• contato@labci.online
  • revista.divulgaci@gmail.com
  • Universidade Federal de Rondônia, Porto Velho - RO
v. 2, n. 4, abr. 2024
A Biblioteconomia pode ser resistência: informação social e comunidade, por Patricia Mallmann

A Biblioteconomia pode ser resistência: informação social e comunidade, por Patricia Mallmann

Abrir versão para impressão

A Biblioteconomia pode ser resistência: informação social e comunidade

Patricia Mallmann

patriciamall@facc.ufrj.br

Atualmente, estou preocupada com o que entendo ser o real propósito da Biblioteconomia: fazer com que a informação chegue às pessoas que dela necessitam. Isso parece simples e simplório, mas a questão é mais complexa. Primeiro, porque para que a informação de fato “chegue” (e seja apropriada), é necessário que haja uma mediação (dialógica, pela ótica de Paulo Freire) que coloque as pessoas (ou sujeitos sociais) como autônomas e protagonistas no seu processo de construção de conhecimento; e segundo, porque é preciso que a Biblioteconomia vá às pessoas, todas elas (o povo), mediando informações que lhes sejam necessárias, interessantes, desejáveis e que lhes proporcionem identificação. Assim, me uno aos que acreditam que a Biblioteconomia deva se responsabilizar pela mediação de informação junto ao povo.

Minha trajetória acadêmica iniciou-se em um período de grandes mudanças sociais, com a informatização das relações políticas, econômicas e socioculturais. Na transição do século XX para o XXI, período em que se desenhava a “Sociedade da Informação” no Brasil, como era denominada a política apresentada no “Livro Verde” do Ministério da Ciência e Tecnologia1, publicado em 2001, muito se discutia sobre as possibilidades que o amplo acesso às então novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) poderiam proporcionar em relação à facilidade de acesso à informação e comunicação e o quanto isso teria o potencial de diminuir as desigualdades socioeconômicas.

Nas salas de aula da faculdade de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), eu olhava pela janela, que dava de frente para uma favela e entendia que esta polêmica renderia, pois parecia impensável que as previsões mais otimistas seriam realizadas para toda a população. 

Nesse período, comecei a me envolver com a questão dos telecentros comunitários, das bibliotecas comunitárias e, especialmente, com a temática da inclusão digital. Discutíamos o papel das bibliotecas como forma de trabalhar habilidades digitais e, sobretudo, informacionais em telecentros e bibliotecas, questões discutidas no campo da competência em informação. Como era de se esperar, a sociedade da informação no Brasil nunca se concretizou plenamente, e a política apresentada no Livro Verde se desfez em iniciativas individuais de diferentes instâncias governamentais, contando com uma grande mobilização também de bancos e empresas, assim como da sociedade civil, na figura das Organizações Não Governamentais (ONGs), para perseguir a tão sonhada inclusão digital da população brasileira.

Durante o mestrado (no convênio entre Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT e Universidade Federal Fluminense – UFF) e o doutorado (na UFRGS), continuei a trabalhar com o tema “inclusão digital”, no mestrado analisando uma política municipal e no doutorado pensando sua relação com informação e cidadania em um contexto de favela. O conceito de inclusão digital acabou se esvaziando, com seu uso indiscriminado em plataformas de campanhas governamentais, e passou a ser visto quase que somente como acesso à internet. Após esse período de qualificação acadêmica, me tornei professora do curso de Biblioteconomia e Gestão de Unidades de Informação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CBG-UFRJ) e passei a me dedicar mais à questão das bibliotecas comunitárias (ou sociais), a partir da coordenação de um projeto de extensão. 

