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v. 1, n. 7, set. 2023
Biblioeducação: do fragmentado ao orgânico, por Edmir Perrotti

Biblioeducação: do fragmentado ao orgânico, por Edmir Perrotti

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Biblioeducação: do fragmentado ao orgânico

Edmir Perrotti 

perrotti@usp.br

Biblioteca e Educação: o hiato

Há um hiato entre Biblioteca e Educação no país, manifestado tanto pelos números insuficientes de bibliotecas públicas, escolares e outras diretamente ligadas a processos formativos, quanto pela precarização material e conceitual de grande parte das existentes, descoladas de condições da chamada “Era da Informação” que, entre nós, superpõe contemporaneidade não só à modernidade (Canclini, 1997), mas à colonialidade (Quijano, 1997), fazendo com que o hiato não seja fenômeno apenas circunstancial ou residual, mas uma presença histórica, estrutural e estruturante.

Nesse sentido, por um lado, o hiato é força que bloqueia avanços fundamentais dos processos educacionais, da própria biblioteca e da ordem histórico-cultural geral em que se inscrevem. Por outro, é estratégia diluidora, quando não, desintegradora de conquistas e esforços obtidos com investimentos de várias ordens, significando, portanto, retrocessos de alto custo social e pessoal.

Um Programa de Pesquisa

Reconhecendo a importância, a extensão educacional e cultural da problemática, lançamos, no final dos anos 1980, no então Departamento de Biblioteconomia e Documentação[1], da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), um programa de pesquisas visando à construção de referências teóricas e metodológicas necessárias à sua compreensão e ao seu enfrentamento.

Resultaram daí sucessivos projetos, realizados em parceria com diferentes terrenos institucionais, como escolas de ensino fundamental, médio e superior, creches, bibliotecas, fábricas, canteiros de obras da construção civil, ações que somaram mais de 150 bibliotecas criadas e orientadas por princípios educativos dialógicos (Pieruccini, 2004) e orgânicos, destinadas a públicos das mais variadas idades e condições socioculturais. 

O neologismo “Biblioeducação”, proposto em 2015, buscou sintetizar esse processo, ao mesmo tempo, que se apresentou como desafio a ser desenvolvido permanente e articuladamente com diferentes parceiros, interessados na superação de limites impostos por fragmentações de várias naturezas que marcam nosso tempo, em especial as epistêmicas, causadas pela disciplinaridade científica. 

Um método, uma história 

Nesses termos, procuramos abordar as relações entre os campos da Biblioteconomia e da Educação também em suas dimensões teóricas e práticas, levando sempre a efeito, como princípio metodológico, a reunião Universidade-Sociedade. Isolados e fragmentados, saberes teóricos e práticos, dificilmente conseguirão fazer mais do que a repetição dos estreitos modelos disciplinares que os amparam, em um movimento de reforço incessante do hiato que, muitas vezes, pretendem enfrentar.

Problemática transversal, o estudo das relações Biblioteca e Educação impuseram-nos, pois, percursos e perspectivas inter e transdisciplinares que, adotados, significaram interlocuções e cooperações com linhagens científicas e organismos socioculturais múltiplos. Assim, nossas equipes foram se constituindo, segundo critérios que, além de semelhanças, afirmam a importância das diferenças de filiação, de nível e de procedência acadêmico institucionais.O que nos foi e vem reunindo, ao longo do tempo, mais que a origem, é o interesse comum no plano das hipóteses e dos objetivos de trabalho: constituir, na teoria e na prática, relações substanciais e orgânicas entre Biblioteca e Educação, capazes de possibilitar experiências afirmativas, vinculantes e críticas com os saberes, seus processos e dinâmicas, tanto em ambientes escolares quanto não- escolares.

Tal programa implicou na produção concreta de bibliotecas, pautadas pelo dialogismo e pela organicidade interna dos elementos que as constituem: espaços físicos, ambientação, mobiliários, acervos e seu tratamento, equipamentos técnicos e tecnológicos, linguagens e programações culturais, sistema de gestão e de relações com as comunidades internas e externas. Assim, tudo buscava diálogos, conexões entre partes, num movimento que reconhecia a singularidade de cada elemento, mas procurava opor-se a diferentes formas de fragmentação manifestas com frequência no contexto bibliotecário.

O acúmulo de resultados parciais desses trabalhos permitiu que confirmássemos nossas hipóteses. Devidamente redimensionadas em seus conceitos e métodos, as bibliotecas mostravam-se capazes de potencializar e qualificar processos educacionais e culturais, ganhando, elas próprias, potências formativas reconhecidas em diferentes meios e condições socioculturais, em um jogo conceitual, prático e complexo.

