Entrevista com Manuella Reale sobre sua pesquisa com os passageiros leitores no Metrô de São Paulo
Entrevista com Manuella Reale sobre sua pesquisa com os passageiros leitores no Metrô de São Paulo
Manuella Reale
manureale@gmail.com
Sobre a entrevistada
Em 2023, a recém doutora Manuella Reale defendeu sua tese pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da USP, sob orientação da Profª. Drª. Sandra Reimão.
Natural do Pará, aos 30 anos, Manuella tem como hobby produzir pães de fermentação natural. Formada na área de Comunicação Social, atua como editora na Maria Aires em Revista.
Sua tese, intitulada “Leitura em trânsito: passageiros leitores no transporte público da cidade de São Paulo” teve como objetivo investigar a prática da leitura no Metrô de São Paulo. A pesquisadora explorou as maneiras de leitura, a circulação de livros, os projetos de incentivo à leitura e as opiniões dos passageiros-leitores sobre o metrô paulistano.
Durante a pesquisa “Leitura em trânsito”, Manuella levantou e apurou vinte projetos de incentivo à leitura no metrô, alguns organizados oficialmente e outros pela sociedade civil. Ao final, a autora constatou que a leitura no metrô é uma experiência pública e simultânea, com diferentes sentidos, tais como: fuga da rotina; a ressignificação da viagem; a produtividade do tempo ocioso; a liberdade para fabulação; a compreensão de si e aceitação do outro. O corpus constituiu-se de passageiros com o hábito da leitura no decorrer de seu trajeto e com envolvimento em algum projeto de incentivo à leitura levantado por esta pesquisa.
Convidamos Manuella para nos relatar sua trajetória no doutoramento e os desdobramentos de sua tese.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Manuella Reale (MR): A entrada no doutorado foi um caminho orgânico para mim, pois desde o início da minha graduação tive a oportunidade de trabalhar com pesquisa científica. Participei de algumas atividades como grupos de estudo, projetos de pesquisa, iniciação científica, produção de artigos, participação e organização de eventos científicos, dentre outros. Fazer uma pesquisa de doutorado, para mim, surgiu do olhar ao meu redor a partir da minha área de estudo. A cada texto que estudava, adquiria novas formas de olhar e questionar a realidade. O tema da tese foi o cruzamento de duas situações: a minha mudança para a maior cidade da América Latina e conhecimento de estudiosos que estudavam a cidade do ponto de vista da Comunicação.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
MR: Entender que sua pesquisa realmente renderá um trabalho significativo como uma tese não é fácil. Grande parte dessa confiança vem das trocas durante a orientação, nas quais é possível encarar o que foi feito do trabalho até então e quais devem ser os próximos passos.
Apresentar resultados parciais da pesquisa em congressos e eventos também ajuda bastante. São nesses momentos que você tem a oportunidade de “pôr a prova” o que tem feito frente a pesquisadores experientes na área. Não ter medo de falar sobre sua pesquisa e conversar com colegas e pesquisadores da área ajuda demais a entender que está seguindo um bom rumo.
DC: Citaria algum trabalho (artigo, dissertação, tese) ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
MR: Sem dúvida o livro Práticas da Leitura, organizado por Roger Chartier, produziu uma grande impressão na minha pesquisa, pois apresenta diferentes perspectivas sobre a história do livro e da leitura. Além disso, o trabalho Trilhos da cidade da professora Janice Caiafa colaborou no entendimento de como estudar a cidade, e mais especificamente o metrô do ponto de vista da comunicação.
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
MR: O que torna meu trabalho inovador é a análise da leitura em um contexto urbano e dinâmico, onde as pessoas estão constantemente em movimento e imersas na multidão. A leitura na metrópole contemporânea é uma experiência que revela características únicas da vida nas cidades.
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
MR: A partir de meus resultados do estudo, é possível formular políticas mais completas voltadas ao incentivo da leitura no Brasil.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
MR: Minha tese se concentra na leitura no contexto urbano, fora do ambiente escolar, desafiando estereótipos em relação ao gosto pela leitura no Brasil. Por meio desse estudo, pude contrapor a ideia de que o brasileiro não gosta de ler e que pessoas de classes mais baixas não têm interesse por livros. Além disso, destaco a importância de políticas de incentivo à leitura que sejam abrangentes e atinjam diferentes espaços e públicos. Ao desafiar esses estereótipos e promover uma visão inclusiva da leitura, minha tese encoraja a implementação de iniciativas que promovam o hábito de leitura em diversos contextos e comunidades.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
MR: Examinar o que já havia sido escrito e teorizado, me permitiu ter uma visão mais clara do que eu estava investigando. O próximo passo foi compreender o meu problema de pesquisa e definir quais seriam os passos necessários para chegar aos resultados desejados. Para isso, realizei um levantamento bibliográfico e documental, buscando referências que pudessem contribuir para a minha investigação. Além disso, também foi necessário realizar pesquisa em campo. Considerando o objeto de estudo e a natureza da pesquisa, que visava explorar a fundo as nuances do fenômeno, percebi que uma pesquisa qualitativa exploratória seria mais apropriada. Nesse sentido, a entrevista em profundidade se tornou uma ferramenta fundamental para obter detalhes aprofundados sobre o que eu estava estudando.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?
