Entrevista com Hugo Pires e sua pesquisa sobre as relações de gênero na trajetória da pessoa bibliotecária
Entrevista com Hugo Pires e sua pesquisa sobre as relações de gênero na trajetória da pessoa bibliotecária
Hugo Avelar Cardoso Pires
hugoavelar.pires@gmail.com
Sobre o entrevistado
Em 2022, o doutor Hugo Avelar Cardoso Pires defendeu sua tese pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais, sob orientação do Prof. Dr. Cláudio Paixão Anastácio de Paula.
Aos 32 anos e natural de Minas Gerais, Hugo gosta de ver filmes, ler e dormir. No âmbito profissional, atua como bibliotecário documentalista na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
Sua tese, intitulada “As relações de gênero na trajetória da pessoa bibliotecária” buscou investigar de que formas as relações de gênero atuaram na trajetória das pessoas formadas em Biblioteconomia, na infância, na escolha do curso, durante a trajetória de formação e na vida profissional, além de buscar entender a percepção das pessoas entrevistadas sobre as relações de gênero na sociedade e na profissão.
A profissão de bibliotecária, ao longo do tempo, se constituiu enquanto uma profissão ocupada majoritariamente por mulheres e os estudos de gênero demonstram que este fato tem ligação direta com as relações desiguais existentes entre mulheres e homens na sociedade. Estas relações são incorporadas pelas pessoas desde a mais tenra infância e expectativas em torno de modos de vestir, de falar, gestos e atitudes, por exemplo, são esperados pela sociedade.
Solicitamos ao Hugo que nos relatasse, por meio desta entrevista, seu percurso durante o programa de doutorado e o desenvolvimento de sua tese.
Divulga-CI: O que te levou a fazer o doutorado e o que te inspirou na escolha do tema da tese?
Hugo Pires (HP): Acredito que a profissão bibliotecária é profundamente marcada, em sua história, pelas relações de gênero presentes na nossa sociedade, seja na constituição dela enquanto profissão feminilizada, seja no lugar que ela ocupa no imaginário das pessoas e no mundo do trabalho. Ainda quando estava na graduação, ao participar como bolsista de iniciação científica em uma pesquisa da professora Alcenir dos Reis, os dados que levantamos mostravam uma predominância no número de mulheres na Biblioteconomia com um aumento do número de homens a partir da década de 1980. Tentando entender o porquê desta maior procura por parte dos homens ao curso, busquei no mestrado identificar as razões do maior ingresso desse contingente masculino no curso. A pesquisa de doutorado seguiu meu percurso de pesquisa de demonstrar como o gênero, em suas interseccionalidades com classe e raça, se fizeram presentes nas trajetórias de 13 pessoas graduadas em Biblioteconomia nos mais diferentes períodos.
DC: Em qual momento de seu tempo no doutorado você teve certeza que tinha uma “tese” e que chegaria aos resultados e conclusões alcançados?
HP: Durante o processo de realização das entrevistas, já pude perceber que os objetivos traçados estavam sendo alcançados e o roteiro desenvolvido para a coleta de dados estava colaborando para que o trabalho tivesse “corpo”. Mas acredito também que, por mais que eu tivesse uma noção de que isto estava ocorrendo, o processo de doutorado traz muitas dúvidas e somente na defesa mesmo que veio a certeza de que eu tinha uma tese.
DC: Citaria algum trabalho (artigo, dissertação, tese) ou ação decisiva para sua tese? Quem é o autor desse trabalho, ou ação, e onde ele foi desenvolvido?
HP: Não sei se conseguiria citar somente um, mas os trabalhos de Michel Foucault a respeito das relações entre poder e discurso foram fundamentais para o desenho da tese, tanto em termos de compreensão das relações de gênero quanto na escolha metodológica.
DC: Por que sua tese é um trabalho de doutorado, o que você aponta como ineditismo?
HP: Meu trabalho é uma tese pois traz para dentro da CI e da Biblioteconomia a compreensão de como gênero, em interseccionalidade com classe e raça operam em conjunto na determinação das identidades pessoais e coletivas das pessoas e como tais identidades se ligam à imagem que elas têm da profissão em que atuam e da percepção acerca do lugar que a Biblioteconomia ocupa na sociedade.
DC: Em que sua tese pode ser útil à sociedade?
HP: Acredito que minha tese pode ser útil não só para que a CI e a Biblioteconomia reflitam acerca dos seus processos, suas constituições e suas histórias, mas também para demonstrar como as profissões feminilizadas se constituem ao longo do tempo enquanto tal e como as trajetórias das pessoas formadas nelas são diretamente influenciadas pelas relações de gênero.
