Entrevista com Luma Prado sobre as demandas por liberdade apresentadas por indígenas nos tribunais da Amazônia portuguesa do século XVIII
Entrevista com Luma Prado sobre as demandas por liberdade apresentadas por indígenas nos tribunais da Amazônia portuguesa do século XVIII
Luma Ribeiro Prado
rprado.luma@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2019, a historiadora Luma Ribeiro Prado defendeu sua dissertação de mestrado em História Social na Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Carlos Zeron.
Natural de Minas Gerais, Luma Prado, de 33 anos, tem como hobby andar de bicicleta e praticar yoga. Profissionalmente, atuou no projeto “Memorial Jiré: a história Tenharim através da cultura material de seus anciãos (Terra Indígena Marmelos, Humaitá, AM)” e hoje no Instituto Socioambiental. Dedicando-se também na manutenção e curadoria do perfil História Indígena Hoje, uma plataforma intercultural de debates sobre questões indígenas e socioambientais.
Em sua dissertação, intitulada: “Cativos Litigantes: demandas indígenas por liberdade na Amazônia portuguesa (1706-1759)”, Luma aborda as demandas por liberdade apresentadas por indígenas escravizados aos tribunais da Amazônia portuguesa. E demonstra como indígenas, e sobretudo mulheres, foram aos tribunais da época com o objetivo de libertar a si e a seus familiares da escravidão a que estavam submetidas nas regiões do Pará e do Maranhão — e, na maioria das vezes, conseguiram.
Convidamos Luma para nos contar como se deu o desenvolvimento de sua pesquisa e projetos futuros.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o mestrado e o que te inspirou na escolha do tema da dissertação?
Luma Ribeiro Prado (LRP): Na História, há muitas lacunas a serem preenchidas no campo da história indígena, que vem sendo escrita numa perspectiva crítica há pouco mais de 30 anos, se considerarmos como seu marco inaugural a publicação do livro História dos Índios no Brasil (organizado pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha), em 1992. Em minha pesquisa de mestrado, fui animada a preencher um pouquinho dessa lacuna, ao estudar a via jurídica como caminho de resistência de indígenas à escravidão e, complementarmente, a escravização indígena na Amazônia. A escolha do tema não se justifica apenas por ser pouco conhecido, mas porque o acesso de indígenas, em sua maioria mulheres, na justiça em período tão recuado, o século 18, é espantoso e extraordinário – dado o necessário aprendizado da língua portuguesa e do funcionamento intrincado das instituições por indígenas que, muitas vezes, foram inseridos forçosamente no contexto colonial – mas também por poder inspirar e servir de referência para os advogados e advogadas indígenas contemporâneos.
DC: Quem será o principal beneficiado dos resultados alçados?
LRP: Meus colegas historiadores podem se beneficiar com os resultados obtidos, pois as demandas indígenas por liberdade são anteriores às demandas afrodiaspóricas, o que joga luz tanto na escravidão indígena (tema marginalizado na historiografia brasileira) quanto na resistência dos povos originários. Professores podem e muito se valer da pesquisa e ainda do kit didático produzido com fontes da investigação – disponível no site do Laboratório de Ensino e Material Didático do Departamento de História da FFLCH-USP – para trabalhar com o tema em sala de aula, contribuindo com a aplicação da Lei 11.645, de 2008, que determina o ensino de histórias e culturas afro-brasileiras e indígenas na educação básica. E, fundamentalmente, para os povos indígenas a pesquisa reitera que a resistência de seus antepassados vem de longe e que, já no século 18, mulheres e homens indígenas usaram as armas dos colonizadores, no caso, lutaram na justiça por melhores condições de trabalho e de vida. Assim, a pesquisa pode inspirar e fortalecer a luta indígena e de seus apoiadores.
DC: Quais as principais contribuições que destacaria em sua dissertação para a ciência e a tecnologia e para a sociedade?