Isso me leva ao momento atual, em que tenho me dedicado ao campo de estudos e práticas denominado Biblioteconomia Social (Crítica e Progressista), assim como ao conceito de informação social. Também tenho buscado resgatar a concepção dos estudos de comunidade, muito em voga na década de 1980 no Brasil, e discutir o conceito de comunidade na atualidade. A Biblioteconomia Social é um movimento que emerge em diversos países, com foco justamente na mediação de informação para o povo, e que chama a Biblioteconomia a se posicionar politicamente e a descolonizar suas práticas (visto que não existe isenção), não somente buscando incluir socialmente os usuários de informação, mas contribuindo para a autonomia dos sujeitos informacionais (até porque todo sujeito é informacional). E aí entra a discussão acerca dos conceitos “informação social” e “comunidade informacional”.

A informação social pode ser entendida por dois prismas: aquela que é trabalhada em serviços de informação e se direciona a contribuir com a vida em sociedade em seus mais diversos aspectos, seja no auxílio a uma grande parcela da população com dificuldades em lidar com a crescente burocracia digital seja no auxílio à localização de informações para uso cotidiano; por outro lado, se pode pensar a informação social sob a perspectiva de Erving Goffman, em seu livro “Estigma”, de 1963, no qual ele a compreende como aquela comunicada sobre a identidade social de um indivíduo, através de signos e símbolos.

Nessa linha de pensamento, informação social seria aquela construída socioculturalmente por diferentes grupos e comunidades, revelada através da apresentação social de um indivíduo, pela sua forma de vestir, falar, gesticular, se comportar, e pelas suas demais práticas sociais. E é nesse ponto que reside meu interesse pelos estudos de comunidade, nesse viés de construção sociocultural de informação, conforme Capurro e Hjorland, que argumentam, no artigo “O conceito de informação”2, que os critérios sobre o que é informação estão relacionados aos processos socioculturais e científicos de indivíduos em organizações sociais e domínios de conhecimento. Isso quer dizer que informação pode ter diferentes significados para diferentes comunidades ou grupos, que constroem, e mesmo representam, significados socioculturais e informacionais.

Conhecer uma comunidade e dialogar com ela, a fim de, então, planejar e implantar um serviço de informação, que lhe possibilite construir conhecimento e se (re)construir, me parece ser um caminho necessário para perseguir o propósito da Biblioteconomia. Em relação à “inclusão digital” brasileira, o que vemos hoje é que a disseminação das TIC propiciou a base material para uma ampla e nova dominação pela via da informação. O acesso precário à internet vendido a grande parcela da população em pacotes para uso em smartphones, aliado à deficiência de habilidades relacionadas à informação (busca, seleção, checagem etc.) e à geografia algorítmica da internet, deixa a sociedade situada entre “sociedade da informação” e a “desinformação”. A Biblioteconomia não pode resolver esses problemas, mas pode ser resistência a ele, pode atuar junto ao povo e aos movimentos sociais; mesmo as grandes bibliotecas especializadas e/ou universitárias podem se abrir para serviços de informação social, que podem ser bem planejados se em diálogo com as comunidades a serem atendidas.

Nota dos Editores: 

[1] SILVA, Cylon Gonçalves da; MELO, Lúcia Carvalho Pinto de (Coord.). Ciência, tecnologia e inovação: desafio para a sociedade brasileira – livro verde. Brasília: MCT/Academia Brasileira de Ciências, 2001. Disponível em: https://livroaberto.ibict.br/handle/1/859 . Acesso em: 07 abr. 2024.

[2] CAPURRO, R.; HJORLAND, B. O conceito de informação. Perspectivas em Ciência da Informação, v. 12, n. 1, p. 148–207, 2007. Disponível em:  https://doi.org/10.1590/S1413-99362007000100012 . Acesso em: 07 abr. 2024.

Sobre a autora:

Patricia Mallmann

Professora do Departamento de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membra do Grupo de Pesquisa Informação Social e Gênero da Universidade Federal de Rondônia.

Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestra  em Ciência da Informação pelo convênio entre Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e Universidade Federal Fluminense. Bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


Redação e Foto: Patricia Mallmann

Diagramação e Notas: Alex Sandro Lourenço da Silva

0

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Translate »
Pular para o conteúdo