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v. 1, n. 9, nov. 2023
Nas trilhas da Biblioteconomia e dos Estudos Literários: memórias e projeções sobre lá e aqui, por Wellington Marçal

Nas trilhas da Biblioteconomia e dos Estudos Literários: memórias e projeções sobre lá e aqui, por Wellington Marçal

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Nas trilhas da Biblioteconomia e dos Estudos Literários: memórias e projeções sobre lá e aqui

Wellington Marçal de Carvalho
marcalwellington@yahoo.com.br

Nasci em 23 de abril de 1982, na capital mineira, Belo Horizonte. Sou filho de Imaculada Rosa Marçal de Carvalho, dona de casa e artesã, e Wilson de Carvalho, aposentado após anos de trabalho na linha de produção de uma multinacional do ramo automobilístico. Tenho um irmão. Talvez por meus pais terem estudado apenas os primeiros anos do ensino fundamental, investiram tudo o que puderam para que seguíssemos, meu irmão e eu, o mais além possível.

Os trânsitos pelos quais passaram, saindo em busca de uma vida melhor, da área rural na zona da mata mineira, municípios de Raul Soares e Ponte Nova, para a periferia da capital do mesmo estado, fizeram de parte de nossa família um dos primeiros moradores do bairro Alvorada, situado em distrito periférico da tricentenária cidade de Sabará, que integra a Região Metropolitana de BH. Fiz o ensino regular inicial na Escola Estadual Carvalho Brito e, posteriormente, na Escola Estadual Presidente Dutra.

Dessa última guardo a lembrança de ter frequentado assiduamente a Biblioteca que, para mim, possuía um acervo de valor incomensurável e ensejou o gosto que eu já trazia por livros e pela leitura desde minha casa. Minha mãe sempre comprava, não sem alguma dificuldade, gibis e livros que eu lia com avidez pelos cantos da casa.

Minha avó, madrasta de meu pai, Maria França de Carvalho, sempre participara da igreja católica do bairro, engajada em vários grupos e atividades, nas quais muitas vezes a acompanhei. Em uma das viagens que o Grupo de Oração organizara, minha avó me levou. Guardo até hoje uma relíquia dessa viagem feita à cidade mineira de Cordisburgo, que fica a aproximadamente 100 km da capital. “Bati um retrato” de minha avó e meu avô, Antônio Higino de Carvalho, dentro da gruta de Maquiné, aquela caverna tão reverenciada pelo mineiro universal, o grande escritor João Guimarães Rosa. Lembro de termos visitado outros pontos turísticos da “cidade do coração”, todos referenciados em textos literários do Guima, como a estação do trem, que está encenada, por exemplo, no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” e a casa conjugada com a venda da família, onde hoje funciona o espaço museal dedicado ao escritor e seu sertão-universal. Antes desconfiava, mas, hoje não me resta dúvida, de que esse passeio modificaria para sempre os rumos da minha vida. E, de fato, alterou mesmo.

Das horas intermináveis que fiquei dentro da Biblioteca do Presidente Dutra, em muitas conversas com a professora que trabalhava no Setor, vi surgir, ainda sem muito entendimento, o desejo de seguir os estudos em algo que não fazia muito sentido para mim, cujo nome era “faculdade”, “universidade”, ou ainda, “curso superior”. Talvez pela experiência próxima com a Biblioteca colegial, decidi cursar Biblioteconomia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Estava fora de cogitação não estudar em uma instituição pública. Naquele período, o vestibular da UFMG alcançava mais de 100 mil inscritos. Estudei em cursinho pré-vestibular com o dinheiro do meu seguro-desemprego, pois meu contrato de menor aprendiz de mecânico de automóveis se encerrou quando completei 18 anos, ocasião em que passei a frequentar o referido pré-vestibular. Passei no vestibular, e meu irmão também. Fomos os primeiros e, por muitos anos, os únicos de nossa família a chegar tão longe nos estudos, contrariando um lugar que a estrutura dominante da sociedade brasileira por séculos havia preparado para nós, cidadãos das franjas da capital da conservadora Minas Gerais. A vida daria outra guinada…

