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v. 2, n. 2, fev. 2024
Editorial: O grito das invisíveis que ecoa na história, por Mellanie Fontes-Dutra e Ana de Medeiros Arnt

Editorial: O grito das invisíveis que ecoa na história, por Mellanie Fontes-Dutra e Ana de Medeiros Arnt

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O grito das invisíveis que ecoa na história

Mellanie Fontes-Dutra e Ana de Medeiros Arnt
dutra.mellanie@gmail.com | anaarnt@unicamp.br

Quando estávamos no ensino médio, diante de uma das decisões mais importantes até então (a escolha do curso na inscrição do vestibular) vivíamos uma dúvida que, arriscamos dizer sem muita ousadia, foi compartilhada por outras meninas na época: a ciência é um local que podemos estar?

Talvez, para um ouvinte, a melhor forma de responder a essa dúvida seria com o otimismo do amanhã, regado de um esforço suficiente para conquistar a posição que tu tanto almejas. Mas, infelizmente, otimismo não é um luxo que uma mulher cientista pode se dar, ao menos não sem uma grande e histórica luta por trás.

Segundo dados divulgados pelo Instituto de Estatística da UNESCO1, menos de 30% dos pesquisadores, no mundo, são mulheres. No caso do Brasil, essa porcentagem é visivelmente maior, somando 58% o número de bolsistas da CAPES, segundo um levantamento de 20222. Se estamos mais presentes, atualmente, onde estão nossas cientistas?

Parte dessa resposta se esconde em um sexismo nem-sempre-velado que existe no meio acadêmico. A participação das mulheres nas ciências exatas ainda é visivelmente menor do que a dos homens, e poucas de nós alcançam cargos mais altos, segundo reportagem da Folha3. Ainda não tivemos uma mulher na presidência do CNPq (desde 1951)4 e FINEP (desde 1967)5.

A análise do Parent in Science (PiS)6, publicada em 2023, revela facetas dessa realidade: apenas 14,7% das docentes de pós-graduação no Brasil tem uma bolsa de produtividade em pesquisa (PQ). A mesma análise do PiS, aponta que as mudanças positivas ainda sofrem de uma certa morosidade, ou são muito pequenas considerando a gravidade do problema. Além da baixa representação de mulheres dentro das bolsas PQ, há uma desigualdade racial considerando pessoas negras e indígenas e desigualdades regionais que acentuam as disparidades.

Ana Arnt é professora e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas e  coordena o projeto Divulgação Científica Blogs de Ciência da Unicamp.

Não é preciso ir muito longe numa busca através da história da ciência para ver exemplos de mulheres que foram intencionalmente apagadas, ou tiveram seus feitos creditados a um outro pesquisador. Temos o exemplo de Grunya Sukhareva7, que fez a caracterização de um menino com comportamentos parecidos com o que conhecemos sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA), cerca de duas décadas antes dos creditados “pais do Autismo”, Leo Kanner e Hans Asperger. Diversas possibilidades desse “esquecimento” e “não creditação” por seus pares às contribuições de Sukhareva foram levantadas, desde político-ideológicas a linguísticas. Fato é que Sukhareva foi creditada recentemente, e os anos de seu esquecimento não podem ser simplesmente apagados por essa reparação necessária, porém demasiadamente atrasada. 

Outro exemplo mais conhecido é o de Rosalind Franklin8 que, apesar de ter sido protagonista na descoberta da estrutura e molécula de DNA, por seus estudos com difração de raios X, nunca foi nomeada ao Prêmio Nobel9 e não teve reconhecimento sobre suas contribuições até, também, recentemente na história. O Nobel foi para Watson, Crick e Wilkins10, em 1962. Entre 1901 e 2023, 65 mulheres receberam o Prêmio Nobel11, sendo que um pouco mais da metade das laureadas (35) foram agraciadas nas últimas duas décadas (entre 2001-2023). São 65 mulheres em comparação com 905 homens laureados12, e quando olhamos para as diferentes áreas, essa diferença é ainda mais gritante. 

Em nosso tempo, quando fomos escolher a profissão (biomedicina e biologia), escutamos algo bem otimista, que poderíamos retomar para este momento: “está mudando”, “estamos tendo uma participação maior das mulheres na ciência”. Sim, a mudança vem acontecendo, no entanto a passos lentos e pequenos, insuficientes para resolver uma questão tão profunda e estrutural que afeta a vida de muitas brasileiras. O ano é 2023, e vemos pareceristas de análise da de bolsas PQ alegando13 que a gestação “atrapalhou” a carreira científica de uma pesquisadora. O ano é 2024 e vemos que, infelizmente, parece ser mais duro assumir que, de fato, existe disparidades de gênero14 tão impregnadas em nossos sistemas e condutas, do que focar nas mudanças que precisam ser feitas. O otimismo sem uma fundamentação de ações e políticas públicas não passa de mais um mecanismo para acharmos que temos um lugar, até percebermos que esse lugar não foi inicialmente pensado para nós.

Os tempos são outros, mudanças importantes vieram, mas estamos ainda longe de resolver um problema secular. Hoje, felizmente e graças às imensas contribuições de tantas mulheres que despontam na ciência, na divulgação científica e em tantas outras áreas, as meninas têm mais nomes de grandes cientistas para conhecer e citar para além do imenso legado de Marie Curie e Ada Lovelace. A televisão, os jornais, as redes sociais são espaços que mulheres cientistas ocupam e criam diferentes faces para o estereótipo do cientista que jaz na mente das pessoas.