DC: Quais são as contribuições de sua tese? Por quê?
HP: Minha tese contribui para a compreensão de como se dão as relações de gênero dentro da profissão bibliotecária e como tais relações atuam na construção das identidades pessoais e profissionais das pessoas que constroem a profissão.
DC: Quais foram os passos que definiram sua metodologia de pesquisa?
HP: Meu projeto inicial de doutorado era o de investigar como os currículos de Biblioteconomia, vistos enquanto discursos, colaboraram para a constituição da Biblioteconomia enquanto profissão femilizada com a segunda etapa sendo de realização de entrevistas. Em razão da pandemia de COVID-19, fiquei impossibilitado o acesso aos documentos que norteariam minha pesquisa documental e após o exame de qualificação, optamos pela investigação acerca de como as relações de gênero atuaram na trajetória das pessoas bibliotecárias. A metodologia seguida na análise das entrevistas foi sugerida por um dos membros da banca e ao me aprofundar nos estudos sobre ela, vi que casavam perfeitamente com os objetivos do trabalho e com a análise que poderia ser feita.
DC: Em termos percentuais, quanto teve de inspiração e de transpiração para fazer a tese?
HP: Eu vejo muito como 50% de cada um. Não consigo colocar na balança que um foi mais “importante” que o outro. Transpiração e inspiração são coisas, na confecção da tese, são processos que andam interligados ao longo do caminho porque muitas vezes a inspiração vem em momentos em que você não está trabalhando no texto (eu tive por exemplo no ônibus e no banho) e ela que guia a transpiração.
DC: Teria algum desabafo ou considerações a fazer em relação à caminhada até a defesa e o sucesso da tese?
HP: Eu acredito que o caminho da tese é, muitas vezes, solitário e angustiante. Acredito que é preciso que um doutorando tenha em mente isso e busque apoio nas pessoas ao seu redor, em quem te orienta e sobretudo nas pessoas amigas – que cursem ou não doutorado. É importante ter pessoas com quem você possa se “desligar” da tese e jogar conversa fora. Eu também aconselharia a tentar não comparar o seu trabalho com o dos outros o tempo todo e nem achar que você não é capaz. Ah, e se puder, faça terapia pois ajuda a entender o que você está sentindo e os processos que estão ocorrendo.
DC: Como foi o relacionamento com a família durante o doutorado?
HP: Não sei se minha família tem muito a dimensão do que é um doutorado – por mais que eu já tenha explicado – e o quão difícil é o processo de confecção da tese. Mas no geral, eu diria que foi uma boa relação, mas infelizmente, por conta da pandemia de COVID-19 ocorreu de forma à distância. Como eu morava sozinho na época do isolamento social, o suporte para os desabafos e ausências ocorreram muitas vezes via telefone, whatsapp e outras formas de conversa.
DC: Qual foi a maior dificuldade de sua tese? Por quê?
HP: A maior dificuldade acredito que tenha sido lidar com a confecção da tese na pandemia, não podendo ir a bibliotecas e estudar nelas, por exemplo, e realizar todas as entrevistas de forma remota, com todas as dificuldades que isso traz, como as falhas de conexão, de áudio e etc.
DC: Que temas de mestrado citaria como pesquisas futuras possíveis sobre sua tese?
HP: Gostaria de ver pesquisas que relacionassem os currículos universitários à feminização da profissão, pois na minha visão há um claro movimento de disciplinas incorporadas a eles conforme o número de homens e mulheres adentram os cursos de Biblioteconomia ao longo do tempo. Além disso, acredito que a tese abre espaço para que se tenham mais estudos acerca de classe e raça na Biblioteconomia e outros que aprofundem as diferenças de rendimentos entre homens e mulheres bibliotecárias; que coloquem luz nas vantagens que eles parecem possuir por estarem em uma profissão feminizada; que busquem compreender como as relações de gênero também atuam na trajetória das pessoas bibliotecárias LGBTQIAP+.
DC: Quais suas pretensões profissionais agora que você se doutorou?
HP: Como sou servidor público, o doutorado é uma forma de incrementar meus rendimentos através do incentivo à qualificação. Mas eu gostaria de exercer a docência, seja em universidades privadas ou públicas, então vou tentar direcionar minha carreira também para essas possibilidades.
DC: O que faria diferente se tivesse a chance de ter começado sabendo o que sabe agora?
HP: Eu acho que eu me cobraria menos ao longo do percurso em relação a ter um trabalho perfeito. Nenhum trabalho é perfeito e a ciência é construída de forma que outros trabalhos são construídos a partir do seu e das críticas feitas a ele.
