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Pesquisa e prática em competência em informação: o que o Framework for Information Literacy tem de diferente?, por Djuli de Lucca

Pesquisa e prática em competência em informação: o que o Framework for Information Literacy tem de diferente?, por Djuli de Lucca

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Pesquisa e prática em competência em informação:
o que o Framework for Information Literacy tem de diferente?

Djuli Machado de Lucca

djuli@unir.br

A competência em informação tem se mostrado uma temática tradicional de pesquisas na ciência da informação. Observações que realizamos nos últimos anos evidenciam isso, tanto no contexto internacional (De Lucca; Neubert, 2022) quanto no contexto nacional (De Lucca; Leite; Neubert, 2022). No Brasil, cuja trajetória acumula um período de um pouco mais de vinte anos de investigação científica e práticas profissionais, as investigações científicas que contemplam a temática ainda continuam em pleno crescimento.

Ao longo dos quase cinquenta anos da trajetória da competência em informação – considerando o contexto mundial – foi possível observar um natural amadurecimento que ocasionou alguns reposicionamentos teóricos, epistemológicos e metodológicos. De uma gênese voltada para a preparação das pessoas para lidar com a ampla gama de informações no mercado de trabalho,   assumiu-se,   com o tempo, a importância de incluir o movimento nas agendas educacionais, dada a relevância dessas capacidades para a autonomia e qualidade de vida das pessoas, independentemente de suas ocupações e características. Por essa razão, houve uma incorporação do conceito de competência em informação, e a consequente solidificação daquele compreendido como o conjunto de capacidades para reconhecer necessidades de informação e localizar, avaliar, aplicar e criar informações em todos os contextos sociais e culturais, abrangendo o aprendizado, o pensamento crítico e habilidades interpretativas. A partir desse conceito, foram criados, ao longo da trajetória do movimento, padrões e modelos, que serviram para a incorporação de investigações e de iniciativas práticas para a promoção da competência em informação em bibliotecas, escolas, universidades e ambientes de trabalho em todos os continentes.

No entanto, um reposicionamento teórico – epistemológico ocorrido em meados da década de 2010 gerou um rebuliço na comunidade bibliotecária, principalmente no contexto norte-americano, que foi o cenário desse movimento: trata-se do resultado dos trabalhos da força-tarefa de reavaliação dos padrões para o desenvolvimento da competência em informação, que deu origem ao  Framework for Information Literacy (Marco de referência da competência em informação, para tradução livre), escrito por uma seção da ALA – American Library Association (Associação Norte-americana de Bibliotecários). Esse novo marco de referência revogou, literalmente, um dos modelos para desenvolvimento da competência em informação mais sólidos e mais utilizados no mundo: o Information Literacy Competency Standards for Higher Education (conjunto de padrões para o desenvolvimento da competência em informação para a educação superior, em tradução livre), publicado em 2000. A força-tarefa era composta por bibliotecários, pesquisadores e outros profissionais do campo da educação superior vinculados à ALA. Não foi um processo simples: houve quem tenha se desligado da comissão por não concordar com as discussões, houve quem tenha organizado uma carta aberta de repúdio ao novo modelo (Sample, 2020), e houve muita confusão em fóruns e listas de discussão. As críticas são as mais diversas, desde a argumentação de que se trata de um modelo elitista, contraintuitivo (Bombaro, 2016), e que promove uma divisão entre os acadêmicos e os profissionais, uma vez que é escrito em linguagem pouco acessível às camadas mais leigas (Battista et al., 2015). Mas o que, de fato, esse Framework tem de diferente? Aqui tem a opinião de uma pesquisadora da área.

O conjunto de padrões para o desenvolvimento da competência em informação, publicado em 2000 pela ACRL, que é uma divisão da ALA destinada aos bibliotecários universitários, é a solidificação de uma compreensão da competência em informação como uma estratégia para o empoderamento e aprendizado ao longo da vida. Essa compreensão já havia sido inaugurada em 1989, quando a mesma associação publicou um documento reconhecendo a importância do movimento para a agenda educacional. O conjunto de padrões define que uma pessoa competente em informação é capaz de: 1) determinar a natureza e a extensão da necessidade de informação; 2) acessar a informação necessária de forma eficaz e eficiente; 3) avaliar a informação e suas fontes criticamente e incorporar a informação selecionada em sua base de conhecimentos e sistema de valores; 4) individualmente ou como membro de um grupo, utilizar a informação  efetivamente para atingir um propósito específico; 5) compreender as questões econômicas, legais e sociais que  envolvem o uso de informações e acesso e uso da informação de forma ética e legal. São determinados indicadores de desempenho para cada uma dessas capacidades, de modo a servir de estratégia para a avaliação de pessoas competentes em informação. Assim, a partir desse modelo, conduziram-se estratégias em prol da competência em informação em diversos ambientes, e para diversos grupos de pessoas. A partir da condução dessas estratégias, o movimento da competência em informação se popularizou – principalmente no cenário norte-americano – a tal ponto que o então presidente dos Estados Unidos da América, Barack Obama, publicou uma declaração sobre a importância da competência em informação e destinou o mês de outubro como o “mês da conscientização da competência em informação” (Obama, 2009, tradução própria). 

