
Editorial: Desbravando os territórios da Biblioteconomia, por Antonio Agenor Briquet de Lemos

Desbravando os territórios da Biblioteconomia
Antonio Agenor Briquet de Lemos
briquetdelemos@gmail.com
O pedido de vocês, de Rondônia, me faz recuar ao passado, aos tempos em que, quando cursava o primário, nos anos de 1940, seu estado ainda era território, sobre o qual, lá no Piauí, ouvia meu pai contar histórias tristes sobre o famigerado SEMTA, o Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia. Muitos deles nordestinos, identificados pela propaganda da ditadura de Getúlio Vargas como “soldados da borracha”. Um dia, adentrou em nossa casa, que, como era hábito, ficava com a porta aberta, no centro de Teresina, um moço que, revoltado e hostil, exigia que lhe déssemos algum adjutório, pois era um “soldado da borracha” que retornava a sua terra, o Ceará. Sua imagem, vestido de mescla, falando alto e com atitude obstinada, a mascar algo que não parecia ser fumo, não me saiu da memória. Nem a aflição de minha mãe a chamar os filhos menores para protegê-los do intruso.
O tempo passou. Foi-se a borracha e chegaram a soja e os bois. O território virou Estado. O menino de Teresina cresceu, foi para a cidade grande, estudou e acabou sendo bibliotecário, depois de sonhos que foram da diplomacia às ciências sociais, para não falar daquele impulso de um dia estudar entomologia, suscitado pelos desenhos do livro de Costa Lima sobre insetos do Brasil, lá nas estantes da biblioteca do Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, onde começara a trabalhar mal chegado aos quinze anos de idade.
Fez biblioteconomia em um curso que durava dois anos, e que só passou para três anos depois de os próprios alunos lutarem por isso. Surgiu a documentação e os jovens profissionais sentiam mais alento, numa terra com poucas bibliotecas públicas e onde o ensino universitário e suas bibliotecas estavam em situação de atraso generalizado. A meca, principalmente na antiga capital federal, eram os centros de documentação das repartições públicas. Prevalecia, em todas, a preocupação, e os mesmos dilemas, com a catalogação (LC ou Vaticana?) e a classificação (CDD ou CDU?) dos acervos. O usuário era apenas o leitor, mais potencial do que efetivo. Não havia métricas. E a mecanização (esse era o termo) ainda parecia limitada à emissão de holerites (como se diz em São Paulo dos contracheques de salários) pelos órgãos de pessoal.
Surgiam as primeiras tentativas de fazer catálogos de bibliotecas em listas com os chamados equipamentos periféricos que trabalhavam com cartões (perfuradoras, conferidoras, separadoras, impressoras etc.).
O menino que também ainda guarda na memória os aperreios pelos quais passou o pai, como jornalista, começou a perceber, depois de muito tempo, que sua biblioteconomia guardava e refletia os acontecimentos, e, principalmente, os acontecimentos de sua história pessoal, e da história e da ciência em geral. Ao consultar a Hemeroteca Digital Brasileira ali encontra o resultado do esforço secular de bibliotecários e guardiões anônimos que permitiram, com o apoio dos bibliotecários dos dias atuais e seus companheiros da área do que agora se chama tecnologia da informação, cumprir uma das grandes funções do trabalho bibliotecário, que é a difusão dos conhecimentos. E encontrou muitas informações de interesse para sua vida pessoal no labirinto à la Jorge Luis Borges das bibliotecas virtuais.
O menino, que aprendeu a ser tipógrafo aos nove anos de idade, entendeu que a biblioteconomia fazia parte de um encadeamento de atividades ligadas à produção e disseminação de informações. Fez boletins bibliográficos (disseminação seletiva de informações), trabalhou com tesauros (metadados), enfrentou censuras e procurou, pelos métodos de seleção, dificultar a circulação dos “maus livros”, como diria Ortega y Gasset, ou fake news, no jargão de hoje.
Viveu os tempos das buscas bibliográficas manuais, em índices e publicações de resumos que agora fazem parte da história. Viveu os tempos em que a cooperação nacional e internacional, esta, muitas vezes, mais importante do que a local, se fazia com base em interesses estratégicos de políticas de governo e, menos nos interesses de cartéis da indústria da informação. E que eram tempos de um viver mais para o adágio do que para o presto, mais para a missão do que para a comissão.
Mas também procura viver os novos tempos de uma biblioteconomia que continua à procura de respostas, insatisfeita, ajustando-se a uma época em que, paradoxalmente, os grandes objetivos continuam os mesmos, e os instrumentos, em sua essência, permanecem iguais, apesar da aparência diferente. Se deixou de compor textos tipograficamente, aprendeu a escrevê-los e editá-los no computador. Se não vai a bibliotecas de outras cidades para fazer pesquisas, aprendeu a utilizar a onlainização dos catálogos, sem perder a consciência de que, em qualquer nova situação de avanço tecnológico, o que contará para os bibliotecários será seu papel de mediadores entre informação, conhecimento e aqueles que buscam o que é o resultado da própria existência humana.
Hoje a luta pelo acesso à rede mundial de computadores é tão importante quanto à batalha daqueles que se envolveram na criação de bibliotecas públicas ou populares a partir da segunda metade do século XIX. Do mesmo modo que a luta pelo acesso livre ao conhecimento e pelo esclarecimento da população em geral sobre a disseminação de falácias, mentiras e pseudociências, não se pode esquecer que a preservação dos registros dessas falácias, mentiras e pseudociências também faz parte de sua missão.
Nosso passado, no Brasil, tem pouco mais de 200 anos, se contarmos a partir da chegada de Luís Joaquim dos Santos Marrocos, bibliotecário de dom João. Acompanhamos, a tropeções, o que acontecia nos países desenvolvidos. Chegamos a um ponto em que, como profissão, temos que nos voltar para oferecer à população, de uma forma que sempre busque a universalização do atendimento, e que vá do lado lúdico que o espaço da biblioteca tem a oferecer, até ao lado mais sisudo e acadêmico da informação especializada. Sem perder de vista que, para saber pesquisar, no território da ciência, inclusive da informação, será preciso saber fazer, no velho e eterno território das bibliotecas. Território onde, como neste editorial, sempre acontecerá o encontro entre passado, presente e futuro.
Aos criadores e redatores da Divulga-CI, os votos de que este seja um ponto de encontro duradouro para a interlocução não só entre os profissionais da informação mas também com a sociedade, que precisa deles para construir um mundo baseado na razão e na concórdia.
Sobre o autor
Antonio Agenor Briquet de Lemos
Professor aposentado do Departamento de Biblioteconomia da Universidade de Brasília. Foi bibliotecário-editor do Centro Pan-Americano de Febre Aftosa, da Organização Pan-Americana da Saúde. Organizou e dirigiu o Centro de Documentação do Ministério da Saúde. Dirigiu o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e a Editora Universidade de Brasília. Atuou como presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia, tendo sido responsável pela instalação desse órgão em Brasília. Responsável pela editora e livraria Briquet de Lemos.
Mestre pela Loughborough University. Especialização em Biblioteconomia Médica pela Emory University. Bacharel em Biblioteconomia pela Biblioteca Nacional.
Revisão: Alex Sandro Lourenço da Silva
Diagramação: Alex Sandro Lourenço da Silva