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v. 2, n. 2, fev. 2024
Identidade e perspectivas em uma Ciência da Informação negra, por Gláucia Vaz

Identidade e perspectivas em uma Ciência da Informação negra, por Gláucia Vaz

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Identidade e perspectivas em uma Ciência da Informação negra

Gláucia Aparecida Vaz

glaucia-vaz@hotmail.com

Ser convidada a escrever minhas memórias sobre meu processo de formação e minhas perspectivas sobre os estudos relacionados à Ciência da Informação me colocam em pontos bem distintos de minha vida. Hoje me situo como uma pessoa negra, sem fazer questão da reivindicação de ser mulher, pois na lógica patriarcal e colonialista, nós, chamadas de mulheres negras, por séculos travamos uma luta teórica e na prática cotidiana em nos encaixarmos em algum aspecto ou espectro do feminino. Bell Hooks traz em seu livro “E eu não sou uma mulher: mulheres negras e feminismo” provocações e reivindicações sobre as mulheres negras serem consideradas socialmente como mulheres, humanizadas e digna de todo respeito dado até então às mulheres brancas, estas sim consideradas a verdadeira representação do feminino e da fragilidade. A fragilidade aqui neste contexto, mais do que fruto de uma articulação machista, é desde sempre pra nós dentro desse espectro feminino uma grande e cruel armadilha.

Angela Davis, em seu livro Mulheres, raça e classe também nos apresenta como se deu historicamente a construção do feminino socialmente aceito que sempre colocou mulheres brancas como esposas amáveis, mães zelosas, cuidadoras do lar, e dignas do amor do príncipe encantado, seu protetor. Às Mulheres negras, desde o processo de escravização foi lhe conferido apenas o lugar de reprodutora de mão de obra, força braçal também para os serviços na lavoura e objeto de desejo de seus senhores brancos, onde nasceu os mais cruéis processos de miscigenação do mundo, por meio de abusos. Mulheres negras nunca foram consideradas frágeis demais para realizar nenhum tipo de trabalho e o que se espera de corpos como este é apenas subserviência.

Fiz esse breve passeio pelas mentes de duas grandes pensadoras negras apenas talvez para tentar explicar em poucas linhas que hoje eu tenha percebido que não há motivos para reivindicar um espaço de ser mulher, nos moldes em que se conceitua o “ser mulher”. Prefiro ser “outra mulher”, a mulher capaz de se conceituar buscando suas raízes não ocidentais e longe de definições dadas por seus maiores algozes. Por isso hoje me sinto mais à vontade em me apresentar como pessoa, como sujeito em movimento, que tem buscado uma nova construção de mulher.

Comecei a minha graduação em Biblioteconomia como uma escolha bem consciente, já atuava como auxiliar de biblioteca e queria muito compreender de forma mais aprofundada os processos e os fluxos de informação, mas desde sempre quis pintar tudo de preto, e isso é uma parte importante sobre minha trajetória. Esqueci de mencionar que me descrevo como africanista também, e busco em África minha forma de pensar pesquisa e aplicação de práticas de trabalho. Mas lá no início não era bem assim, eu tinha a necessidade latente de fazer algo novo, mas não sabia nomear, ou determinar de que maneira isso seria feito. E voltando a forma de pensar africana, não me divido em fragmentos de sujeito que apresenta uma personalidade enquanto profissional e outra personalidade pessoal. Dessa maneira meu caminhar acadêmico e profissional caminhou e se desenvolveu junto com a concretização de minha identidade pessoal.

Por vir de um contexto de pobreza, tinha que aproveitar as oportunidades que surgiam e não exatamente fazer apenas o que gostava. Sendo assim, agarrei a primeira oportunidade de fazer pesquisa ainda na graduação, era um estudo bibliométrico voltado para a Arquivologia. A partir dessa pesquisa consegui estruturar propostas de estudos no mestrado e doutorado voltados para estudos de usuários de arquivos, nesse processo todos sempre apontavam minha escrita contestadora, que queria de toda forma tirar a Arquivologia de um lugar e colocar em outro, um lugar não colonialista, mais democrático e mais coletivo. Desenvolvi estudos sobre os currículos dos cursos e por fim um estudo direcionado às práticas informacionais de usuários de arquivos, sendo que neste último trabalho, feito no doutorado, já trouxe traços da necessidade de escrever sobre as relações étnico-raciais. E depois apliquei as práticas informacionais em um estudo sobre a Beyonce, que na verdade é um estudo onde pude desenvolver um instrumento de análise difusão e impacto de informação na Web. Obviamente que recebi muita resistência com todas essas propostas tão distantes da lógica ocidental de se pensar e organizar arquivos. Paralelamente a inserção dessa temática na ciência da informação já era feita de forma bem consolidada, eu só precisava oficializar por meio de escrita e ações.

Ao assumir como professora substituta na UFMG tive a oportunidade de inserir no PPC do curso participando do NDE, disciplinas que redesenhavam a Biblioteconomia na universidade, um pouco mais comprometida em construir teorias verdadeiramente aplicáveis ao contexto brasileiro e com menos necessidade de validação europeia e estadunidense. Daí percebi que esse era meu “negócio”, escrever, propor e estruturar ações para mudanças. Obviamente que colocar o que se pensa em ação é algo extremamente desafiador, visto que a temática sobre negros ainda não é prioridade nas instituições, que operam dentro de uma lógica racista, pois toda a estrutura do país é também racista.

Hoje ocupo uma cadeira de professora universitária adjunta, conseguindo já propor ao menos uma nova disciplina no curso onde atuo, onde articulo, leitura, literatura brasileira e representações de grupos historicamente marginalizados. Recentemente escrevi sobre desinformação racial no Brasil e nos estudos de pós-doutorado tenho discutido as representações de corporeidades negras nos museus brasileiros. Em minhas atuais orientações na graduação e pós-graduação tenho passeado por temáticas diversas, buscando no momento apenas ser ponte para que meus alunos consigam escrever sobre o que de fato desejam. Quero possibilitar que eles sonhem, como jamais me possibilitaram sonhar. Sim, sonhos também devem compor a academia, pois tenho grandes ambições, espero não somente uma ciência da informação decolonizadora, mas também quero e construo uma universidade não colonialista, livre de violências e espaço para crescimento de felicidade. Lembram que falei da minha forma africana de pensar? Pois é… também está presente aqui.

Tenho projetado apenas contribuir para a formação de pessoas da área da informação e da comunicação de maneira a garantir que a sociedade receba profissionais realmente preocupados em pensar em soluções que a beneficie, que inclua a todos e com uma prática baseada principalmente no respeito. Acredito que construindo isso, teremos ótimos pesquisadores, preocupados em devolver para as pessoas tudo que elas merecem.

Gláucia Aparecida Vaz

Professora da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisadora junto aos grupos de pesquisa: Organização e Representação da Informação e do Conhecimento de Recursos Imagéticos da Universidade Estadual de Londrina e Núcleo de Pesquisa Antirracismo – Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Doutora em Ciência da Informação, Mestra em Ciência da Informação e bacharela em Biblioteconomia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Desenvolve o Pós-doutorado junto a Universidade Estadual de Londrina.


Redação e Foto: Gláucia Aparecida Vaz

Revisão: Pedro Ivo Silveira Andretta

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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