LRP: Para a sociedade brasileira, a pesquisa é capaz de fornecer subsídios para entendermos um tema um tanto ocultado de nossa história, a escravidão indígena. Com isso, teremos mais elementos para entender o massacre a que foram submetidos os indígenas no Brasil. No processo de colonização, teve invasão, roubo de terras, guerras e epidemias, mas também teve e muita escravidão.
DC: Seu trabalho está inserido em que linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação? Por quê?
LRP: Cativos litigantes é uma pesquisa em História Social, história social da justiça e história social do trabalho. Eu procurei entender como os povos indígenas se valeram dos mecanismos jurídico-administrativos e como essas instâncias jurídicas funcionaram na colônia, especificamente no Estado do Maranhão e Grão-Pará no século 18. É ainda uma pesquisa que considera a variável trabalho como fundamental na análise daquele contexto, seja trabalho escravo ou outras formas de trabalho compulsório. Gênero e idade são mais duas variáveis imprescindíveis no estudo.
DC: Citaria algum trabalho ou ação decisiva para sua dissertação? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
LRP: O artigo da professora Beatriz Perrone-Moisés “Índios livres e índios escravos”, que faz parte do livro História dos Índios no Brasil, foi minha porta de entrada no tema. Ao lê-lo, me deparei com os procuradores dos índios e deduzi: se existiram procuradores dos índios no período colonial, os indígenas moviam ações na justiça em período tão recuado. Instigada resolvi pesquisar o tema e fui atrás de bibliografia e fontes. A autora, Perrone-Moisés, fez parte do NHII – Núcleo de História Indígena e do Indigenismo, antigo centro de pesquisa da USP, e hoje é professora no Departamento de Antropologia da FFLCH-USP.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
LRP: Iniciei a pesquisa com foco nos indígenas litigantes, trabalhadores escravizados que moveram demandas por liberdade nos tribunais da colônia e em Portugal. Me pareceu espantoso que mulheres e homens nativos conseguissem acessar os tribunais no século 18, já que apenas na Constituição de 1988 indígenas e suas comunidades foram considerados pelo Estado brasileiro sujeitos plenos de direito, capazes de entrar na justiça. Assim, comecei a pesquisar com foco nos sujeitos, no protagonismo indígena. Porém, ao longo da investigação entendi que era necessário situar os indígenas no contexto desfavorável que foram inseridos: numa sociedade colonial sustentada pela exploração dos trabalhadores indígenas, escravizados e submetidos a outras formas compulsórias de trabalho. Junto desse enquadramento, distribui as evidências da pesquisa nos diversos níveis de observação. Assim, foram consideradas quanto aos agentes: os litigantes como sujeitos preferenciais de análise conviveram com os senhores de escravos, os integrantes dos tribunais e os membros da administração colonial; todos considerados em subgrupos e grupos, grupos opostos a outros grupos. As evidências foram ainda distribuídas e consideradas de acordo com os seguintes espaços: sertão/cidade, colônia/metrópole, cativeiro/tribunal. Levei em consideração ainda, durante toda a análise e escrita do texto, três questões transversais: liberdade e escravidão, legislação e prática, além da dialética entre sujeito e estrutura.
DC: Quais foram as principais dificuldades no desenvolvimento e escrita da dissertação?
LRP: Contei com o apoio financeiro fundamental do CNPQ e da Fapesp, órgão de fomento à pesquisa do estado de São Paulo, para a realização da pesquisa durante dois anos. Porém, o mestrado na História Social do DH- USP, à época, tinha duração de até 3 anos e 4 meses, tempo que aproveitei integralmente. Assim, no período descoberto pela bolsa, foi difícil conciliar trabalho e pesquisa.
Além disso, senti muita dificuldade na redação do primeiro capítulo do trabalho que compunha o relatório de qualificação. Após o exame de qualificação, me propus a pensar sobre esse problema coletivamente, discutindo escrita acadêmica. Assim, junto com colegas, fundamos um grupo de escrita acadêmica. Entender a escrita como técnica e aprender estratégias com professores e pesquisadores foi fundamental para fazer a escrita deslanchar. Como saldo final: aprendi muito no processo – a pesquisar e a escrever – e obtive reconhecimento, ao ter sido vencedora do Prêmio História Social da USP, na categoria dissertação, em 2020. Ademais, a dissertação deu origem ao livro Cativas litigantes, recém- publicado pela Editora Elefante.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante este tempo?
