Redescobertas ou inovações metodológicas: conexões entre a Ciência da Informação e as Humanidades Digitais, por Bruna Lessa
Redescobertas ou inovações metodológicas: conexões entre a Ciência da Informação e as Humanidades Digitais
Bruna Lessa
lessbruna@gmail.com
Já faz algum tempo que é percebida e compartilhada em canais formais de comunicação científica, os principais elementos que aproximam o domínio da Ciência da Informação (CI), sobretudo suas influências teóricas e práticas da Biblioteconomia, às Humanidades Digitais.
Decerto, semelhanças e convergências nos objetivos das pesquisas que envolvem tais domínios do conhecimento, expressam-se cada vez mais em eventos científicos, dossiês temáticos em revistas, temas de abertura em aulas magnas, teses, dissertações… ou ainda, o diálogo bibliográfico estes dois campos, já sinalizado em Pimenta (2020).
Contudo, para um lado há sempre aquela dúvida: trata-se de uma novidade (com tendência para o esquecimento, caso o termo se torne obsoleto), ou se trata, de fato, de uma conexão já existente, porém sem um “batismo” da comunidade da CI?.
Bom, o termo Humanidade Digitais, tem antecedentes na discussão sobre o uso da tecnologia aplicada às pesquisas em Ciências Humanas, sobretudo no ano 1994, por Francisco Marcos Marín, então professor da Universidade Autônoma de Madrid. Bem mais relacionada ao campo da Filologia, no contexto das ferramentas tecnológicas utilizadas para análise textual, nasce a informática humanística visando desenvolver metodologias que auxiliassem no tratamento da informação (à primeira vista, textual)
Com o deslocamento digital, ou ainda, como vem sendo chamado… transformação digital, a demanda tecnológica impulsionou refletir sobre como a sociedade modifica e questiona as condições de produção e difusão do conhecimento. Nesse sentido, as Humanidades Digitais atingem o conjunto das Ciências Sociais, Artes e Letras, pois não há como compreender o presente, e pensar em soluções para o futuro, sem analisar o passado. O viés teórico-metodológico, portanto, fundamenta-se no emaranhado de paradigmas, experiências e conhecimentos específicos para as disciplinas que compõem tais domínios do conhecimento, acompanhados pelas ferramentas e perspectivas do campo digital.
Uma relação transdisciplinar? Sim. Se partirmos da concepção de Transdisciplinaridade de Basarab Nicolescu (1999), é preciso abrir portas para dialogar entre disciplinas.
Por uma questão de sobrevivência? Talvez. A conexão entre a Ciência da Informação e as Humanidades Digitais, não significa apenas um enquadramento teórico robusto, com argumentos epistemológicos para se validar como linha de pesquisa em uma comunidade científica.
Não é (somente) sobre isso.
Ou ainda, de forma mais abstrata, uma reconstrução teórica de um campo já consolidado.
Não, não acredito que seja sobre isso.
O objetivo não é, em si, uma adaptação, mas quem sabe enxergar a complexidade dos diferentes aspectos metodológicos presentes entre disciplinas para se analisar um fenômeno.
No caso particular da Biblioteconomia e Documentação, por exemplo, que embasam algumas das teorias e abordagens metodológicas utilizadas na Ciência da Informação, a realidade dirigida para o futuro dessas áreas está diretamente conectada ao que se entende e entenderá, sobre o conceito e função do documento. Na década de 1950, Susane Briet já apontava o conceito de documento para além do textual, embora o texto escrito continua sendo um dos principais objetos de investigação para as Humanidades Digitais, para a Biblioteconomia, Documentação, Arquivologia, Museologia e Ciência da Informação, os textos são riquíssimas fontes de dados, desde a forma da escrita até o contexto de sua autoria.
Além disso, nos estudos desenvolvidos nestes campos de investigação, sobre o aspecto informacional dos fenômenos socioculturais, os processos que envolvem o acesso e tratamento de informações e dados de pesquisas, seguindo-se de suas implicações sociotécnicas, tecnopolíticas e culturais; utilizam-se de métodos e iniciativas de aplicação de recursos tecnológicos para produzir conhecimento.
Figurando tal relação, vê-se nos estudos sobre modelagem da informação, com base nas teorias e práticas da Organização do Conhecimento, conecta-se às ferramentas utilizadas em Humanidades Digitais, tais como técnicas de análise cognitiva que permitem visualizar, representar e explorar relações entre palavras/conceitos e outras informações, utilizando, por exemplo, a abordagem de Análise de Redes Sociais (ARS).
Ou ainda, linguagens de marcação, que viabilizam a estruturação semântica de textos digitais, de maneira que a Inteligência Artificial (IA) usada nos computadores, possa “compreendê-lo” e codificá-lo, inclusive aspectos implícitos, auxiliando de forma processual na definição de vocabulários controlados, e até mesmo na criação de modelos conceituais que permitam representar o conhecimento de uma determinada área de interesse, tais como as ontologias.
Redescoberta aqui?
Quem sabe, na maneira que tanto a CI quanto as Humanidades Digitais começam a visualizar a complexidade no estudo das informações registradas e, como, no decorrer do tempo, compartilham estruturas institucionais, sobretudo no âmbito patrimonial das coleções documentais, e registros das relações humanas e não-humanas, bem como tornar a ciência mais social, favorecendo o acesso e visibilidade da pesquisa científica pela sociedade, questão já discutida por Del Río Riande (2022), sobre como as Humanidades Digitais podem colaborar na democratização do conhecimento.
Inovação tecnológica? Sem dúvida.