Entrei para a UFMG em 2001, aos 18 anos. Fiz minha graduação em Biblioteconomia na Escola de Ciência da Informação (ECI) e fui completamente seduzido pela infinidade de caminhos que o espaço universitário oferta. Todas as vertentes daquela ciência da informação me encantaram, desde o núcleo duro com as lidas com o tratamento técnico, as linguagens documentárias, os estudos de usuários etc., muito embora eu tenha traçado um caminho mais alinhado à vertente do que na área se conhece como Biblioteconomia Social. Já no primeiro período, aceitei o convite da professora Maria Aparecida Moura, da ECI, que desenvolvia um projeto de rede de informação e instalação de bibliotecas para um conjunto de assentamentos de sem terra em diferentes lugares de Minas Gerais. Participar das leituras e discussões que nos embasariam para a redação do projeto me permitiu conhecer, experienciar e me aperceber do quanto o espaço da Universidade retorceria minhas pré-concepções daquele mundo. Ficou evidente que era possível uma atuação acadêmica articulada com setores da sociedade civil organizada, fomentadora de processos de emancipação e redução de assimetrias.

Na minha caminhada pela graduação, em vários momentos procurei aprofundar contatos com a área das Letras, sobretudo, procurando ter acesso a várias literaturas, devorando livros de autores “consagrados” de cada área.

Concluí os requisitos para obter o grau de bacharel em Biblioteconomia cerca de seis ou sete meses antes da minha turma, imediatamente tomando posse e entrando em exercício na função de bibliotecário no ICA/UFMG, onde trabalhei por cerca de quatro anos. Fui um dos responsáveis pela informatização do acervo dessa biblioteca do Sistema de Bibliotecas da Universidade, que é composto por 25 setoriais. Posteriormente, quando já trabalhava na Biblioteca da Escola de Música/UFMG, em BH, resolvi que era chegada a hora de ingressar na pós-graduação strictu sensu. E teria de ser em programas que nucleavam o estudo aprofundado nas literaturas.

Ainda que a bagagem obtida ao trabalhar em diferentes unidades de informação me propiciasse colher bons frutos enquanto profissional bibliotecário, o fascínio por textos literários só aumentava e eu continuava a devorar obras ficcionais de outros espaços do mundo. Em determinado momento, travei contato com fortuna crítica a respeito da obra de Guimarães Rosa e, a partir do que sinalizavam as discussões desses pesquisadores, tive notícia de livros de autoria dos escritores Mia Couto, moçambicano, e do angolano José Luandino Vieira, até então completamente fora do meu conhecimento. Posso afirmar que atravessei mares, pela mão de Rosa, e aportei em África, para nunca mais sair. Ainda bem!

Em meados de 2011, motivado pelas inúmeras leituras literárias que havia feito, tomei a decisão de assistir a algumas aulas no campo das literaturas africanas de língua portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Isso me permitiria aprofundar os estudos literários sem, contudo, abandonar a profissão em exercício. 

Participei do processo seletivo e fui aprovado em quinto lugar no Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Literaturas de Língua Portuguesa, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Sob a orientação da Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca, foi realizada pesquisa, com bolsa CAPES, defendida em 2013, que objetivava discutir as estratégias narrativas configuradoras de espaços e espacialidades tal como se manifestam em contos do escritor brasileiro João Guimarães Rosa e dos escritores angolanos José Luandino Vieira e Boaventura Cardoso. A composição da amostra foi motivada, essencialmente, por textos que permitissem uma aproximação com vistas ao deslinde das formatações espaciais que estruturam as narrativas. É importante destacar que, nos contos analisados, outros elementos foram abordados com a intenção de se configurar o modo como, nas narrativas, se exibiam elementos os quais o sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005) denomina de refugo. A reflexão de Bauman sobre o refugo, articulada com considerações de vários teóricos sobre espaço e espacialidade, deram sustentação às análises dos contos e à defesa de uma poética do refugo humano encenada naqueles textos literários. Em 2014 publiquei, pela editora Nandyala, texto reformulado da minha dissertação, em livro intitulado Aquele canto sem razão: espaços e espacialidades em contos de Guimarães Rosa, Luandino Vieira e Boaventura Cardoso.