No entanto, a estrutura engessada desse modelo originou críticas de grupos de bibliotecários e pesquisadores. O argumento era que os padrões da competência em informação estivessem direcionados para a máxima produtividade, principalmente no mercado de trabalho. Assim, a competência em informação estaria desancorada de seu propósito maior, que é a promoção do pensamento crítico, que é naturalmente iterativo, reflexivo e não-linear. Essas pessoas começaram a argumentar em prol de uma competência crítica, originando um movimento, ainda na década de 2000, reconhecido como critical information literacy – que na década seguinte se estendeu para o Brasil. De fato, tratam-se de críticas oportunas.

O movimento de construção do Framework durou aproximadamente quatro anos, tendo sido concluído em 2016. Ele substituiu a ideia de conjunto de padrões, invalidando o documento anterior. A partir da sua publicação, nenhuma iniciativa que utilizasse os padrões receberia o apoio da ALA. Hoje, é o documento basilar para a condução de estratégias, mesmo que uma parcela considerável da comunidade bibliotecária despreze. Assim, em vez de uma relação prescritiva de habilidades designadas para um ‘ser’ competente em informação, o framework é um conjunto de conceitos-chave interconectados, com opções flexíveis de implementação e que considera os aspectos comportamentais, afetivos, cognitivos e metacognitivos da competência em informação. São agora elementos (frames): 1) a autoridade como algo construído e contextual; 2) a criação de informação como um processo; 3) a informação como algo de valor; 4) a pesquisa acadêmica como investigação; 5) a pesquisa acadêmica como uma discussão de ideias; 6) a pesquisa como uma exploração estratégica. Agora, a partir dessa visão construtivista, assume-se que a informação é totalmente dependente do seu contexto, e que as necessidades específicas da comunidade interferem na criação, avaliação e definição de níveis de autoridade envolvidos na validação de um conteúdo de informação. Há quem tenha considerado que o framework conecta a competência em informação às causas da justiça social (Harker, 2016; Gregory; Higgins, 2017), sendo, dessa forma, imprescindível utilizá-la como um elemento para as iniciativas práticas de sua promoção, que são responsabilidade das pessoas bibliotecárias.

Sendo uma responsabilidade nossa, pontuo aqui alguns elementos do framework que indicam reposicionamentos teórico-epistemológicos da ALA acerca do movimento da competência em informação, e aproveito para apresentar alguns argumentos em prol do desenvolvimento de iniciativas em competência em informação a partir do Framework for information literacy:

1. O Framework, diferente do conjunto de padrões, reconhece que existem diferentes níveis de autoridade que são construídos pelas diferentes comunidades discursivas (Bauder; Rod, 2016). O uso do framework pode auxiliar, nesse sentido, na condução de estratégias que envolvam reconhecer fontes confiáveis, num processo em que a autoridade pode ser construída ou manifestada de forma inesperada. Ex.: Enquanto o ‘renomado’ dicionário Michaelis define ‘cigano’ para aquele que leva uma vida itinerante e/ou boêmia, a Wikipedia, escrita colaborativamente por pessoas de diferentes contextos, o define como uma minoria étnica, formada por um conjunto de populações que têm em comum a origem indiana. O desenvolvimento de capacidades relacionadas às diversas autoridades auxilia, por exemplo, na identificação de informações tendenciosas ou inverídicas, que são um dos elementos da indústria da desinformação do contexto atual;

2. O framework também considera que, no processo de criação da informação, estão envolvidos diversos atores, e que as pessoas são, ao mesmo tempo, criadoras e consumidoras de informação, estando imbricadas relações de poder e de privilégio (Swanson, 2014; Harker, 2016). A partir desse frame, podem ser trabalhados, tanto em nível de pesquisa quanto em nível prático profissional, o papel das comunidades na negociação de autoridade envolvida na criação da informação, além do reconhecimento de armadilhas da mercantilização da informação, que têm infestado o cenário das redes – o lugar onde a maioria das pessoas consome as informações do dia-a-dia nos dias de hoje;

3. Seu aspecto caracterizado por muitos como ‘contraintuitivo’ (Bombaro, 2016) se mostra, na verdade, como uma estrutura flexível para implementação. Os frames são pontos de partida que valorizam a construção da competência em informação elaborada por cada comunidade. Eles descrevem formas de abordar a dimensão afetiva, atitudinal ou de valorização da aprendizagem (ACRL, 2016). Recentemente, houve a tradução do documento para o português de Portugal, facilitando o acesso para pesquisadores e profissionais da informação do contexto local.[1]