A Biblioteca Forum

Desse processo, emergiu o conceito de “biblioteca forum” (Perrotti; Pieruccini, 2016), dando corpo e orientação operacional a um conjunto de premissas teóricas e metodológicas que definem e distinguem as bibliotecas como instâncias de mediação cultural. Distinta dos modelos templum e emporium, forjados pelo patrimonialismo e pelo difusionismo cultural, a biblioteca forum mostrou-se não somente informativa, mas intrinsecamente formativa, no sentido de contribuir para a construção de identidades afinadas com o protagonismo cultural (Perrotti, 2017).

Além disso, ao apresentar-se como agora, território onde sujeitos tomados como cidadãos, portadores eles próprios de memórias, compartilham signos e realizam, individual e coletivamente, trocas, rituais, diálogos, embates dinâmicos, abertos e desafiadores de produção de sentidos para si e para o mundo, a biblioteca fórum mostrou-se organismo capaz de contribuir para a criação de relações substanciais e orgânicas dos sujeitos com processos de conhecimento, bem como de constituir vínculos e representações que indicam formas afirmativas de reconhecimento e de pertencimento na ordem educacional e cultural.

Dado que, paradoxalmente, tanto a Biblioteca quanto a Educação são postas à prova, apresentando-se como realidades cada vez mais questionadas em seusfundamentos e métodos pelas sociedades “líquidas” (Bauman, 2001), pelo “fim das certezas” (Prigogine, 2011) e pela “infocracia” (Han, 2022), tais resultados são de grande relevância social, política e científica, pois apontam possibilidades concretas em direção à nova ordem histórico-cultural, exigida pelo esgotamento da chamada modernidade.

Renitência 

Independentemente do reconhecimento de avanços reais obtidos ao longo do tempo com diferentes projetos e parcerias, um fato, contudo, não pode deixar de ser observado: explícita ou veladamente, sob os mais diferentes formatos, o hiato sempre insistia em retornar. Era uma definição administrativa unilateral, aqui, uma opção técnico-especializada, de grande ou pequena monta, ali; uma retomada, à primeira vista, casual, de práticas culturais ultrapassadas em suas concepções e dinâmicas; uma palavra solta, aparentemente despretensiosa, no entanto, indicativa de desconforto com inovações; uma disputa velada sala de aula X biblioteca…

Acumuladas, tais recorrências foram deixando claro que o hiato não era um fenômeno residual, mas estrutural e estruturante, força renitente de múltiplas facetas, sempre pronta a entrar em cena e retomar posições centrais do palco. Nesse sentido, ficava evidente que a renovação de bibliotecas e suas relações, mais do que conceitos, implica padrões que, além de epistêmicos, estão inscritos em ordens político-sociais que se disputam. Pôde-se, assim, compreender que as tradições patrimonialistas e difusionistas não se afirmaram no universo das bibliotecas e da educação somente por acaso, nem se restringem às dimensões estritamente procedimentais fortuitamente. Tecnicismo e utilitarismo, por exemplo, significam opções históricas definidas por e definidoras de normas, posições, modos de pensar, agir e sentir que demarcam tempos, espaços e relações. São estratégias de lutas entre paradigmas.

A Biblioeducação: do fragmentado ao orgânico

Imbuídos da necessidade de novos avanços no enfrentamento da nossa problemática, propusemos uma articulação formal entre a ECA e a Faculdade de Educação da USP (FEUSP), em 2015, tendo em vista possíveis ações institucionais interconectadas. Aceita a proposta, foi constituído um grupo de trabalho[2], ocasião na qual utilizamos pela primeira vez o neologismo “Biblioeducação”. Com a formulação, não indicávamos somente uma operação de linguagem ajustada ao momento. Tratava-se de uma nomenclatura definidora do teor da proposta que rompia com estreitos limites da disciplinarização que organiza e marca a vida científica e social, em seu todo. A iniciativa significava um passo importante na quebra de barreiras não só acadêmicas, mas epistêmicas observadas historicamente entre Biblioteconomia e Educação.

Da aproximação, por um lado, resultou a criação de disciplinas de graduação na ECA e na FEUSP, para alunos de ambas as unidades, como para a USP, em geral. Por outro lado, foi criada a disciplina de Biblioeducação, na pós-graduação da ECA e, no bacharelado em Biblioteconomia, foi incorporado um Certificado que atesta formação especial em Biblioeducação para alunos das disciplinas que constituem a especialidade. Da mesma forma, foi implantado na ECA, com registro no CNPq, o GPEB – Grupo de Pesquisa em Biblioeducação, sucedâneo do PROESI – Programa Serviços de Informação em Educação, criado por nós em 1993, e do Colabori – Colaboratório de Infoeducação, de 2006. Convênios Acadêmicos e cooperações nacionais e internacionais vêm sendo realizados, além de Fóruns Científicos abertos a especialistas e interessados em geral nas problemáticas da Biblioeducação. 

Tais realizações significam novos esforços científico-acadêmicos de enfrentamento de múltiplos hiatos impostos pela disciplinarização às indispensáveis e substanciais relações a serem construídas entre Biblioteconomia e Educação no país.

Deve-se ressaltar a importância especial de tal enfrentamento entre nós. Apesar de não se mostrar exclusividade brasileira, o hiato ganha, no Brasil, contornos próprios devidos tanto à nossa “condição colonial” particular (Bosi, 1987) quanto à colonialidade a que se refere Quijano (1997) e que não foi superada até os tempos atuais. Chegamos, por exemplo, à chamada “Era da Informação” sem a efetiva e fundamental presença de instituições necessárias à democratização da cultura letrada. Se as relações entre Biblioteca e Educação tomaram forma socialmente nos chamados países centrais no século XIX (Richter, 1987) e se irradiaram para diferentes territórios, como o nosso, as sobreposições da colonialidade à modernidade e à contemporaneidade aqui observadas, conferem características singulares às nossas problemáticas e exigem bases teóricas, práticas e político culturais especiais, convergentes e insurgentes para serem devidamente redefinidas.

Nesses termos, o neologismo “Biblioeducação” remete a articulações fundantes, tendo em vista à superação de tradições produzidas e produtoras de colonialidades educacionais, culturais e científicas que se renovam permanentemente. Ele expressa a compreensão de que a transição do estado fragmentado ao orgânico demanda realizações concretas que se traduzem, necessariamente, em lutas concretas e paradigmáticas que são, ao mesmo tempo, políticas, sociais e epistemológicas.

 Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1987.

CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP, 1997.

HAN, Byung-Chul. Infocracia, digitalização e a crise da democracia. São Paulo: Vozes, 2022.

PERROTTI, Edmir; PIERUCCINI, Ivete. Infoéducation: ceci n´est pas une pipe. À la recherche d´une troisième rive. Mediadoc Apden, Paris, n.16 : 18-21, juin, 2016.

PIERUCCINI, Ivete. A ordem informacional dialógica: estudo sobre a busca de informação em educação. 2004. Tese (Doutorado em Ciência da Informação e Documentação) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27143/tde-14032005-144512/pt-br.php .Acesso em 12 jul. 2023

PERROTTI, Edmir. Sobre informação e protagonismo cultural. In: GOMES, Henriette Ferreira; NOVO, Hildenise Ferreira (Orgs.). Informação e protagonismo social. Salvador: EDUFBA, 2017. p. 11-26.

PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. São Paulo: UNESP, 2011.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina, Anuário Mariateguiano. Amatua, Lima, v. 9, n. 9, p. 201-246, 1997. https://www.decolonialtranslation.com/espanol/quijano-colonialidad-del-poder.pdf . Acesso em 12 jul. 2023.

RICHTER, Nöe. La lecture et ses institutions: la lecture populaire, 1700-1918. Bassac: Éd. Plein chant, 1987


[1] Atual Departamento de Informação e Cultura.

[2] Formamos, em 2015, uma equipe com três professores/pesquisadores de cada unidade, interessados nas relações Biblioteca e Educação. Pela ECA/USP participaram Prof. Dr. Edmir Perrotti (coordenador do grupo), Profa. Dra. Ivete Pieruccini e Prof. Dr. José Fernando Modesto da Silva. Pela FEUSP, Profa. Dra. Diana Gonçalves Vidal, Profa. Dra. Maria Ângela Borges Salvadori e Profa. Dra. Neide Luzia de Rezende.

Sobre o autor

Edmir Perrotti 

É professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade de São Paulo.  Em parceria com a Profa. Dra. Ivete Pieruccini é responsável pelas disciplinas “Biblioeducação: entre memória, informação e formação” e  “Biblioeducação: programas e projetos” e do GPEB – Grupo de Pesquisa em Biblioeducação. É membro do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares, da Universidade de Coimbra, Portugal.

Graduado em Letras Português e Francês, Mestre e Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo.


Redação e Foto: Edmir Perrotti

Revisão: Pâmela da Silva Rosin

Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro

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