de monografia, dissertações e teses. Existe forte preocupação com a utilização pública e social dos acervos, sobretudo quanto a desmistificação de preconceitos historicamente direcionados aos povos originários.

Carlos Alberto Santos Costa atua como docente na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Para o Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da Universidade de São Paulo (USP), tivemos a professora Maria Cristina Oliveira Bruno como entrevistada. Ela avalia que os acervos do MAE estão entre os de maior relevância científica e social do país, embora se desconheça exatamente quais e quantas coleções derivam de Rondônia. Os trabalhos colaborativos junto aos povos originários têm marcado a forma como a instituição pauta a conduta na atualidade. Há interesse na restituição de acervos, porém existem impeditivos decorrentes das limitações das normativas impostas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

No Museu de História Natural do Mato Grosso, conversamos com a coordenadora Enir Maria e a arquiteta Vitória Zanquetta. A gestão dessa instituição é feita mediante acordo firmado entre o governo estadual e o Instituto ECCOS. Os endossos representam a principal via de entrada de coleções. Não existem dados detalhados acerca das coleções com origem em Rondônia. Os acervos não foram retroalimentados por pesquisas e ações mais amplas de divulgação. Assim como no caso do MAE, há interesse na restituição dos bens arqueológicos ao seu estado de origem.

Por fim, no Laboratório de Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas (LASCA), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foram entrevistados o coordenador e professor André Luis Ramos Soares e o museólogo Bernardo Duque de Paula. Entre os anos de 1994 e 2014 a instituição registrou um aumento exponencial de acervos, quando saiu de 13 mil para 200 mil itens. As informações sobre o quantitativo e as características das coleções com origem em Rondônia não estão sistematizadas, bem como não houve ações de ampliação do potencial informativo. Há forte interesse na restituição desses bens para o território de origem.

A respeito da análise das portarias de pesquisas, num primeiro recorte cronológico, entre os anos 2000 e 2016, os resultados apontaram que os endossos institucionais foram majoritariamente fornecidos por instituições de fora do estado de Rondônia. A justificativa para o “êxodo” das coleções para outras unidades da federação foi, sobretudo, o fato de até 2009 o Estado não possuir instituições de guarda habilitadas pelo IPHAN. Para o segundo recorte cronológico, que vai de 2017 a 2022, ocorre uma inversão de tendência. Essa inversão decorre das criações do Museu Regional de Arqueologia de Rondônia e da RT/DARQ/UNIR – que levou o estado a reunir efetivas condições técnicas de salvaguarda das coleções geradas em Rondônia – e da mudança do marco infralegal, a Instrução Normativa IPHAN nº 001/2015, que agora passou a determinar que a guarda das coleções arqueológicas seja feita prioritariamente o Estado de origem.

O terço final da pesquisa traz exemplos de abordagens colaborativas, como respostas às experiências globalizantes de formação de acervos. Nos Estados Unidos, no National Museum of the American Indian (NMAI), o foco está voltado para o estudo, preservação e exposição da vida, história, arte, literatura e história dos “nativos”, onde a variedade e a diferença assumem lugar central na mensagem visual do museu. De Vancouver, Canadá, vem o exemplo do Museum of Anthropology of the University of British Columbia (MoA), que privilegia o trabalho colaborativo e direciona os esforços para a dimensão estética e para o pluralismo cultural dos objetos indígenas. No Brasil, apontamos a exposição “Os primeiros brasileiros” como uma experiência que buscou criar novos padrões de construção da diferença, de desconstrução e reconstrução das múltiplas formas de representação do passado, na qual os grupos indígenas decidiram as informações e os efeitos políticos daquilo que foi apresentado na mostra. Esses, dentre outros exemplos, têm o potencial de diminuir a assimetria de forças existente entre comunidades indígenas representadas nas exposições dos museus, na medida em que a seleção das informações e o que deveria ser representado para a transmissão pública sobre grupos indígenas do passado e do presente foi selecionado pelos próprios povos indígenas. Ou seja, houve uma inversão da lógica corrente: ao invés dos outros falarem sobre os indígenas, eles mesmos falaram sobre si.