Dizer que a luta continua, para uma ciência diversa, parece um clichê que finaliza este texto. Todavia, frente à evidente necessidade de ainda batalharmos por condições de igualdade e equidade, dentro do campo científico, é um constante lembrete: está melhor, mas longe do ideal. E nós não aceitaremos retrocessos. A diversidade na ciência é e deveria ser luta de todos, pois o conhecimento não deveria ser, ainda hoje, um espaço de privilégios para poucos.

[1] UNESCO. Women in Science. 2024. Disponível em: https://uis.unesco.org/en/topic/women-science  . Acesso em: 08 fev. 2024.

[2] BRASIL. Ministério da Educação. Capes. Pós-graduação brasileira tem maioria feminina. CAPES, 11 fev. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/assuntos/noticias/pos-graduacao-brasileira-tem-maioria-feminina . Acesso em: 08 fev. 2024.

[3] MADUREIRA, D. Mulheres são maioria dos cientistas no Brasil, mas quase nunca chegam  ao topo. Folha de S. Paulo, 1 jan. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/12/mulheres-sao-maioria-das-cientistas-no-brasil-mas-quase-nunca-chegam-ao-topo.shtml . Acesso em: 08 fev. 2024.

[4] BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. CNPQ. Dirigentes. Centro de Memória. 2024. Disponível em: https://centrodememoria.cnpq.br/Dirigentes.html . Acesso em: 08 fev. 2024.

[5] BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Finep. Histórico. 2024. Disponível em: http://www.finep.gov.br/a-finep-externo/historico  . Acesso em: 08 fev. 2024.

[6] PARENT IN SCIENCE. As Bolsas de Produtividade em Pesquisa: uma Análise do Movimento Parent in Science. Porto Alegre: Parent in Science, 2023. Disponível: https://www.parentinscience.com/_files/ugd/0b341b_91eeb05b5038438ba68e0a88ab29bbc3.pdf . Acesso em: 08 fev. 2024.

[7] ZELDOVICH, Lina. How history forgot the woman who defined autism. Spectrum News, v. 7, 2018. Disponível em: https://www.spectrumnews.org/features/deep-dive/history-forgot-woman-defined-autism/ . Acesso em 08 fev. 2024.

[8] BARTON, M. Rosalinf Franklin: forgotten pioneer of DNA. Past Medical History, 30 dec. 2019. Disponível em: https://www.pastmedicalhistory.co.uk/rosalind-franklin-forgotten-pioneer-of-dna/#:~:text=Rosalind%20Franklin%20is%20one%20of,she%20deserved%20at%20the%20time. Acesso em: 08 fev. 2024.

[9] ORESKES, Naomi. Rosalind Franklin Deserves a Posthumous Nobel Prize for Co-discovering DNA Structure. Scientific American, 1 oct. 2023. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/rosalind-franklin-deserves-a-posthumous-nobel-prize-for-co-discovering-dna-structure/ . Acesso em 08 fev. 2024.

[10] CRICK, F.; WATSON, J.; WILKINS, M. Speed read: Deciphering Life’s Enigma Code. Nobel Prize. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/1962/speedread/ . Acesso em 08 fev. 2024.

[11] NOBEL Prize awarded women. Nobel Prize. Disponível em: https://www.nobelprize.org/prizes/lists/nobel-prize-awarded-women . Acesso em 08 fev. 2024.

[12] RICHTER, Felix. The Nobel Prize Gender Gap. Statista, dec 8, 2023. Disponível em: https://www.statista.com/chart/2805/nobel-prize-winners-by-gender/   . Acesso em 08 fev. 2024.

[13] PARECER do CNPq cita ‘gestações’ em recusa de bolsa à professora; órgão investiga. Terra. 31 jan 2024 Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/educacao/parecer-do-cnpq-cita-gestacoes-em-recusa-de-bolsa-a-professora-orgao-investiga,03d393984e2ff73adb71a271fc1b9feb4g129lc9.html . Acesso em: 08 fev. 2024.

[14] OLIVEIRA, L; STANISÇUASKI, F.; VALIM, P. A quem a maternidade atrapalha?. Folha de S. Paulo, 1 fev., 2024. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/02/a-quem-a-maternidade-atrapalha.shtml . Acesso em 08 fev. 2024.

Mellanie Fontes-Dutra

Professora da Escola de Saúde da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos) e do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Alimentos do Instituto Tecnológico Nutrifor da Universidade do Vale dos Sinos. Consultora da Organização Pan-Americana de Saúde. Idealizadora e coordenadora da Rede Análise. Participa das redes União Pró-Vacina e  #TodosPelasVacinas.

Doutora e Mestra em Ciências Biológicas (Neurociências) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bacharela em Biomedicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Possui Pós-Doutorado em Ciências Biológicas pela Universidade Feevale e Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 

Ana de Medeiros Arnt

É professora do Instituto de Biologia, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Coordena o projeto de Divulgação Científica Blogs de Ciência da Unicamp.

Doutora e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Livre Docente em Ensino e Divulgação Científica pela Universidade Estadual de Campinas.


Normalização: Marcos Leandro Freitas Hübner

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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