DC: Como você avalia sua a produção científica durante o doutorado (projetos, artigos, trabalhos em eventos, participação em laboratórios e grupos de pesquisa)? Já publicou artigos ou trabalhos resultantes da pesquisa? Quais você aponta como os mais importantes?
HP: Eu publiquei um artigo junto ao meu orientador durante o doutorado. Agora, estou confeccionando artigos frutos da tese e também pretendo publicá-la no formato de livro, com as devidas adaptações.
DC: Exerceu alguma monitoria/estágio docência durante o doutorado? Como foi a experiência?
HP: Infelizmente, não. Eu comecei a fazer o doutorado viajando toda semana mais de 1200 km para fazer as disciplinas – eu morava em Foz do Iguaçu/PR. Depois consegui uma licença no trabalho e voltei para Belo Horizonte com o intuito de realizar a pesquisa e o estágio docente, mas veio a pandemia. Eu esperei que ela passasse logo para que eu pudesse realizar o estágio na forma presencial, mas não foi possível e o tempo do doutorado acabou.
DC: Agora que concluiu a tese, o que mais recomendaria a outros doutorandos e mestrandos que tomassem seu trabalho como ponto de partida?
HP: Caso trabalhos sejam realizados a partir da minha tese, gostaria de ver trabalhos que as pessoas que estão realizando a pesquisa sejam críticas em todo o processo e que isso apareça no texto. A ideia de uma ciência neutra e de uma pessoa que pesquisa neutra não cabem mais nos tempos atuais. Também gostaria de ver o gênero sendo tomado como elemento da análise das pesquisas e não somente como um fato e/ou uma parte delas. É preciso que coloquemos gênero, classe e raça como ponto central e eixo norteador das nossas pesquisas para que compreendamos como se deu a constituição da nossa profissão tanto teoricamente quanto de forma prática, além dos locais que ela ocupa.
DC: Como acha que deve ser a relação orientador-orientando?
HP: Acredito que deva ser uma relação de parceria, em que um entenda as falhas do outro e não tente impor a sua visão de mundo somente à tese. Não acredito que é função dos orientadores se utilizarem de sua autoridade para determinar como a pesquisa deve ser feita, mas de auxiliar os orientandos a chegarem a um melhor caminho na pesquisa, a seguir seus objetivos de pesquisa e fazerem o melhor trabalho. A minha relação com meus orientadores sempre foram nesse sentido e acredito que o sucesso alcançado com os trabalhos se deu muito por conta disso.
DC: Sua tese gerou algum novo projeto de pesquisa? Quais suas perspectivas de estudo e pesquisa daqui em diante?
HP: Eu gostaria muito de fazer um trabalho que recupere as trajetórias, que conte as histórias e analise a situação atual de bibliotecárias/os que possuem mais de 60 anos e que ainda atuam em nossa profissão, trazendo para dentro das análises as perspectivas de gênero, raça e classe.
DC: O que o Programa de Pós Graduação fez por você e o que você fez pelo Programa nesse período de doutorado?
HP: Acredito que colaborei para que o programa continuasse ampliando seus horizontes de pesquisa para além da Ciência da Informação e Biblioteconomia tradicionais, trazendo uma reflexão aprofundada acerca das relações de gênero na nossa profissão. O programa de pós-graduação permitiu que eu pudesse mergulhar na minha pesquisa, me dando apoio e suporte para alcançar os objetivos e confeccionar a tese de forma mais confortável e segura possível.
DC: Você por você:
HP: Eu sou um bibliotecário que adora ler, beber uma cervejinha e falar abobrinha com as pessoas queridas. Que tem um pé na “bagaceirice” e que dele não larga. A minha constituição enquanto pessoa passa muito pelas bibliotecas e pela leitura, desde quando eu frequentava a biblioteca da minha escola para mergulhar nos livros e fugir dos problemas que me cercavam. A biblioteca sempre me encantou e ser bibliotecário foi o encontro com um destino que se construindo desde a infância. Talvez por isso eu tenha sempre buscado questionar o lugar que ocupamos na sociedade e, acreditando que isto se dá “por dentro” e “por fora”, busquei relacionar em minhas pesquisas os movimentos externos à história da profissão, com foco nas pessoas que constroem a profissão. Por isso, acredito que as relações de gênero são tão importantes para compreendermos os diversos movimentos e processos que a nossa profissão passou.
Entrevistado: Hugo Avelar Cardoso Pires
Entrevista concedida em: 25 abr. 2023 aos Editores.
Formato de entrevista: Escrita
Redação da Apresentação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro
Fotografia: Hugo Avelar Cardoso Pires
Diagramação: Herta Maria de Açucena do Nascimento Soeiro