Essas experiências podem ser reproduzidas, mas para tanto deve haver a associação entre os princípios da preservação e o uso social e público do patrimônio. Quando refletimos se a Musealização da Arqueologia dá conta de inverter a “estratigrafia do abandono”4 dos acervos arqueológicos nos museus e nas instituições de guarda e pesquisa para atender as premissas que justificam o esforço empenhado na preservação desses bens, a resposta é afirmativa: sim. Entretanto, para o caso dos acervos “exilados” em outros territórios, o processo de patrimonialização não está justificado, pois prevalecem a ausência de identificação e a desconexão com a historicidade desses referentes culturais.

Referências:

COSTA, Gilcimar Barbosa; COSTA, Carlos Alberto Santos. Patrimônio arqueológico de Rondônia: realidades institucionais. Museologia & Interdisciplinaridade, Universidade de Brasília, v. 12, n. 24, p. 90–113, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.26512/museologia.v12i24.48805 . Acesso em: 24 mar. 2024.

BARBOSA, Gilcimar Costa. Patrimônio arqueológico de Rondônia: realidades institucionais. Dissertação (Mestrado em Arqueologia e Patrimônio Cultural) – Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Bahia, 2023. Disponível em: https://ufrb.edu.br/ppgap/egressas-os . Acesso em: 24 mar. 2024.

Nota dos autores:

[1] Ao contrário da Arqueologia Acadêmica, que se orienta por demandas da natureza do fazer científico, a Arqueologia Preventiva é motivada por interesses econômicos e desenvolvimentistas. Majoritariamente, a Arqueologia Preventiva é realizada no âmbito de licenciamentos ambientais de empreendimentos desenvolvimentistas, de engenharia e de exploração de recursos naturais do meio ambiente, feita como medida preventiva a potenciais danos ao patrimônio cultural. Tal prática tem permitido a geração de inúmeros acervos arqueológicos e a construção de informações singulares sobre as ocupações pré-coloniais e históricas do Brasil.

[2] Campo de estudo inaugurado pela museóloga Maria Cristina Oliveira Bruno, cujos esforços estão voltados à reflexão crítica e a implementação de procedimentos de natureza museológico-curatoriais aplicados às realidades e problemáticas em torno dos acervos arqueológicos.

[3] Como o patrimônio arqueológico é constitucionalmente entendido como bem da União, há a necessidade de emissão de portarias de pesquisa pelo IPHAN, publicadas no Diário Oficial da União, para a liberação de pesquisas arqueológicas.

[4] Ou seja, verifica-se o processo de isolamento do patrimônio arqueológico nas reservas das instituições de salvaguarda, encaixotados e depositados há muitos anos, sem a devida extroversão e uso social e público.

Sobre os autores

Gilcimar Costa Barbosa 

Museólogo vinculado a Reserva Técnica Arqueológica do Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Rondônia. Membro dos grupos de pesquisa Recôncavo Arqueológico pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Arqueologia na Amazônia Meridional pela Universidade Federal de Rondônia. 

Mestre em Arqueologia e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e Bacharel em Museologia pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.

Carlos Alberto Santos Costa

Professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Arqueologia e Patrimônio Cultural e no Bacharelado em Museologia. Pesquisador associado do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Ciências do Patrimônio da Universidade de Coimbra. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 2. Avaliador de cursos de graduação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

Doutor em Arqueologia pela Universidade de Coimbra. Mestre em Arqueologia pela Universidade de Coimbra e pela Universidade Federal de Pernambuco e Bacharel em Museologia pela Universidade Federal da Bahia.


Redação: Gilcimar Costa Barbosa e Carlos Alberto Santos Costa

Foto: Gilcimar Costa Barbosa e Carlos Alberto Santos Costa

Diagramação: Larissa Alves e Naiara Passos

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