4. As críticas relacionadas ao caráter elitista residem no fato de que o Framework é mais teórico do que prático, sendo o conjunto de frames complexo, difícil de ser compreendido pelos bibliotecários atuantes na ‘ponta’ (Bombaro, 2016). Há mais críticas à falta de orientação da ALA aos bibliotecários para a implementação de estratégias que, efetivamente, possam conduzir as iniciativas em direção à competência em informação. Ainda, argumenta-se que o modelo promove uma divisão social entre os bibliotecários ‘práticos’ e os bibliotecários ‘filosóficos’, sendo esses últimos capazes de compreender teremos como: construtivismo social, pós-modernismo, pragmatismo… (Bombaro, 2016, p. 556). No entanto, a compreensão da dinâmica informacional atual envolve, necessariamente, a compreensão teórica da dinâmica social – que é desigual – por detrás da indústria da desinformação, que deve ser o ponto central de ação de pesquisadores e profissionais da linha de frente. É tarefa dos bibliotecários não só compreender, mas também promover formas de possibilitar que os usuários também compreendam essa dinâmica. Ignorar esses elementos somente perpetua a desigualdade informacional que já coloca alguns poucos atores em condição de vantagem. 

Esses elementos, apontados acima, podem servir como pontos de partida para a comunidade científica e profissional de Biblioteconomia e Ciência da Informação na condução de estratégias que envolvem a responsabilidade social de promover a competência em informação, principalmente no cenário atual, caracterizado pelo fenômeno da pós-verdade e do pleno êxito da indústria da desinformação, que coloca as pessoas um pouco mais longe dos seus ideais de construção de missões bem-sucedidas em direção ao conhecimento.

Referências

BAUDER, J.; ROD, C. Crossing thresholds: Critical information literacy pedagogyand the ACRL framework. College and Undergraduate libraries, v. 23, n. 3, p. 252-264, 2016. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/10691316.2015.1025323 . Acesso em: 01 ago. 2023.

BOMBARO, C. The framework is elitist. Reference Services Review, v. 44, n. 4, p. 552-563, 2016. Disponível em:  http://dx.doi.org/10.1108/RSR-08-2016-0052/full/pdf?title=the-framework-is-elitist . Acesso em: 01 ago. 2023.

DE LUCCA, D. M.; LEITE, C. M.; NEUBERT, P. S. A produção científica brasileira sobre competência em informação: um estudo dos artigos indexados na BRAPCI (2000-2019). Revista Brasileira De Biblioteconomia e Documentação, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 1–14, 2022. Disponível em: https://rbbd.febab.org.br/rbbd/article/view/1917 . Acesso em: 01 ago. 2023.

DE LUCCA, D. M.; NEUBERT, P. S. Abordagens temáticas da competência em informação: uma análise temporal a partir da produção científica indexada na Web of Science (1974-2019). Em Questão, Porto Alegre, v. 28, n. 4, n. 122771, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.19132/1808-5245284.122771 . Acesso em: 01 ago. 2023.

GREGORY, L.; HIGGINS, S. Reorienting an Information Literacy Program Towars Social Justice: mapping the core values of Librarianship to the ACRL Framework. Communications in Information Literacy, v. 11, n. 1, p. 42-54, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.15760/comminfolit.2017.11.1.46 . Acesso em: 01 ago. 2023.

HARKER, Y. S. Legal information for social justice: the new ACRL Framework and Critical Information Literacy. Legal Information Review, v. 2, p. 19-60, 2016. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/Page?handle=hein.journals/leinforv2&id=26&collection=journals&index= . Acesso em: 01 ago. 2023.

OBAMA, B. National Information Literacy Awareness Month, 2009: by the President of The United States of America: a proclamation. 2009. Disponível em: https://www.govinfo.gov/content/pkg/FR-2009-10-07/pdf/E9-24290.pdf . Acesso em: 01 ago. 2023.

SAMPLE, A. Historical development of definitions of information literacy: A literature review of selected resources. The journal of academic Librarianship, v. 46, n. 1, p. 1-8, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.acalib.2020.102116 . Acesso em: 01 ago. 2023. 

SAUNDERS, L. Connecting information literacy and social practice: why and how. Communications in Information Literacy, v. 11, n. 1, p. 55-75. Disponível em: https://doi.org/10.15760/comminfolit.2017.11.1.47 . Acesso em: 01 ago. 2023.

SWANSON, T. Information as a Human Right: A Missing Threshold Concept? by TTW Contributor Troy Swanson. Tame the web, 7 jul. 2014. Disponível em: https://tametheweb.com/2014/07/07/information-as-a-human-right-a-missing-threshold-concept-by-ttw-contributor-troy-swanson/ . Acesso em: 01 ago. 2023.

[1] A tradução foi organizada pela Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação. Disponível em: https://bad.pt/wp-content/uploads/2022/11/relatorioreferencial.pdf .

Sobre a autora

Djuli Machado de Lucca

É professora do Departamento Acadêmico de Ciência da Informação da Universidade Federal de Rondônia. Líder do Grupo de Pesquisa GCInMe – Competência em Informação e Mediação. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa GPCIn, da Universidade Federal de Santa Catarina. Desenvolve pesquisas relacionadas à competência em informação.

Graduada em Biblioteconomia, Mestra e Doutora em Ciência da Informação pela  em Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina. 


Redação e Foto: Djuli Machado de Lucca

Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta

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