Já em etapa final de fechamento do texto da dissertação e procedimentos para agendar a defesa, me submeti aos exames do processo seletivo para ingresso no doutorado, também na PUC Minas, tendo sido aprovado em segundo lugar. Mais uma vez tive a felicidade de realizar o curso sob orientação da Professora Doutora Maria Nazareth Soares Fonseca e, ainda, na condição de bolsista CAPES. Minha tese tomou como objeto parte dos textos em prosa do sistema literário guineense, especificamente os de autoria de Odete Semedo e de Abdulai Sila. A tese objetivava propor uma reflexão sobre a memória e os lugares de memória, simbolicamente construídos nos textos selecionados. Discutiu-se como se efetivam textos arquitetados por escritores oriundos de uma cultura em que a oralidade ainda é muito forte e presente em todas as esferas da vida social. Foi tecida reflexão, ainda, sobre como o conceito de “lugares de memória”, originalmente gestado no campo da História e, posteriormente, disseminado para a Geografia e Sociologia, pode ser apropriado pelos estudos literários como operador teórico na discussão de narrativas de memória. Tal conceito permitiu pensar sobre as configurações dos lugares físicos guardadores de memória encenados nos textos literários dos escritores guineenses selecionados, e sobre os seus significados no espaço ficcional, bem como ressaltar as estratégias narrativas utilizadas por Semedo e Sila para criar textos que se constroem com apelo às modulações da oralidade e a aspectos do passado histórico guineense. Os elementos ressaltados nas obras dos escritores permitiram avaliar a função da memória nos desenhos de projetos esteticamente politizados que agenciam feições literárias da guineidade. Ainda em 2017 a tese foi publicada em forma de livro pelo editora guineense Ku Si Mon, em parceria com o Centro de Estudos Africanos/UFMG.

Toda a minha formação enquanto pesquisador nos estudos literários tem como ponto inaugural o convite feito pela coordenadora, professora Maria Nazareth, para integrar o grupo de pesquisa “Estéticas diaspóricas” (GEED), em 2011. Desde então, participo das atividades de pesquisa, eventos internos e externos e de produção de textos para publicação. O Grupo atualmente encontra-se abrigado no Projeto Portal literAfro, coordenado pelo professor doutor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da UFMG, na aba literÁfricas.

No final dos anos 2012 e início de 2013, eu já havia participado de várias outras instâncias colegiadas da Universidade como, por exemplo, o Conselho de Diretores, representando os técnicos-administrativos em educação, tendo sido eleito para algumas outras comissões dentro da Escola de Música e em outras partes da Universidade, o que me levou a vislumbrar que seria interessante assumir outro desafio. Então, quando em 2013 se iniciou o processo eleitoral para a diretoria do Sistema de Bibliotecas da Universidade, órgão que coordena tecnicamente as 25 bibliotecas do Sistema, eu e uma colega bibliotecária, àquela época lotada na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, formamos uma chapa, construímos uma plataforma de trabalho e nos inscrevemos para o pleito. Fomos eleitos e, em novembro de 2013, assumi o cargo mais importante como bibliotecário da casa na UFMG, que é a direção do Sistema, por um período de dois anos. Ao término desse primeiro mandato, nós nos recandidatamos e vencemos novamente o pleito, conduzindo o Sistema por novo período de dois anos, de 2015 a 2017.

Em 2014 fui presidente da comissão organizadora da XVIII edição do Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias (SNBU), que já é um evento bastante consolidado e respeitado na área, e que nunca tinha sido realizado pelo Sistema de Bibliotecas da UFMG. Fizemos um evento com mais de 1.600 bibliotecários inscritos e que, na abertura, contou com uma conferência do professor e historiador Peter Burke, da Universidade de Cambridge, Inglaterra. 

Entre os meses de junho a novembro de 2017 prestei concurso para docente no Departamento de Ciência da Informação / Biblioteconomia (DEPCI), da Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), no campus de Porto Velho, e fui aprovado em primeiro lugar. Para minha surpresa, a Federal de Rondônia me nomeou e convocou muito mais rápido do que imaginava, e depois de aproximadamente 13 anos como bibliotecário-documentalista na UFMG, decidi pedir vacância do cargo que ocupava na instituição para iniciar o processo, tomar posse e entrar em exercício na carreira de professor de magistério superior para o curso de Biblioteconomia. A UNIR é a única universidade pública do Estado rondoniense e possui exatamente a mesma idade que eu. Então, os desafios, bem como, as possibilidades, são imensas. O curso de Biblioteconomia completaria em 2019 sua primeira década de existência. Foi neste contexto que passei a integrar o corpo docente, tendo sido muito bem recebido, inclusive pelos discentes do curso. 