A humanidade caminha nesse processo. O que dizer sobre a evolução dos suportes de escrita, das tábuas de argila com a invenção do papel? Ou ainda, das práticas de acesso e leitura da linguagem escrita, da prensa de Gutenberg que abriu o caminho para a popularização do livro impresso, ao sonho de Vannevar Bush, o idealizador teórico do livro eletrônico, com o Memex, até a digitalização da Declaração de Independência dos Estados Unidos, por Michael Hart, que abriu as possibilidades para que a ideia de e-books se tornasse realidade.
E, para além dos dispositivos de leitura, associada à história do surgimento do livro digital, está a evolução da relação entre o texto, sua autoria, e a pessoa leitora. Não obstante, a mediação tecnológica introduzida nesse processo cognitivo e complexo, que é a leitura e a escrita; os hipertextos, e o volume de dados textuais armazenados e produzidos a cada segundo no ambiente virtual, multiplicou o trabalho de análise textual e organização da informação, impossibilitando-nos, enquanto humanos, manter os mesmos métodos de leitura que herdamos da imprensa, no âmbito analítico.
Técnicas e ferramentas de leitura em larga escala, ou uma leitura à distância (MORETTI, 2015), apontam para uma análise textual computacional, que por meio de gráficos, mapas e árvores, permitem identificar relações presentes no texto, de maneira a organizá-lo, representá-lo, referenciá-lo, e favorecer novas interpretações, as quais talvez seria impossível com crescimento exponencial da informação.
Essas e outras inovações deixam a IA mais inteligente? De longe, há quem acredite! Principalmente após o surgimento do CHATGPT, e suas implicações para o humanismo e características cognitivas intrínsecas à pessoa humana. Uma discussão, de fato, para outro momento, mas importante ratificar que a IA compreende técnicas e algoritmos, que em conjunto, apresentam um comportamento inteligente, tal qual projetado pela pessoa humana. A compreensão semântica e pragmática das palavras em um texto, por exemplo, demanda abordagens características do humano. Em suma, é preciso considerar a coexistência das duas formas de inteligência (a humana e a artificial), compreendendo suas diferenças.
Sem a intenção de provocar uma conclusão deste texto, que em perspectiva, alinhamos algumas das conexões que se vem identificando entre as Humanidades Digitais e a Ciência da Informação, incluímos algumas pesquisas que temos desenvolvido, e outras em desenvolvimento, algumas destas em coautoria com membros do LabRecriE – Laboratório de estudos em representação do conhecimento, competências e comportamento em informação, e recuperação da informação em meio digital.
>> ANÁLISE DE MOVIMENTOS SOCIAIS em sites de redes sociais
LESSA, B.; COUTO, E. S.; LESSA, B. “não vai ter golpe” e “vem pra rua brasil”: o Facebook como dispositivo de mediação e organização de movimentos sociais. Informação & Informação, Londrina v. 23, n. 3, p. 438-461, 2018. Disponível em: < https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/view/26998 >. Acesso em 05 jul. 2023.
>>TRANSITIVIDADE DE CONCEITOS (sob o aspecto de fenômenos sociais, entre diferentes domínios do conhecimento)
LESSA, B.; SANTANA, E. Representação da informação sobre a Covid-19: rede semântica de títulos de artigos na Web of Science. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, 2022. Disponível em: < https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/2405 >. Acesso em 05 jul. 2023.
>>E-LEARNING E A LEITURA ELÁSTICA (em desenvolvimento)
Projeto Piloto – Podlê (https://soundcloud.com/podle-o-menino-quadradinho/podcast-podle?ref=clipboard&p=a&c=0 )
Inclui as relações da leitura do livro impresso às plataformas digitais, incluindo diversos tipos de linguagens que atendam a nova geração de leitores, ampliação do conceito de leitura, produção de mídias nas escolas a partir da promoção de atividades que favoreçam as habilidades de leitura.
>>GEORREFERENCIAMENTO de campos de estudos (em desenvolvimento).
Inclui a geografia de comunidades científicas, uma cartografia social que traça o desenvolvimento científico de um campo de estudo a partir dos espaços e estruturas sociais.
Referências
BRIET, Suzanne. O que é a documentação? Tradução de Maria de Nazareth Rocha Furtado. Brasília (DF): Briquet de Lemos, 2016.
DEL RÍO RIANDE, G. Humanidades Digitales o las Humanidades en la intersección de lo digital, lo público, lo mínimo y lo abierto. Publicaciones de la Asociación Argentina de Humanidades Digitales, La Plata , v. 3, 2022. Disponível em: https://revistas.unlp.edu.ar/publicaahd/article/view/14468 . Acesso em: 24 junho de 2023.
MORETTI, Franco. Lectura distante. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2015.
NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. Triom: São Paulo, 1999.
PIMENTA, R. M. Por que Humanidades Digitais na Ciência da Informação? Perspectivas pregressas e futuras de uma prática transdisciplinar comum. Informação & Sociedade: Estudos, João Pessoa, v. 30, n. 2, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ies/article/view/52122 . Acesso em: 24 junho de 2023.
Sobre a autora
É professora do Departamento de Documentação e Informação, do Instituto de Ciência da Informação, da Universidade Federal da Bahia. Chefe do Departamento de Documentação e Informação – DDI/ICI-UFBA. Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Líder do Laboratório de estudos em representação do conhecimento, competências e comportamento em informação, e recuperação da informação em meio digital (LabRecriE), UFBA.
Graduada em Biblioteconomia e Documentação pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Educação à Distância pela Fundação Visconde de Cairu/Bahia e em Humanidades Digitais, pela Universidade de Ciências Empresariais e Sociais – Buenos Aires/Argentina. Doutora e Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal da Bahia.
Redação e Foto: Bruna Lessa
Diagramação: Pedro Ivo Silveira Andretta