LRP: Eu sou de Minas Gerais e vivo e estudo em São Paulo desde a graduação. Durante o começo do mestrado, visitei minha família com menor regularidade. No entanto, ao longo do processo, entendi que era preciso preservar os finais de semana de descanso e retomei as visitas frequentes a Minas e aos meus.
DC: Agora que concluiu a dissertação, o que mais recomendaria a outros mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
TF: Aos historiadores em formação, eu diria para confiar nas fontes. A documentação e a análise das fontes me deram confiança no trabalho e foram o chão da minha pesquisa e podem ser o de vocês também. Esse procedimento metodológico faz com que as evidências, os resquícios do passado, venham antes do que os pressupostos teóricos, o que penso ser recomendável. Aos mestrandes, em geral, recomendo praticar exercícios, cultivar os finais de semana, os amigos e os dias de descanso. Essas atividades serviram tanto para preparar meu corpo e cabeça para a rotina intensa da pesquisa e escrita quanto para sedimentar as ideias e maturar o raciocínio.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o mestrado? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
LRP: Fiz tudo quanto pude no período em que recebi bolsas de estudo. Participei dos Seminários Teóricos e Práticos em Metodologia da Pesquisa em História, grupo semanal coordenado pelo prof. Carlos Zeron, meu orientador. Paralelamente, fundei e coordenei o grupo de escrita acadêmica. E, em alguns semestres, fiz parte do LEMAD-DH-USP, onde produzi material didático sobre história indígena, procurando conectar Academia e escola. Sempre que solicitada, divulguei meu trabalho, como no Nexo Jornal, na Revista Galileu e no Jornal da USP. Publiquei, recentemente, o livro “Cativas litigantes” (Editora Elefante, 2024).
DC: Desde a conclusão da dissertação, o que tem feito e o que pretende fazer em termos profissionais?
LRP: Com o fim do mestrado, procurei firmar meu caminho profissional. Trabalhei como professora de história em escola particular. Produzi, revisei e dei pareceres para materiais didáticos, com um olhar atento para a aplicação da sobredita Lei 11.645/08. Ainda nesse eixo de atuação, ministrei cursos de formação de professores sobre temática indígena na escola na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e no setor de extensão da FFLCH-USP, entre outros. Paralelamente, atuei na história pública e apoio às lutas indígenas, no projeto História Indígena Hoje (no instagram e facebook). Continuei enveredando por esse caminho e também na comunicação, ao trabalhar no Observatório do Agronegócio do Brasil, o De Olho nos Ruralistas. E, atualmente, trabalho no Instituto Socioambiental, o que é uma realização, pois sempre pretendi atuar como indigenista, apoiando as lutas e os povos indígenas.
DC: Pretende fazer doutorado? Será na mesma área do mestrado?
TF: Pretendo, mas ainda não defini quando. Tempo de respiro, a pandemia da covid-19, a centralidade da causa indígena na política hoje e a necessidade de trabalhar – com mais dignidade, com direitos trabalhistas garantidos – tem me levado a adiar o doutorado. No entanto, pretendo me organizar para realizá-lo, em breve. E será na mesma área, história indígena, mas gostaria de propor mais conexões com a luta indígena contemporânea – talvez desenvolver um trabalho colaborativo ou enfocar um período mais recente.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
LRB: Teria feito intercâmbio em Portugal. Priorizei a busca e análise de fontes salvaguardadas nos arquivos do Norte, do Pará e do Maranhão. Poderia também ter investigado nos arquivos da ex-metrópole ao menos para coligir documentos, ainda que não tivesse tempo hábil para a análise.
Entrevistada: Luma Ribeiro Prado
Entrevista concedida em: 08 fev. 2024 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Pedro Ivo Silveira Andretta
Fotografia: Luiza Kame
Diagramação: Marcos Leandro Freitas Hübner