Ao reassumir o cargo de bibliotecário-documentalista na UFMG, em outubro de 2019, entrei em exercício na Biblioteca da Escola de Veterinária, no campus do bairro Pampulha, em BH, concluí a graduação em Letras pela Newton Paiva e, no meio do ano passado, a residência pós-doutoral em Estudos Literários na FALE/UFMG, supervisionado pela Professora Sandra Regina Goulart Almeida, com pesquisa sobre a violência encenada em parte da obra do escritor sul-africano, J. M. Coetzee. 

O movimento aqui em parte compartilhado ensejou a sistematização e publicação de dois artigos no campo da Biblioteconomia e CI, sobre fontes de informação especializada em africanidades (2019; 2021). Concluo a presente reflexão sublinhando o desafio em fazer parte, a convite de sua coordenadora, Professora Ana Paula Meneses Alves, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Recursos, Serviços e Práxis Informacionais (NERSI/ECI/UFMG). A agenda de discussão de textos do NERSI me incita a ousar sugerir, fazendo coro às pesquisadoras Franciéle Carneiro Garcês da Silva e Dirnéle Carneiro Garcez (2022, p. 13) que grande impacto terá para mitigarmos os efeitos do epistemicídio e memoricídio do conhecimento negro no campo BCI, quando os tomadores de decisão sobre a matriz curricular de formação de profissionais bibliotecários Brasil a fora adotarem, pelo menos, estratégias da afroperspectividade e da educação bibliotecária antirracista, decolonial e intercultural, o quanto antes. Para auxiliar nesse encaminhamento, penso ser da maior valia a sugestão apresentada por Franciéle Carneiro Garcês da Silva, em sua dissertação (2019, p. 198), “de conteúdos das culturas africanas e afro-brasileiras em disciplinas dos cursos de Biblioteconomia brasileiros”.  

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. 170 p. 

CARVALHO, Wellington Marçal de; REZENDE, Angerlânia; GOMES, Gracielle Mendonça Rodrigues. Fontes de informação especializadas em africanidades. PontodeAcesso, v. 13, n. 2, p. 174–201, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaici/article/view/30464 . Acesso em: 07 jul. 2023.

CARVALHO, Wellington Marçal de; REZENDE, Angerlânia; GOMES, Gracielle Mendonça Rodrigues. Mais fontes de informação especializada em africanidades: subsídios para novas e radicais epistemologias. RDBCI: Revista Digital de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Campinas, SP, v. 19, n. 00, p. e021031, 2021. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rdbci/article/view/8667383 . Acesso em: 07 jul. 2023.

MOURA, Maria Aparecida. Encruzilhadas da memória: corpo-território e re(existência) decolonial negra no campo da Ciência da Informação. Divulga-CI: Revista de Divulgação Científica em Ciência da Informação, Porto Velho, v. 1, n. 3, maio. 2023. Disponível em: https://www.divulgaci.labci.online/v-1-n-3-maio-2023/encruzilhadas-da-memoria-corpo-territorio-e-reexistencia-decolonial-negra-no-campo-da-ciencia-da-informacao-por-maria-aparecida-moura/ . Acesso em: 05 jul. 2023.

SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da. Representações sociais acerca das culturas africana e afro-brasileira na educação em Biblioteconomia no Brasil. 2019. 521 p. Orientador: Gustavo Silva Saldanha. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: https://ridi.ibict.br/handle/123456789/1047 . Acesso em: 10 jul. 2023.

SILVA, Franciéle Carneiro Garcês da; GARCEZ, Dirnéle Carneiro; SILVA, Rubens Alves da. Conhecimento das margens: da injustiça epistêmica à valorização do conhecimento negro em Biblioteconomia e Ciência da Informação. Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, v. 27, n. 1, p. 1-19, 2002. Disponível em: https://revista.acbsc.org.br/racb/article/view/1885/pdf . Acesso em: 07 jul. 2023.

Sobre o autor

Wellington Marçal de Carvalho

É Bibliotecário da Biblioteca da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais. Integrante do Grupo de Estudos Estéticas Diaspóricas, coordenado pela Professora Maria Nazareth Soares Fonseca.

Possui residência de Pós-Doutorado em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. É Doutor e Mestre em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Letras pelo Centro Universitário Newton Paiva e em  Biblioteconomia pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais.


Redação e Foto: Wellington Marçal de Carvalho

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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