MR: Qualquer trabalho com o método científico em mente, exige muito mais esforço do que criatividade. Claro que é necessário ter insights e cruzamento criativo de dados. Mas de uma maneira geral, o que traz bons resultados é o esforço e dedicação constantes.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
MR: Fazer um estudo no Brasil é ir contra a corrente. Não há forte incentivo por parte do governo ou mesmo da sociedade.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
MR: Durante o doutorado, minha família me proporcionou um apoio indispensável. Mesmo quando não entendiam completamente os desafios envolvidos, eles demonstraram paciência e respeito. O apoio emocional foi essencial para empreender na vida acadêmica desde jovem.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
MR: A maior dificuldade da minha tese foi passar pela pandemia, que limitou minha capacidade de realizar atividades de campo e interagir presencialmente com pessoas. A restrição de movimentação e o distanciamento social afetaram a coleta de dados e a compreensão da leitura contemporânea no contexto urbano. A necessidade de adaptação às atividades virtuais e o ajuste da metodologia de pesquisa foram desafios adicionais. No entanto, busquei soluções criativas, como entrevistas virtuais.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
MR: Alguns temas interessantes para pesquisas futuras relacionadas à minha tese seriam: a prática da leitura em contextos urbanos diferentes ou em outros grupos específicos, políticas de estímulo à leitura direcionadas a adultos e a investigação da história da leitura no Brasil.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
MR: Agora que me doutorei, minhas pretensões profissionais são continuar envolvida com o estudo, ensino e pesquisa na área de Comunicação. Desejo seguir uma carreira acadêmica, contribuindo para o avanço do conhecimento nessa área e compartilhando meu aprendizado com estudantes e colegas. Tenho interesse em desenvolver projetos de pesquisa, publicar artigos e participar de eventos científicos para ampliar minha rede de contatos e trocar conhecimentos com outros pesquisadores. Além disso, buscarei oportunidades de colaboração com instituições acadêmicas e profissionais, visando aplicar o conhecimento adquirido durante o doutorado em projetos práticos e contribuir para o desenvolvimento da Comunicação como campo de estudo e atuação.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
MR: Para mim, fazer uma pesquisa é muito mais sobre o processo do que necessariamente o resultado específico. Dito isso, teria participado de mais eventos relacionados a história do livro e da leitura, realizado mais trocas com outros pesquisadores relacionados a temática da leitura e também da cidade. Também teria distribuído o cronograma de pesquisa de maneira a dar mais tempo para a escrita e a revisão textual.
DC: Como você avalia a sua produção científica durante o doutorado (projetos, artigos, trabalhos em eventos, participação em laboratórios e grupos de pesquisa)? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
MR: Durante os quatro anos de doutorado, tive a oportunidade de participar de congressos, mediar cursos e estar próxima a alunos de graduação. Considero dois artigos com maior relevância: Projetos de incentivo à leitura no metrô de São Paulo e Notas sobre leitura.
DC: Exerceu alguma monitoria/estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
MR: Realizei estágio docência em várias oportunidades e considero uma experiência essencial para qualquer pós-graduando. É possível acompanhar um relato mais detalhado na seguinte publicação https://www.eca.usp.br/sites/default/files/inline-files/1ºENCONTROPAE-ANAIS.pdf .
DC: Elas contribuíram em sua tese? De que forma?
MR: As experiências de estágio docência contribuíram com a pesquisa tanto pelos textos lidos e estudados durante a disciplina quanto pela oportunidade de apresentar e discutir minha pesquisa com os alunos.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
MR: Participe de tudo que for possível durante seus anos na pós-graduação. As oportunidades surgem de momentos inesperados.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
MR: Tive a imensa sorte de ter encontrado orientadoras, tanto no mestrado quanto no doutorado, com quem formei relações ótimas. A relação entre orientador e orientando deve ser baseada em responsabilidade, confiança, diálogo e respeito. O orientador não tem o dever de cobrar prazos, mas direcionar o trabalho, fazer críticas construtivas e estimular o orientando. A comunicação aberta e regular é essencial, permitindo esclarecer dúvidas e discutir questões metodológicas. A confiança mútua é fundamental, assim como o respeito pelas ideias e perspectivas de ambas as partes. A relação deve ser uma parceria de apoio e colaboração para alcançar o sucesso acadêmico e profissional do orientando.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
MR: Após o depósito da minha tese, comecei a montar um projeto sobre a história da leitura no Brasil. Além disso, conjuntamente com a pesquisadora Sandra Reimão, participo da mediação do curso História do Livro e da Leitura no Instituto Estação das Letras.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
MR: Durante o período do meu doutorado, o Programa de Pós-Graduação proporcionou diversas oportunidades e benefícios que foram significativos para minha trajetória acadêmica. Em primeiro lugar, tive o privilégio de receber uma bolsa de estudos que me permitiu me dedicar mais à pesquisa. Além disso, o Programa promoveu eventos acadêmicos, nos quais pude apresentar meu trabalho, trocar conhecimentos com outros pesquisadores.Também procurei contribuir para o Programa, estive envolvida na organização de eventos acadêmicos, participei da organização de um livro que foi publicado pelo Programa.
DC: Você por você:
MR: Como uma mulher nortista lésbica, sou consciente dos privilégios que tive ao longo do meu caminho. O acesso à educação, a oportunidade de me dedicar à pesquisa e a liberdade de focar no meu trabalho são condições que infelizmente não são compartilhadas pela maioria das jovens mulheres. Diante disso, tenho uma convicção firme de que parte da minha responsabilidade social e política é lutar para que outras jovens tenham as mesmas oportunidades para construir suas próprias conquistas. Assim, sinto-me compelida a contribuir para a formação de outras pessoas e empreender pesquisas que questionem a realidade sociopolítica do Brasil. Minha motivação reside em garantir que mais jovens, independentemente de sua origem ou identidade, tenham a chance de trilhar um caminho de crescimento.
Entrevistado: Manuella Reale
Entrevista concedida em: 6 jun. 2023 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro
Fotografia: Manuella Reale
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro